Outro modo de interpretar o Brasil

Para preservar a homicida concentração de renda, ao menor sinal de dificuldade, ecoa a palavra de ordem defendendo que o momento exige austeridade.

Reginaldo Souza Santos (1); Elizabeth Matos Ribeiro(2); Fábio Guedes Gomes (3); José Murilo Philigret Baptista (4); Mônica Matos Ribeiro (5)

 Carta Maior
Jonas Pereira/Agência Senado
As interpretações dos nossos cientistas sociais (à frente, os economistas) referentes aos momentos do mundo e do Brasil têm revelado duas coisas que já desconfiávamos, mas pouca convicção temos revelado acerca delas.
A primeira é quanto à forma de interpretação da realidade: enquanto as ciências duras trabalham diretamente com o fenômeno pesquisado, manipulando e experimentando a realidade em laboratório ou fora dele, as ciências sociais, muito geralmente, trabalham com dados secundários, com uma defasagem média quase nunca inferior a cinco anos; os pesquisadores, muitas vezes, têm pouca ou nenhuma relação com o objeto de pesquisa; às vezes, quando se utilizam de dados com a defasagem de tempo menor, o instrumento de coleta é muito ruim – a exemplo do método de pesquisa Survey. Quando a pesquisa recai sobre questões relacionadas à miséria, pobreza, fome, saúde, etc. os resultados podem contrastar com a realidade – principalmente quando se trata de estudos de acadêmicos “engajados”. Ou seja, enquanto as conclusões dos trabalhos indicam “melhora no quadro social”, pode ter ocorrido, de fato, que os indivíduos integrantes das estatísticas analisadas não existam mais, cuja causa-mortis não seja a velhice, mas exatamente os fenômenos pesquisados: a miséria, a fome, etc.
 
A segunda coisa revelada e que impressiona muito é a nossa capacidade em estabelecer consensos positivos, mesmo em se tratando de uma sociedade com profundos desequilíbrios estruturais e que passa por momentos que dizem, consensualmente, muito delicados. Vejam que passamos os governos José Sarney, Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso falando de transição, como forma de justificar a incapacidade daqueles que dirigiam o destino da nação – só se deixou de falar nessa estultice quando passou a ser motivo de deboche por parte das pessoas mais lúcidas. 
 
Outro consenso preocupante é quando se olha para trás, principalmente do Primeiro Governo de Getúlio Vargas para cá, quando a vanguarda brasileira afirma com altivez, com autoridade intelectual peculiar, que o Brasil avançou muito nestes últimos 70 anos – onde se exalta entusiasticamente o fato do país ter alcançado o status de uma das mais importantes economias industrializadas do mundo! Pouco se fala que há mais de 30 anos nos movimentamos pendularmente, da sétima para a décima posição, em termos econômicos, e vice-versa. Os problemas que temos – como a péssima distribuição da renda e da riqueza, a miséria, a fome, a indigência humana, etc., foram produzidos pela má Administração Política do nosso processo civilizatório recente; por isso configuram como questões que gravitam marginalmente em torno do eixo analítico da industrialização e do desenvolvimento – a análise econômica tem uma grande responsabilidade sobre isso.  Enfim, são problemas que nunca ganham centralidade quando se prospectam qualquer possibilidade de futuro para este País.
 
Mas há ainda outro consenso que vem matando pessoas ao longo do tempo, mas os seus algozes ao invés de irem para a cadeia são premiados com remuneração elevada, ocupando altos postos nas administrações dos grandes conglomerados privados a quem os seus préstimos, verdadeiramente, serviram enquanto estiveram à frente dos negócios do Estado. Para preservar a homicida concentração de renda e da riqueza, ao menor sinal de dificuldade ecoa a palavra de ordem defendendo um consenso em torno da necessidade de que o momento exige austeridade: reduzir a demanda agregada, equilibrar as contas públicas (mas qual é o ponto de equilíbrio?) e estabilizar os preços e com isso criar as condições para a economia voltar a crescer! Desde a crise do balanço de pagamentos de 1980 que as práticas se repetem sem romper com esse circulo vicioso com virtuosidade negativa!
 
O consenso que estamos assistindo nesse momento é o mais preocupante, porque mostra uma flagrante contradição: ao tempo em que o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), que se opôs em disputa canibal no processo eleitoral recente, põe para dirigir os destinos da nação pelos próximos quatro anos uma trinca formada por reservas do time do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Ao tempo em que isso está ocorrendo, a população vai às ruas e diz em alto e bom som e também em letras garrafais que não quer o que o governo está lhe oferecendo – ela quer ver implantada a proposta que foi submetida ao escrutínio universal em outubro último e saiu vencedora.  Pode-se concluir, então, que o consenso que o governo busca estabelecer para fazer o ajuste fiscal tem sua origem nos interesses das elites que dirigem o país e conspiram contra os desejos mais simples e meritórios da população brasileira – que é o de sobreviver, pelo menos, com a mínima materialidade possível. 
 
Essa política, além de ser um procedimento errado, porque fora de tempo e lugar, quer nos fazer esquecer que o problema não é de natureza econômica. É preciso, por exemplo, que os macroeconometristas, que conduzem a política brasileira desde 1985, entendam que o ciclo econômico – expansão, desaceleração, depressão, novamente expansão – não é um movimento natural da economia. Se há ciclo econômico é porque o movimento dos negócios está sendo bem ou mal administrado. Para ficar no exemplo recente: o esgotamento das medidas anticíclicas tomadas em 2008 e 2009 era previsível. Sabemos que toda e qualquer medida econômica produz efeitos dentro de determinado prazo – a teoria já estudou à exaustão o conteúdo e sentido do multiplicador e do acelerador; então, com as medidas tomadas naquele momento não poderia ser diferente, principalmente considerando o fato de que desde o início foi dito que aquelas medidas eram de natureza anticíclica, voltadas mais para o consumo, portanto de curto prazo. Assim, se a economia se encontra agora nesse desespero é porque, de duas, uma: ou não se sabia o significado do que se estava fazendo ou administraram muito mal o nosso destino ou ainda as duas impropriedades simultâneas. Quaisquer das alternativas tornam a condução do governo irresponsável, catatônica e preocupante.
 
O resultado dessa política tem sido uma tragédia para a economia e para a parte da população cuja sobrevivência depende exclusivamente da política pública estatal. Vejam que nos últimos 35 anos, período em que tem predominado essa insensatez, a participação dos investimentos e dos juros na estrutura de gastos do Estado brasileiro revela um claro conflito de interesses (trade-off)). 
 

 
Esse horror da política estatal brasileira (para usar a expressão da ensaísta francesa Viviane Forrester) causa súbito espanto quando se olham os números absolutos. No mesmo período, de 1980 a 2014 – com os dados atualizados para preços de janeiro de 2015 –, o Estado gastou R$ 861 bilhões com investimentos e R$ 3 trilhões e 584 bilhões com juros!  Para fazer frente a essa tragédia fiscal, a receita estatal tinha que aumentar na mesma velocidade e violência: passou de 24,5% do PIB, em 1980, para 37,7%, em 2014. É inacreditável que este País ainda não tenha explodido! Não obstante, os que até aqui ganharam com essa política devem acreditar que algo para mudar pode estar em curso.
 
Assim, é notório que os problemas políticos e administrativos vividos pelo governo federal – pela presidente Dilma, mais precisamente – são estruturalmente graves e não serão resolvidos pela retórica vulgar (por falta de mentes mais ilustradas) como instrumento de persuasão, conforme está demonstrado nas tentativas mais recentes.
 
O que poderá produzir efeito positivo, então? Implantar medidas macroeconômicas voltadas para o desenvolvimento econômico, passíveis de serem realizadas e que produzam resultados impactantes sobre a distribuição da renda e sobre os níveis de bem estar das camadas mais necessitadas da oferta de bens e serviços públicos – além da relevância de curto e médio prazo nos níveis do emprego e da renda agregados. No curto prazo, é vital o Tesouro Nacional, através da Petrobrás, retome os pagamentos dos serviços já prestados nas cadeias produtivas do petróleo e da industrial naval e garanta a continuidade dos mesmos, principalmente para os projetos que estão em fase avançada de execução. Isto é mais importante para a saúde futura do País do que a garantia de 1,2% do PIB de superávit primário, em 2015, por exemplo.
 
No meio desse turbilhão, a estupidez governamental tem muito espaço para vicejar. Acabou de ser anunciada a nova etapa do Programa Minha Casa, Minha Vida – com a meta de mais três milhões de unidades habitacionais. Como todos sabem, a forma como está sendo executado vem produzindo resultados não muito esperados por conta da insatisfação dos beneficiários em razão da sua incompletude – deslocamento fadigoso (saída do habitat natural para terras distantes) e a ausência de transportes, segurança, saúde, educação e outros serviços. 
 
Nesse caso, o que deverá ser feito? Acabar com o programa e inventar outra coisa e pôr no lugar, como comumente se faz? Certamente não. Só piora tudo! O mais acertado seria implantar ações corretivas dos defeitos detectados nas etapas anteriores do programa e aproveitar a oportunidade para mudar, radicalmente, a Política de Habitação Popular que padece de um erro de concepção, que vem de sua origem, em 1967, com a criação do sistema FGTS/BNH: ao invés de se desfavelizar as áreas degradadas dos grandes centros urbanos, optou-se por deslocar a população para as novas moradias sem achar uma solução para as favelas. Resultados: nesses 50 anos, as favelas estão ampliadas e os novos espaços urbanos muito degradados! A Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, e o Doron, em Salvador, são dois exemplos bem evidentes [entre centenas de outros] do equívoco da Política de Habitação Popular do Brasil.
 
Além da recuperação da dignidade da pessoa usuária, da melhoria da psicologia social e da estética urbana, a opção pela desfavelização é mais barata e de resultados mais imediatos e muitíssimos mais positivos (inclusive os ganhos políticos, posto que todos usam a política pública com esse propósito). As nossas politécnicas e as nossas faculdades de arquitetura, engenharia, economia e administração, que estão espalhadas pelo Brasil, podem trabalhar em propostas nesse sentido em um curto espaço de tempo. Certamente, esse pessoal deve ser chamado ao Planalto para sentir a importância do projeto, formação do grupo-tarefa e a assunção da responsabilidade da missão.
 
Antes, é preciso ter mais precisão conceitual e se desvencilhar de certos fantasmas; de início, é preciso discutir equívocos da evocação keynesiana que muita gente está fazendo nesse instante. 
 
Ao invés de mudar radicalmente essa concepção, adotada a partir de 2009 – abraçando a ortodoxia e ter que ouvir impropriedades de Joaquim Levy, do tipo: a intervenção do Estado é incompatível com a democracia –, dever-se-ia aperfeiçoá-la. De que maneira? Simplesmente saindo do circuito vicioso da política anticíclica keynesiana – que é fundamentalmente de curto prazo. Sabe-se muito bem qual era a filosofia de Keynes a esse respeito, cuja passagem da Teoria Geral, a seguir, é muito ilustrativa: “[...] em tempos de desemprego rigoroso, as obras públicas, ainda que de duvidosa utilidade, podem ser altamente compensadoras...; porém a validade dessa proposição torna-se cada vez mais contestável à medida que nos aproximamos do pleno emprego”. Queremos dizer que, segundo o próprio Keynes, no momento atual, Keynes não serve! Tem-se que ir além disso.
 
Ir além significa as forças política operarem o Estado para realizar uma Política Pró-Cíclica! Os mais ortodoxos em matéria econômica alegarão que, na conjuntura atual, não temos dinheiro para isso. É verdade, o orçamento está restringido, mas o País tem crédito. Considerando o potencial da economia, o índice de endividamento do Brasil é baixo comparado com outras nações, além do que a disponibilidade (liquidez) de dinheiro no mercado internacional está elevada. Essa ação pode ser ajudada por uma política de juros menos covarde e mais convergente com os interesses do povo brasileiro. Já deveríamos ter tomado esse rumo desde 2005, e não o fizemos – infelizmente! Porém esse retardo não é motivo para deixar de fazê-lo – e fazê-lo o mais urgente possível!
 
O ir além também é requerido como uma necessidade do presente porque em economias industrializadas maduras não é mais possível alcançar maior justiça social somente pelo crescimento do PIB, sem alterar a distribuição. Considerando o extraordinário avanço científico e tecnológico dos últimos 100 anos, a perspectiva do pleno emprego (por conta do desemprego tecnológico) fica cada vez mais distante. Isto significa – diz Keynes – um desemprego causado pela nossa descoberta de meios para economizar o emprego do trabalho, a ritmo maior do que aquele pelo qual conseguimos novas utilizações para a força de trabalho.
 
Por essa razão, as políticas públicas ganharam centralidade na concepção de desenvolvimento e foram transformadas em instrumentos da recuperação econômica e da inclusão social, no curso da longa e devastadora crise de 1929/1933; depois de 1970 até os dias presentes, passaram a ser caracterizadas pelo diagnóstico conservador como causas da crise e, por essa razão, vêm passando por processos de revisão e assim perdendo fôlego e espaço enquanto possibilidades para o equilíbrio econômico e a justiça social. Esse processo desestruturou a ação do Estado, cujas políticas estão marcadamente caracterizadas como: improvisadas, desintegradas, inconclusas e altamente custosas. 
 
Porém, com o aprofundamento da crise depois de 2008/2009, os velhos truques da ideologia liberal ficaram expostos, dando mostras que os custos dos “acertos” estão sendo debitado no sacrifício da maioria da população; agora, ela [população] está dizendo que não aceita mais – basta! Independente das muitas interpretações correntes, aqueles que foram às ruas nos dias 13 e 15 de março último disseram exatamente isso – o resto é mero exercício interpretativo oco de nossa intelectualidade que insiste em ficar na arquibancada assistindo um “Fla x Flu” que já terminou!
 
Caso não ocorra uma revolução construída nas ideias que formam o pensamento da Economia e, sobretudo, da Administração Política brasileira, devemos esperar resultados piores dos até aqui conquistados. As ideias devem mudar de acordo com as nossas circunstâncias. As ideias passadas foram construídas e úteis ou não ao seu presente. Hoje, nos servem apenas como referência para modificá-las e orientar o nosso destino. Caso contrário, como diria Keynes, concluímos: Os homens objetivos que se julgam livres de qualquer influência intelectual são, em geral, escravos de algum economista defunto. Os insensatos, que ocupam posições de autoridade, que ouvem vozes no ar, destilam seus arrebatamentos inspirados em algum escriba acadêmico de certos anos atrás. Mesmo não querendo, Keynes se transformou nesse grande economista defunto, cujas ideias ainda aprisionam os homens insensatos que ocupam posições de autoridade no Brasil de nossos dias. 
 
1. Professor Titular da Escola de Administração da UFBA.

2. Professora Adjunta da Escola de Administração da UFBA.
3. Professor Adjunto da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da UFAL
4. Professor Adjunto da Faculdade de Economia da UFBA e doutorando em Administração UFBA.

5. Professora Assistente da UNEB e doutoranda em Administração na UFBA.
Créditos da foto: Jonas Pereira/Agência Senado

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