Mino Carta: A fênix nativa
Editorial
Impeachment
por Mino Carta — na Carta Capital - publicado 14/08/2015 03h27
Se o golpe não convém, ressuscite-se a conciliação
Antônio Cruz / Agência Brasil
O governo Dilma oferece aos inquilinos da casa-grande as garantias para deixá-los sossegados
Com K ou sem K, a palavra caos se oferece a diversas interpretações. Em 1964, havia quem acreditasse que o golpe de Estado salvaria a pátria ao sustar o caos no nascedouro.Passados 51 anos, não falta quem entenda que do golpe nasceria o caos.
Cinquenta e um anos atrás, e mesmo desde agosto de 1961 com a renúncia de Jânio Quadros, a casa-grande deu para sentir-se ameaçada por Jango Goulart, o vice alçado à Presidência. O mundo era outro, dividido ao meio entre dois impérios, beligerantes de uma guerra dita fria. Os graúdos nativos apreciavam a condição de súditos do império do Oeste, o qual padecia, porém, de uma espinha no flanco, fincada bem ali a 100 quilômetros da Flórida, Cuba fidelista.
Jango ostentava um passado buliçoso, a começar pela origem getulista, e a prosseguir pela valente militância petebista, sem exclusão da perigosa proximidade com o cunhado Leonel Brizola. Só faltava chamar San Tiago Dantas para a Chancelaria. Implorada pela casa-grande e seus porta-vozes midiáticos, sustentada por Washington, a intervenção militar se deu sem derramar uma única, escassa gota de sangue nas calçadas. Falsos pretextos fazem parte do jogo.
O golpe de 64 é uma das grandes desgraças brasileiras, a mais recente. Interrompeu um processo natural que, ao longo dos anos, décadas talvez, demoliria a casa-grande e a senzala. Sofremos até hoje suas consequências.
Em relação à situação atual, gravemente turvada pelo descontrole parlamentar, pelo fracasso petista, pelo reacionarismo tucano, pelo terrorismo da mídia em meio a uma profunda crise econômica provocada tanto pela fé neoliberal que assola a Terra quanto por erros governistas, a posição de CartaCapital já foi exposta inúmeras vezes. Entendemos como golpismo puro qualquer propósito de impeachment ou de convocação de novas eleições.
Por que, pergunto intrigado aos meus pensativos botões. Respondem que o mundo também mudou, o maniqueísmo dos anos 60 assumiu formas e cenários adequados a alterações fatais. Ao observar a conjuntura mundial, constata-se que o Brasil deixou de ser aquele súdito submisso de Tio Sam graças à política exterior praticada por Lula, ainda que Dilma tenha baixado um tanto a bola. Vale também registrar que o velho Sam perdeu muito do vigor de antanho. E, de resto, o Demônio hoje em dia não é o comunista. Além disso, as Forças Armadas, conquanto incutam um inextinguível temor como númeno, deixaram de ser, como fenômeno, um exército de ocupação pronto ao papel de jagunço da casa-grande.
É o pano de fundo. Na ribalta, a “guerrilheira” Dilma não é Jango, e seu governo oferta à casa-grande garantias suficientes para pôr em sossego seus inquilinos. Não é por acaso que o diligente bancário Joaquim Levy lá está para executar a lição da própria. Por que intervir, se a vivenda dos especuladores e dos rentistas está em ordem? E, de outro ângulo, por que enfrentar a incógnita do pós-Dilma, se por ora o governo acuado se dispõe a levar em conta, e se possível executar, um pacote de providências excogitadas pelo Senado, reduto, aliás, de numerosos oligarcas?
Melhor assim. Melhor que a tensão diminua e que o pior seja evitado. Nada impede que paneleiros incapacitados para o exercício do espírito crítico, e mesmo para a consciência da cidadania, renovem no domingo 16 seu protesto insensato. Pouco importa, prevalecerá a tendência desenhada pelos graúdos, tão escassamente preocupados com a fragilidade da democracia verde-amarela, mas sobremaneira com sua própria paz espiritual e material.
Na circunstância, melhor assim, repito. Nem por isso perco a oportunidade de assinalar: casa-grande e senzala continuam de pé. Vivemos a enésima versão, revisada e corrigida, da conciliação das elites velhas de guerra, fênix nativa. Percebo que neste momento mexe as asas debaixo das cinzas.
Comentários