IHU On-Line - Quais são as principais doenças associadas à água contaminada e como essa questão é vista em termos de saúde pública?
Fernando Spilki - Quando pensamos em
doenças de veiculação hídrica, o foco está principalmente relacionado às gastroenterites (vômito e diarreia). Essas doenças são uma das principais causas de atendimento de crianças nos serviços de saúde dos países em desenvolvimento, são especialmente importantes nessa faixa etária, bem como em idosos e imunossuprimidos e, para piorar o quadro, muitas vezes os adultos saudáveis transmitem esses agentes aos corpos d'água pelos dejetos sem apresentar qualquer sintoma, o que permite a perpetuação desse ciclo onde o sistema de saneamento básico for ineficiente. Nesse âmbito, diferentes microrganismos estão envolvidos com diarreia, mas os vírus sem dúvida têm grande importância, em parte por que não são monitorados e os atuais indicadores de qualidade microbiológica da água (coliformes fecais) não são capazes de apontar sua presença. Um copo d'água livre de coliformes fecais pode conter vírus, ou mesmo outras bactérias e protozoários.
Além das gastroenterites, esses patógenos de veiculação hídrica podem causar conjuntivites, hepatites, doenças respiratórias e mesmo doenças ainda mais graves.
IHU On-Line - O que são os vírus entéricos e como se dá a proliferação e contaminação deles pela água?
Fernando Spilki - São vírus com uma característica estrutural peculiar (ausência de envelope lipídico) que os torna muito resistentes no ambiente, desse modo evoluíram para essa via de transmissão fecal-oral e por se multiplicarem nas células do trato digestivo, chamados entéricos.
Um indivíduo sadio ou doente pode excretar bilhões de partículas desses vírus em uma defecação. Sem o devido
tratamento do esgoto, mesmo que uma parte desses vírus seja destruída no caminho até os corpos hídricos, sobraram milhões de partículas virais capazes de contaminar a água e causar infecções em outros indivíduos. Imagine isso replicado para milhões de pessoas em uma bacia hidrográfica.
IHU On-Line - Em que consiste sua pesquisa sobre a detecção de vírus da Hepatite E em amostras de água? Quais são as principais constatações da pesquisa até o momento?
Fernando Spilki - A
hepatite E é causada por um desses vírus entéricos. É uma doença muito especial, pois expressa bem algo contemporâneo em saúde: a necessidade de entender o
processo de saúde como algo único, não podemos mais dissociar em muitos casos a saúde humana, animal e ambiental. Esse vírus da hepatite E causa infecções assintomáticas em suínos, pode ser transmitido aos seres humanos pela água contaminada pelos dejetos desses animais ou mesmo alimentos de origem suína não devidamente cozidos. Em pessoas pode causar desde infecções subclínicas (sem nenhum sinal visível) até
hepatites graves. É uma doença emergente em nível mundial. Na nossa
Bacia dos Sinos ainda não detectamos o vírus na água, mas em outras regiões do
Rio Grande do Sul, onde há maior presença de atividade suinícola, detectamos o vírus de forma muito frequente em amostras de dejetos suínos e de efluentes de suinocultura.
IHU On-Line - Uma das suas pesquisas investigou quais doenças foram possivelmente transmitidas pela água na região da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos. Quais são as conclusões da pesquisa? Que doenças estão associadas à contaminação da água do Rio dos Sinos?
Fernando Spilki - Fizemos um enorme esforço de pesquisa em conjunto com a CORSAN, onde monitoramos durante 24 meses para vírus e centenas de outros parâmetros a água captada pela companhia no Sinos e afluentes para tratamento. Ao mesmo tempo acompanhamos os atendimentos notificados pelos órgãos de saúde para doenças de veiculação hídrica na nossa região. Pudemos observar que há um forte impacto da falta de tratamento adequado do esgoto na qualidade da água nessa bacia hidrográfica e que as doenças de veiculação hídrica sofrem variação ao longo do tempo conforme o ciclo hidrológico (mais ou menos chuva por exemplo), o que já foi observado em outros locais.
IHU On-Line - Quais são as principais dificuldades ou problemas dos sistemas de tratamento biológico de esgoto doméstico e água para consumo no sentido de tratar a água e torná-la potável e livre de vírus, por exemplo?
Fernando Spilki - Em primeiro lugar, antes de discutirmos a eficiência dos processos, devemos elevar de forma expressiva os
índices de tratamento de esgoto instalados. Tomemos em conta que na bacia hidrográfica do
Rio dos Sinos ainda convivemos com uma taxa de tratamento de esgoto doméstico ínfima, da ordem de 4,5% de tudo que é produzido. Em um segundo momento, deveremos sim lidar com a adoção de tecnologias que levem a uma efetiva degradação de microrganismos mais resistentes, tais como vírus e protozoários, pois as estações de tratamento de água e esgoto convencionais usualmente não dão conta desta tarefa. Todo o sistema atual está baseado na resistência dos coliformes fecais aos
processos de desinfecção, que infelizmente é muito mais baixa que a desses patógenos emergentes. Desse modo, o que é eficaz para os coliformes pode ser inócuo para esses outros agentes. Daí a necessidade de desenvolvermos novas soluções para degradação e remoção desses agentes em esgoto e água, sem perder a noção de que há a necessidade de essas
novas tecnologias terem um custo baixo e serem de adoção fácil.
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