Kiko Nogueira: “A delação premiada depende de como corromper um acusado”, diz decano dos criminalistas de SP.
Postado em 25 jul 2015
Paulo Sérgio Leite Fernandes é o decano dos criminalistas em São Paulo. Aos 79 anos, se define como um sobrevivente.
Na ativa desde 1960, Fernandes é autor de vários livros jurídicos e romances. Foi professor de Processo Penal e conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
“Procuro ensinar aos moços a arte de dizer não. Desgraçadamente, as faculdades ensinam a obediência estrita. Formam advogados medrosos. É ruim para o Brasil”, diz.
Ele deu o seguinte depoimento ao DCM sobre o juiz Sérgio Moro, a Operação Lava Jato e o sistema de delação premiada.
“Eu passei a ver o Direito no sentido quase psiquiátrico. Classifico o juiz Moro como uma figura heroica, psicanaliticamente. Bem e mal. O juiz Moro é jovem. Ele é a encarnação do vingador. Ele acredita naquilo.
Nós precisamos de quem acredite. O ser humano precisa do ícone do santo, do superhomem, do animal a ser seguido. Isso funciona até mesmo entre as formigas vermelhas da Amazônia. Nós também agimos como agem os cães ou os tigres que marcam seu território. Podemos até nos sofisticar, mas o princípio é o mesmo. Nós somos iguaizinhos.
Temos os chamados animais alfa. O touro, que guia a boiada até o precipício… Vão 500 bois atrás dele. Até as hienas têm liderança.
Dentro desta classificação meio zoológica, o juiz Moro é um animal alfa.
Além disso, ele tem legitimação jurídica para fazer o que faz. Moro representa a entronização de tudo aquilo em que o povo acredita no sentido do bem combater o mal.
Ele não é, obviamente, perfeito. O Chico Buarque fez uma canção que fala que “procurando bem, todo o mundo tem pereba”. O Moro tem suas perebas também.
O sistema processual penal francês é dicotomizado. Tem o juiz de instrução e o juiz que se diria julgador. O juiz de instrução francês tem origem no ministério público. Ele é um investigador. Colhe as provas e as entrega ao poder judiciário encarregado do contraditório penal. O juiz de instrução é, na verdade, um perseguidor.
O juiz penal, embora não seja inerte, é imparcial — ao menos em tese. A gente sabe que não existe imparcialidade. Nós inventamos que ele é imparcial. É coisa nenhuma. Ele depende até mesmo do estado de humor, se trepou com a mulher na noite anterior etc. Você acorda bem, acorda mal, acorda deprimido, impressionado.
O juiz acorda assim. Em tese, porém, a imparcialidade é prerrogativa do magistrado.
O juiz Moro é parcial e a parcialidade resulta desse pressuposto de que ele é o salvador da moralidade do país. Ele veste a toga e se torna o sacerdote mor da restauração moral do trato da coisa pública.
Moro acredita nisso. É um fenômeno biopsíquico. Não acredito que isso seja especialmente uma boa distribuição da justiça. Esse tipo de compulsão leva o julgador a exacerbar a atividade investigatória e a esquecer a necessidade de equilíbrio que é a garantia do contraditório.
Esse jovem, embora convicto de praticar o bem, quando da distribuição da justiça no sentido de equilíbrio entre acusação e defesa, é um homem perigoso.
O perigo do arbítrio desmedido.
Hoje ele é o ser humano mais determinado que o Brasil conhece. Ele é um compulsivo. Ele busca o Santo Graal.
No caso da Venina, ele está funcionando como um juiz de instrução [o Ministério Público Federal dispensou a ex-funcionária da Petrobras Venina da Fonseca por “irrelevância”, mas o juiz Sérgio Moro decidiu manter seus depoimentos].
Não é normal no sentido forense. Extrapola os limites. O juiz penal brasileiro não é extático, mas é inerme. Com esse tipo de atitude, ele vai além do limite. Se acusação e defesa concordam, você não tem nem mesmo como reclamar por habeas corpus. Ele se introduz na zona cinzenta e não passa confiança.
É herança de um imperialismo judicial. No sentido de investigação, pode ser meritório. No sentido de obediência à nossa teoria e prático do processo penal, é uma extravagância.
Moro é diferente do Joaquim Barbosa. Barbosa é uma criatura emocionalmente desarticulada. O Moro tem componentes compulsivos bem acomodados num comportamento externo obediente às normas de conduta perante a comunidade.
Nós somos estritamente comportamentais. Na vida pública, ele parece ser irrepreensível. Educado, trata as partes com cordialidade, aparentemente tem saúde boa e está fazendo o serviço dele.
O doutor Barbosa vestiu uma capa de Batman para lutar contra os meliantes. Se o juiz se conscientizar de que é um instrumento de equilíbrio no combate entre o bem e o mal, ótimo. Ele nunca é o fautor. Esse combate entre o bem e o mal é tão sinuoso que o bandido e o mocinho se entrelaçam. É uma simbiose. Eu tenho a esquisita sensação de que o mocinho é também o bandido.
Na delação premiada, para haver a chamada “colaboração eficaz”, eu, agente do bem, ofereço a você, delinquente, o perdão se você delatar seu confrade, seu irmão, sua mulher.
Ele cometeu uma infração talvez mais grave que o outro. Quando ofereço o perdão, estou tergiversando porque eu não posso perdoar. Eu posso perdoar quem se arrepende, talvez, mas não posso perdoar quem tem como mérito único denunciar quem se comportou da mesma forma. Isso é tergiversação, não importa o que diz a lei.
Mais ainda: não posso oferecer o perdão sob condição de não tomar parentes como reféns. Isso é coação e constrangimento. Já houve casos de negociação assim: “se você poupar minha mulher, eu confesso tudo”. Isso aconteceu muito durante a ditadura.
O próprio Yousseff. Eu pensaria muito antes de acreditar nele. Há advogados especialistas na delação premiada. Eu acho podre. O mocinho vira bandido também. Ele comete um crime para realizar o bem.
Estou falando no sentido ético. Ela é legal. Mas era legal para os nazistas mandarem os judeus para as câmaras de gás. Virou rotina no Brasil. Nós copiamos dos Estados Unidos. Acredito que haverá uma reação na sociedade dentro de cinco ou seis anos.”
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