Golpe, recessão e as possibilidades para os nossos netos

Belluzzo adverte: 'Se o Estado age como o desempregado, que corta tudo, a recessão se aprofunda. Sem crescer as coisas ficam muito complicadas no capitalismo'.

por: Saul Leblon - na Carta Maior - 27/09/2015

Lula Marques / Agência PT

‘Nós sofremos hoje de um ataque de pessimismo econômico. É comum ouvir as pessoas dizerem (...) que um declínio na prosperidade é mais provável que uma melhoria na década que se estende à nossa frente. Eu acredito que esta é uma interpretação grosseiramente errônea do que está acontecendo conosco’ (Keynes; 1930)
 
A negociação de um novo ministério em que o PMDB passa a deter fatia considerável do orçamento e do poder -- imediatamente, não na arriscada perspectiva de um golpe— deixou o conservadorismo entre estupefato e irritadiço.

 
O ex-presidente Fenando Henrique Cardoso apressou-se em sentenciar seu douto entendimento sobre mais essa lâmina que cruza a noite de golpes, autogolpes e contragolpes em que se transformou a luta pelo poder.
 
‘Dilma se aliou ao demônio’, esbravejou, passando recibo.


 
Estamos falando do personagem cujo governo foi uma coabitação de carne e osso com demos que há séculos espetam o tridente no lombo da população brasileira.
 
A crispação vai além da ressentida perda de exclusividade.
 
Comodoros da esquadra golpista, em cujos porões se replica o balé de punhais, agora entre Aécio, Serra, Alckmin etc--  temem que a reacomodação ministerial abra uma janela de tempo e oxigênio no labirinto crise.
 
E ponha tudo a perder ao evitar que o país se perca.
 
Opera-se, como se vê, na estreita pinguela que interliga o tudo ou nada em meio à densa noite de azeviche que se abate sobre a história brasileira.
 
Encadear à aposta ministerial uma iniciativa capaz de reverter  a assombração recessiva é a única chance, antes que o parafuso econômico ponha tudo a perde.
 
Uma espécie de suicídio induzido pela dedução do Estado a partir da contabilidade doméstica asfixia o debate racional da crise.
 
Colonizado pela circularidade do ajuste, o senso comum comparece e reage à insuficiência dos cortes pedindo outros.
 
‘E, todavia, são coisas muito distintas’, ensina a paciência jesuítica do maior economista brasileiro vivo, Luiz Gonzaga Belluzzo. 
 
Aos repórteres que o procuram cheios de entusiasmo pela tesoura ortodoxa, ele adverte: ‘Se o Estado age como o desempregado, que corta tudo, a economia naufraga; a recessão se aprofunda’. E quase num desabafo diante da resistência do material a ser desasnado: ‘Capitalismo sem crescimento é inviável. Sem crescer complica; as coisas ficam muito complicadas’.
 
As coisas estão ficando muito complicadas no Brasil, onde níveis de endividamento pessoal, privado e público, em moeda local e estrangeira, estão sendo privados dos fluxos de receita que os mantenham solváveis.
 
A intuição atilada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva soou o sinal amarelo: a agenda pós-ajuste tornou-se uma questão de vida ou morte.
 
Por onde começar?
 
O programa do golpe não hesita. 
 
Ademais do arrocho inclemente, as ‘complicações’ decorrentes da purga recessiva recomendam concluir o trabalho iniciado pelo PSDB nos dois governos FH.
 
A ex-diretora do programa de desestatização do BNDES então, Elena Landau, deu a largada em artigo de 17/09, publicado na Folha, cujo título dispensa adjetivos -- ‘É hora de privatizar’.
 
A tucana que saiu do BNDES para o banco Oportunity, onde –junto com o ex-marido, e ex-presidente do BB no governo FHC, Pérsio Arida--  foi assessorar clientes de Daniel Dantas a adquirirem empresas públicas por eles privatizadas, dobra a aposta:
 
‘A crise abre oportunidade para nova rodada de privatizações... A lista de ativos federais, estaduais e municipais a serem vendidos pode e deve ser ampliada. O montante de recursos a serem arrecadados é grande. Some-se ainda o plano de desinvestimento da Petrobras e os valores duplicam; o BNDES deve recuperar sua vocação para coordenar o projeto de desestatização nacional’.
 
É isso.
 
E o retrospecto indica que essa turma não é de brincadeira.
 
A meta do equilíbrio fiscal a ferro e fogo condiciona, como se vê, o futuro da sociedade.
 
A abrangência do desenvolvimento e a sorte das gerações futuras tem seu destino ameaçado.
 
A peça-chave dessa segunda onda de alienação patrimonial é formada pelas maiores reservas de petróleo descobertas e inteiramente mapeadas no século XXI.
 
O pre-sal é dinheiro na mão.
 
Em quantidades oceânicas.
 
Ainda que a cotação do barril se estabilize em US$ 55, sua densidade energética imbatível e a rentabilidade  líquida e certa das reservas brasileiras,  fazem desse patrimônio um dos alvos mais cobiçados da guerra econômica global. 
 
Serra –‘ o mais entusiasta defensor da venda da Vale’, admitiu FHC— é o general de campo dessa cobiça incansável, como disse Chico Buarque de Hollanda.
 
O assalto ganha ares de pertinência, porém,  quando se verifica que a dívida da Petrobras –mas de US$ 100 bi-- de fato, atingiu proporções preocupantes.
 
A estatal criada por Vargas em 1953, a contragosto do PSDB que se chamava UDN, arfa sob um torniquete de duas voltas.
 
Uma queda da ordem de 50% nas cotações do barril nos últimos 12 meses espreme sua receita; a desvalorização de mais de 50% do real, potencializa sua dívida. 
 
Para arrematar, o corner financeiro é vitaminado pela paralisia da rede de fornecedores e empreiteiras, em consequência da Lava Jato.
 
A cadeia do petróleo foi redesenhada nos últimos anos no Brasil.
 
Para o desenvolvimento, a Petrobras hoje é muito mais importante do ponto de vista estratégico do que quando foi criada por Vargas. 
 
O petróleo brasileiro deixou de ser apenas uma fonte de abastecimento para ser uma usina industrializante, geradora de emprego, ciência e pesquisa, fundos para educação e saúde, soberania e poder geopolítico. 
 
Representa talvez o derradeiro e mais valioso legado da luta pelo desenvolvimento justo e soberano para o futuro da nação e de seus filhos.
 
Isso tudo está por um fio. 
 
Ações irrefletidas de venda e desmembramento de áreas para fazer caixa podem seccionar cadeias de coerência estratégica e produtiva.
 
A pressão de centuriões das petroleiras multinacionais, a exemplo de Serra e assemelhados, avança para romper o lacre garantidor de toda a engrenagem.
 
Se o regime de partilha for derrubado, como querem, a supervisão obrigatória da Petrobrás na exploração de cada poço das novas reservas, graças a uma participação cativa de pelo menos 30% nos consórcios, cairá por terra.
 
Não é uma fatalidade, embora o colunismo isento e patriótico faça enorme esforço para torna-lo assim. 
 
O país dispõe de três trunfos para reagir: reservas internacionais da ordem de US$ 380 bi; um mercado de massa que já representa 51% da população (escala que o credenciaria a figurar no G20) e o pré-sal.
 
Não é pouco.
 
Na verdade, é muito. 
 
Poucas nações no planeta menosprezariam essas potencialidades na resposta a uma transição de ciclo de desenvolvimento como a que se vive por essas bandas
 
A nação golpista, seus aliados antissociais e antinacionais, cerra braços nas fileiras das exceções.
 
Por isso a interação desses trunfos só acontecerá pela articulação do desassombro com a mobilização de forças sociais articulados em uma frente ampla que conquiste o consentimento da nação.
 
Mas a avenida existe.
 
As reservas brasileiras em dólar estão aplicadas predominantemente em títulos e papéis indexados à taxa de juro baixa do mercado internacional. 
 
Um exemplo.
 
No primeiro trimestre deste ano o governo tomou empréstimos no mercado interno, a taxa de juro média de 5%, para adquirir dólares dos exportadores. 
 
Na aplicação desses dólares recebe juros de 0,16%. 
 
A diferença entre o custo de comprar e o de carregar as reservas foi de R$ 48,358 bilhões só nesses três meses. Ou seja, cerca de US$ 11 bi por trimestre; algo como US$ 44 bilhões/ano.
 
O desequilíbrio autoriza um exercício bastante preliminar de realocação de passivos e ativos que pode dar lastro financeiro ao resgate do futuro acuado hoje na crise da Petrobras.
 
Passo um:
 
-- se o governo brasileiro comprasse a metade da dívida externa da Petrobras junto aos credores internacionais, com deságio, e gastasse nisso US$ 40 bi das reservas não abalaria seu air-bag de dólares, que cairiam para ainda expressivos US$ 340 bi.
 
O país tornar-se-ia ele o principal credor da Petrobras. 
 
Passo dois:
 
-- abre-se assim um espaço para aliviar drasticamente o impasse de caixa da estatal, sem gerar prejuízo ao Estado. 
 
Ao contrário.
 
Passo três:
 
- a dívida que apenas trocou de mão seria alongada e indexada, por exemplo, a barris/equivalentes de petróleo, com base na cotação média projetado para os próximos anos.
 
A Petrobras recuperaria seu fôlego e a capacidade de reorganizar soberanamente a cadeia do pré-sal.
 
O carregamento das reservas brasileiras ficaria mais barato ao país.
 
Modelos semelhantes poderiam –deveriam—  ser cogitados para sanear a cadeia das empreiteiras do PAC e do pré-sal trocando-se, no caso, a remuneração em barris por ações das respectivas companhias, com alívio para bancos credores e dividendos superiores à remuneração das reservas.
 
São especulações rudimentares, por certo.
 
Exigem rigoroso trabalho de aprimoramento e avaliação de consistência financeira.
 
O que fica claro, porém, é que há mecanismos de ajuste para a superação de gargalos para além da lógica recessiva.
 
E que, por tabela, aliviariam o horizonte pesado das expectativas econômicas que ora asfixiam o investimento, o emprego, o consumo e a receita do governo.
 
Não é a solução Elena Landau que fará isso.
 
A solução tucana tem sua consequência precificada na sulforosa receptividade que desfruta junto a círculos especulativos.
 
Sua lógica é sabida e sabichona.
 
Trata-se de empobrecer o Brasil para enriquecer fundos e capitais ansiosos por ‘comprar o país’ na bacia das almas de uma crise, em certa medida, magnificada pelo autofalante conservador.
 
A alternativa consiste em fazer o oposto, não se antecipar ao que eles fariam.
 
Trata-se de ordenar a economia para servir aos interesses do credor máximo de um país, o seu povo, impedindo a rapina do seu presente e a sonegação das possibilidade econômicas  de futuro aos seus filhos, aos filhos e netos que um dia eles terão.
 
Um bom começo é afrontar o ataque de pessimismo que paralisa a sociedade e que, como disse Keynes, por outras razões, em 1930,  ‘é uma interpretação grosseiramente errônea do que está acontecendo conosco’.

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