“Pacote fiscal” de Alckmin tira leite das crianças e transfere dinheiro público para o caixa dos frigoríficos, apesar de dívidas de R$ 2 bilhões

publicado em 15 de setembro de 2015 às 12:18
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Em 27 de dezembro de 2011, o governador Geraldo Alckmin anuncia o decreto que aos frigoríficos paulistas transformar seus créditos acumulados em dinheiro, mesmo tendo débitos milionários de ICMS
por Conceição Lemes
Em 9 de agosto, o Sindicato dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo (Sinafresp) publicou no jornalDiário da Região, de São José do Rio Preto, informe publicitário com título Governo paulista concede benefícios a devedores do Estado”
É uma denúncia, mesmo. Refere-se a vantagens fiscais que o governo do Estado de São Paulo concede há anos aos frigoríficos que abatem gado, aves e coelhos, apesar de muitos terem sido autuados e multados por irregularidades tributárias.
O estopim para essa nota do Sinafresp foi a renovação em 31 de março do decreto 57.686/2011, de 27/12/2011, do governador Geraldo Alckmin (PSDB), que permite aos frigoríficos paulistas transformar seus créditos acumulados em dinheiro, mesmo tendo débitos milionários de ICMS (Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviço).
O Sinafresp é contra.

Em 26 de janeiro deste ano (no anúncio publicado saiu equivocadamente como março), o Sinafresp protocolou ofício ao Secretário da Fazenda do Estado de São Paulo, Renato Vilela, defendendo a não prorrogação. Nele, previne: o decreto causa significativo prejuízo à população do Estado de São Paulo”.
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Mesmo assim, Alckmin, através do decreto nº 61.197/2015, renovou a sua vigência até 31 de março de 2016,
No informe publicado, em 9 de agosto, no Diário da Região, de São José do Rio Preto, o Sinafresp alerta:
Para os frigoríficos com dívidas com o Estado, decorrentes da lavratura de Autos de Infração, esses valores a título de ‘Crédito Acumulado’ ficavam retidos como garantia para o pagamento das dívidas. Essa regra valia para todas as empresas devedoras e durou até 22 de dezembro de 2011. Nessa data, o governo criou, pelo Decreto 57.686/2011, mais uma exceção para os frigoríficos e os devedores passaram a poder aproveitar seus créditos.
(…)
Uma injustiça fiscal em desalinho com a grandeza de nossas responsabilidades.
(…)
Continuamos a observar milhões de reais sendo concedidos mensalmente a frigoríficos, que devem bilhões ao Estado de São Paulo. Levantamento preliminar aponta débitos pendentes de cerca de R$ 2 bilhões.
DO BOLSO DA POPULAÇÃO PARA O CAIXA DOS FRIGORÍFICOS
Imagine uma empresa que deve milhões a um banco e não paga.
Agora pense que, apesar dessa dívida, o banco continue dando dinheiro a essa empresa.
Pois esse banco tão bonzinho existe; é o governo paulista. A empresa, os cerca de 170 frigoríficos existentes no Estado. O dinheiro, o proveniente do crédito acumulado do ICMS.
Como?!
O ICMS é um imposto não cumulativo, isto é, cada agente da cadeia produtiva e comercial (fornecedor de matéria prima, indústria, atacado, varejo) paga apenas pelo valor que agregou ao produto.
Por exemplo, a indústria de sapato, que compra couro da agroindústria, paga um preço no qual está embutido o ICMS. Essa parte do imposto embutida no preço é transformada em crédito acumulado de ICMS. Só que, como a indústria do sapato tem o crédito relativo à compra do couro, o ICMS que ela recolhe é o resultado do débito menos o crédito.
Traduzindo com base — atenção! — em números hipotéticos, apenas para facilitar o raciocínio:
*A indústria do sapato compra R$ 2 mil de couro e nesse valor estão incluídos 200 reais de ICMS.
*Esses 200 reais são o crédito acumulado de ICMS.
*Só que, ao vender os sapatos para atacadistas, essa indústria tem um débito de 300 reais de ICMS.
*A indústria de sapato vai pagar de ICMS o seguinte valor: 300 reais (débito) menos 200 reais (crédito acumulado), ou seja, 100 reais.
No caso dos frigoríficos, eles são isentos de ICMS para a venda de carne dentro do Estado de São Paulo. Além disso, eles mantêm o crédito de ICMS embutido no preço da compra de gado em pé, aves e coelhos, que geralmente é de 12%.
O imposto embutido no preço da compra desses animais para abate é, na contabilidade do frigorífico, transformado em crédito acumulado de ICMS.
Acontece que, com a isenção de ICMS para venda de carne dentro do Estado de São Paulo, o frigorífico não tem débito de ICMS. Porém, ele pode manter o crédito de ICMS referente à compra de gado, aves e coelhos.
Ou seja, o frigorífico não paga o ICMS pela venda da carne, mas tem um crédito acumulado pela compra de gado, aves e coelhos.
Os frigoríficos podem ainda usar esse crédito acumulado de ICMS para pagamento de fornecedores, mesmo débito de ICMS por outros tipos de operação.
Um privilégio?!
Certamente, sim. Nos demais setores, se o contribuinte tem débitos de ICMS, ele deve usar o crédito acumulado para, primeiro, quitar a dívida. Só depois poderá empregá-lo para pagar seus fornecedores de máquinas ou de insumos.
Em outras palavras. Em 2011, Alckmin abriu exceção à regra ao assinar o decreto  57.686/2011. E, em março deste ano, manteve a exceção à regra.
Na prática, transferência de dinheiro do bolso do cidadão paulista para as malas dos grandes empresários do setor de frigoríficos. Afinal, o crédito acumulado nada mais é do que dinheiro.
Logo:
1. Injustiça com a sociedade. Nós, cidadão comuns, temos de estar em dia com nossas contas para comprar algo a prestação ou pedir empréstimo no banco, enquanto os frigoríficos devedores de ICMS são premiados.
2. Injustiça om as empresas de outros setores, que, mesmo com dificuldades financeiras, lutam para estar em dia com os tributos, enquanto os frigoríficos têm uma tremenda colher de chá. Afinal, mesmo com débitos de ICMS, eles podem usar o crédito acumulado para pagar as suas contas com os fornecedores graças à generosidade de Alckmin com o setor.
SEFAZ-SP NÃO RESPONDE AS PERGUNTAS DO VIOMUNDO
Esta repórter questionou a Secretaria da Fazenda Estadual de São Paulo (Sefaz-SP) sobre o decreto de 2011, prorrogado em 2015, que estabelece que os frigoríficos podem usar o crédito acumulado de ICMS para pagamento de fornecedores, mesmo que tenham outros débitos desse tributo.
Nós perguntamos:
1. Por que esse benefício se destina apenas aos frigoríficos e não a outros setores da economia também?
2. Por que, apesar da crise e de os fiscais serem contra esse decreto, ele foi prorrogado até março de 2016?
A Sefaz não respondeu as duas perguntas.
Apenas nos enviou a notícia que saiu no portal do órgão após Alckmin assinar o decreto da prorrogação. Leiam abaixo e tirem as suas próprias conclusões.
Frigorífico - sefaz
TORNEIRAS ABERTAS PARA OS FRIGORÍFICOS, APESAR DE DÍVIDAS E CRISE
O fato concreto é que, enquanto fechava as torneiras por todos os lados devido à crise, Alckmin conservou abertas as dos frigoríficos. Como muitos deles são devedores de ICMS, é como jogasse dinheiro no ralo.
Explico. Na segunda quinzena de fevereiro de 2015, o governo Alckmin deu início ao ajuste fiscal no Estado, fazendo uma série de cortes no orçamento.
Começou com congelamento da remuneração de servidores a partir de 1º de março.
decreto nº 61.132/15, de 25 de fevereiro de 2015, congelou gratificações, indenizações e alguns adicionais, que são parte importante da composição dos salários dos servidores públicos.
Para terem uma ideia melhor do tamanho do privilégio para os frigoríficos, atentem para as tesouradas do governo Alckmin em outros setores:
*Em 7 de julho, informou que adiou a liberação de créditos da Nota Fiscal Paulista em seis meses.  Os valores que seriam liberados em outubro de 2015 só estarão disponíveis em abril de 2016.
Mudou o critério do programa de leite, que atende à população mais carente do Estado, reduzindo a sua distribuição. Antes, garantia 15 litros de leite ao mês às crianças de seis meses a seis anos e 11 meses de idade. Mas desde o dia 1º de julho passou a atender apenas as de um ano a cinco anos e 11 meses; 37 mil crianças foram excluídas.
 Desistiu de 32 Parcerias Público-Privadas. Várias dessas PPPs  descartadas estavam em fase embrionária e não é publico o seu valor, mas as que são conhecidas alcançam o valor de R$ 30 bilhões.
SILÊNCIO NA MÍDIA E A RELAÇÃO DO DOLEIRO YOUSSEF COM A MÁFIA DO ICMS
Curiosamente, a denúncia feita pelo Sinafresp ficou restrita à região de São José do Rio Preto. Não saiu nada na chamada grande imprensa.
Nós contatamos o Sinafresp para saber por que o informe publicitário não foi publicado em jornais de grande circulação.
O Sinafresp, via seu Departamento de Comunicação e Imprensa, respondeu:
Recebi o recado de seu telefonema com o questionamento de se outros veículos não poderiam publicar o artigo do Sinafresp que saiu recentemente no jornal de S. José do Rio Preto.
Informo que a diretoria do Sindicato está trabalhando essa estratégia e está em negociação com um grande veículo para tentar que o mesmo faça uma matéria investigativa sobre o tema.
Em breve poderemos ter mais notícias.
Obrigada pela sugestão.
Diante da gravidade da denúncia, o deputado estadual Carlos Neder (PT-SP) protocolou no Ministério Público Estadual (MPE-SP) uma representação, que recebeu o nº 0120985/15 (na íntegra, ao final).
“Considerando que o MP já investiga fraudes fiscais antigas na cobrança de ICMS, seria muito importante que estendesse as investigações a outros setores econômicos, entre os quais o de frigoríficos”, defende o parlamentar. “Reivindicamos também que seja ouvida a diretoria do Sinafresp.”
O deputado refere-se à Operação Zinabre, desencadeada pelo próprio MPE-SP e que teve duas etapas.
Na primeira, em 24 de julho deste ano, foram presos sete fiscais da Sefaz-SP acusados de integrar a máfia do ICMS. São réus por lavagem de dinheiro, corrupção e formação de quadrilha, entre outros crimes.
Na segunda etapa, deflagrada em 13 de agosto, três ex-funcionários da Sefaz-SP foram para a cadeia. São dois ex-delegados tributários e um inspetor fiscal.
Os três são suspeitos de integrar uma quadrilha acusada de cobrar mais de R$ 35 milhões de propina, para não aplicar multas de ICMS ou fazer cobranças muito abaixo do imposto devido.
Foi o doleiro Alberto Youssef, detido na Operação Lava Jato, em Curitiba, que revelou o esquema criminoso aqui em São Paulo. Também envolvido com a máfia do ICMS, Youssef disse à Justiça que veio várias à capital paulista entregar malas de dinheiro aos fiscais corruptos.
“HÁ ALGO DE PODRE, MUITO PODRE, NA SECRETARIA DA FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO”
Na verdade, não é hoje que servidores éticos e competentes denunciam essas maracutaias. Só que a Sefaz-SP nunca as apurou profundamente.
Ao contrário, puniu implacavelmente quem revelou as falcatruas.
O caso de João Ribeiro, lotado em Marília e que há 27 anos trabalha na área de arrecadação tributária da Sefaz-SP, é emblemático.
Em 2003, João Ribeiro denunciou que dois diretores da área de fiscalização estariam envolvidos no desvio de créditos acumulados de quase R$ 1 bilhão (valores da época, não atualizados). O caso envolvia grandes empresas de vários setores econômicos. Frigoríficos era um deles.
A Sefaz-SP instaurou processo administrativo contra João Ribeiro. Em julho de 2007, demitiu-o por justa causa.
A partir daí, João, tal como David, passou a batalhar na Justiça contra o Golias. Ganhou em todas as instâncias (aqui, aqui aqui). Conquistou reintegração definitiva ao cargo e pagamento de todo o período em que ficou afastado da Secretaria.
Em reportagem publicada pelo Viomundo em 3 de agosto de 2015, João Ribeiro foi taxativo:
“Se, em vez de se preocuparem comigo, a CAT [Coordenadoria da Administração Tributária], CAT, a DEAT [Diretoria Executiva da Administração Tributária] e a Corregedoria da Fazenda tivessem investigado e tomado providências em relação ao que eu denunciei ao MP em 2003, elas poderiam ter evitado o desvio de bilhões de recursos, consequentemente economizado bilhões para os cofres públicos paulistas”.
Na realidade, o esquema para fraudar o ICMS e beneficiar empresas e funcionários corruptos é anterior à denúncia de João Ribeiro.
Já em 2001, a delegada tributária  Neiva Fabiano Gianezi, de Bauru, denunciava ao MPE-SP o esquema de liberação irregular de R$ 9 milhões crédito acumulado de ICMS a favor da Bertin, sediada em Lins (SP). Na época, o maior frigorífico brasileiro.
“Temos documentos suficientes para dizer que há irregularidade. Essa operação de repasse de ICMS ocorreu de forma ilegal, causando prejuízos de pelo menos R$ 9 milhões aos cofres estaduais”, afirmou, em 2003, José Fernando Cecchi Junior, promotor de Justiça e Cidadania, que atuava no caso ao repórter José Reina, do Diário de São Paulo (aqui eaqui).
Na representação ao MPE-SP, o deputado estadual Carlos Neder relembra outros dois casos envolvendo apuração de fraudes fiscais por frigoríficos do Estado de São Paulo.  Um deles é a Operação Grandes Lagos, realizada pela Polícia Federal em 2006. O outro, a Operação Tresmalho, feita pela Sefaz-SP, em  desdobramento da Operação Grandes Lagos.
frigorífico -- operações 1
frigorífico operações 2
“Há algo de podre, muito podre, na Secretaria da Fazenda, que é responsável pelo acompanhamento do recebimento de tributos importantes, como é o caso do ICMS”, estranha o deputado estadual Carlos Neder, em pronunciamentorecente na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. “No momento em que as denúncias referentes à Secretaria da Fazenda, sobretudo a máfia do ICMS, vem aflorando, o governador Geraldo Alckmin resolveu trocar a cúpula da Receita, em meio a esta investigação.”
Por tudo é muito importante o MPE-SP estender as investigações ao setor de frigoríficos e ouvir o Sindicato dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo, como propõe a representação de Neder.
Ao mesmo tempo, responder uma pergunta até agora não esclarecida: Por que o governador Geraldo Alckmin insisti em privilegiar os frigoríficos?

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