Se a CBF fosse ‘o Brasil que deu certo’, Dunga estaria desempregado

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“Eu até acho que eu sou afrodescendente, de tanto que eu apanhei e gosto de apanhar. Os caras olham pra mim: ‘Vamos bater nesse aí’. E começam a me bater, sem noção, sem nada. ‘Não gosto dele’ e começam a me bater.”
Dunga em entrevista coletiva
Dunga durante entrevista no Chile (Foto: Nelson Almeida/AFP)
Há quem tenha dito que Dunga não quis dizer o que disse. Que se atropelou nas palavras, na própria incapacidade de se expressar, já comprovada em diversas ocasiões. Talvez. Quem não convive intimamente com o técnico da seleção brasileira não tem como saber o que ele pensa sobre questões além do futebol. Mas o teor de sua frase, intencional ou não, é inaceitável. Fosse a CBF o país que deu certo, como disse Carlos Alberto Parreira, Dunga desde sexta-feira estaria desempregado.

Mesmo que não se saiba o que pensa o técnico sobre questões raciais, mesmo que a frase tenha sido mal formulada, como tantas outras ditas por ele em suas mais de três décadas trabalhando no futebol, Dunga fez uma declaração de teor racista.
Negros não gostam de apanhar. Negros foram subjugados, arrancados de suas famílias e de sua terra para uma vida de sofrimento. E este sofrimento, óbvio dizer, não acabou com a abolição da escravatura. A maior parte dos pobres brasileiros são negros ou seus descendentes, assim como os presidiários do país. Os negros são minoria entre as classes A e B, são minoria nas universidades. Os episódios de racismo nas ruas brasileiras são comuns. Como mostrou relatório do Ipea, analisado por Douglas Belchior, 70% dos assassinatos no Brasil têm negros como vítimas.
Dunga passou toda sua vida no futebol cercado de negros, porque é o futebol uma das poucas áreas em que lhes é permitido que sejam estrelas, ascendam socialmente e ganhem dinheiro. E Dunga sabe a vida de sofrimento que tem um negro no Brasil. Daí ser ainda mais grave sua frase infeliz numa entrevista coletiva durante a Copa América, com os ouvidos do mundo prontos para ouvir o que diria.
O treinador é um homem branco, bem-sucedido, ocupa um cargo importante e é extremamente bem remunerado. Ao comparar as críticas que recebe por seu trabalho com as surras que negros receberam no passado e recebem no presente, Dunga prejudica a luta de todos aqueles que querem direitos iguais, que desejam ver negros, gays, homens e mulheres de todas as religiões recebendo tratamento igual, oportunidades idênticas. Tendo o mesmo acesso a educação e saúde, a boas condições de vida.
Se desculpar por meio de uma minúscula nota divulgada pela CBF, em que diz que “a maneira como me expressei não reflete os meus sentimentos e opiniões” não apaga a frase desastrosa de alguém que, cinco anos atrás, ao convocar a seleção para a Copa que seria disputada na África do Sul, disse que não poderia opinar sobre apartheid, ditadura porque não sentiu na pele estas situações.
Aceitar que a frase de Dunga foi apenas mais um equívoco do treinador, como fez a CBF, é um tapa na cara de todos os brasileiros. De todos aqueles que lutam diariamente pela construção de um país melhor.

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