Wanderley Guilherme: Ficar bem na foto com a memória alheia


Por Wanderley Guilherme dos Santos - no Segunda Opinião - 12/06/2015

Liberdade de informação é uma ótima ideia, mas a futrica das biografias não autorizadas não é tão barata assim. Desde que inventaram a moeda para viabilizar as trocas e contabilizar o lucro, discute-se o que é próprio e não é próprio vender, como, quando e por quanto. A Igreja católica já vendeu indulgências, o Império brasileiro vendia títulos de nobreza e a internet vende tudo – corpo, alma e a reputação de terceiros. Há hospitais espalhados pelo mundo especializados no comércio de transplantes de órgãos, mercadejados por infelizes. Nem vale mencionar a prostituição, porque esse negócio conta, na verdade, com a cumplicidade de todos.

Mesmo antes de se inventar a imprensa alugava-se e vendia-se opinião, e houve tempo em que transmitir conhecimento a soldo era considerada uma atividade mais do que vulgar, charlatanesca. Os sofistas, antepassados dos professores, sofreram o diabo com os platônicos enquanto, hoje, há quem proteste contra a repressão às artes da quiromancia e dos videntes das bolas de cristal. Jornais e revistam que se prezam trazem, obrigatoriamente, seções de astrologia, mas saiu de moda o consultório sentimental, expulso do mercado pela psicanálise. Quem, afinal, define o que é mercadoria legítima e o que não pode ser vendido, apenas doado?
Há três séculos se divulga que é mercadoria, em princípio, tudo que se submete às curvas da oferta e da demanda. Se há oferta e demanda há preço e se há preço, há mercadoria. Meio rude, mas é o que consta dos autos. Ora, a exigência de compensação financeira para autorização de biografias, ainda que antipática, não viola as regras gerais da sociedade contemporânea. Ninguém está na vida só para ser simpático e, como diz o outro, isto é, David Ricardo, todo mundo precisa sobreviver. Embutida na renascentista tese da liberdade de informação esconde-se esta desagradável questão: é ou não aceitável que alguém transforme a memória de sua vida em mercadoria? Nem os juízes nem a crítica se fizeram essa pergunta, preferindo aderir à fácil bandeira da manada. Não são fetichistas do mercado? Pois mercado coerente é isso aí.
Ajuste fiscal pode, mas vender memória, não? Estranho.

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