Irã, sanções e o “grande jogo” da política eurasiana de energia


9/6/2015, Conflicts Forum’s Weekly Comment, 10-17 Abril 2015
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Mesa de negociações entre Irã e P5+1  
A declaração “conjunta” de Lausanne (Irã e P5+1) sobre as linhas gerais de um acordo nuclear já trouxe – apesar de qualquer acordo final ainda estar a vários meses de distância – grandes mudanças à região: o “regente” muito jovem da Arábia Saudita está empenhado numa demonstração do poder e da independência dos sunitas liderados pelos sauditas no Iêmen e na Síria. A possibilidade de um acordo com o Irã também está acrescentando um novo impulso ao “grande jogo” da oferta eurasiana de energia e políticas de mercado.
Por um lado, há a questão das conexões de energia entre Europa e Rússia (que, idealmente, os EUA gostariam de ver desfeitas); e, por outro lado, é a questão de um Irã livre das sanções. Mais uma vez, os EUA tem interesse bem definido aqui: gostariam de ver a energia iraniana fluindo para a Europa, em lugar do gás russo (o que poria o Irã mais próximo do ocidente, e meteria uma cunha nas atuais boas relações entre Rússia e Irã). A resultante dessas várias (e conflitantes) manobras fará moverem-se as placas tectônicas numa direção, ou em outra.
Essa semana, a Rússia montou uma campanha na Europa para convencer os europeus de que o fornecimento de energia – sobretudo no que tenha a ver com a segurança da oferta – é questão a ser despolitizada e desengajada das atuais diferenças políticas que há hoje entre Rússia e UE. A politização das decisões de estado sobre energia (no início da crise na Ucrânia), dizem os russos, opera em direção completamente oposta ao declarado desejo da UE de alcançar segurança no campo da energia.
Não há dúvida de que os russos estão bem certos, ao dizer que as questões da politização de curto prazo e os interesses e requerimentos para investimentos de longo prazo não são itens que se deem muito bem na intimidade. Mas a segunda perna do argumento deles – que merece atenção muito mais profunda – é que, se insistir nessa via, em bem poucos anos a UE poderá estar mergulhada numa crise severa de abastecimento de gás, que líderes europeus não terão como remediar rapidamente.
Para expor seu ponto de vista, os russos trouxeram juntos para a Europa o Presidente da Gazprom, Alexey Miller; o Ministro de Energia da Rússia, Alexander Novak; e mais vários representantes de empresas internacionais de energia, que explicaram que suas empresas ainda trabalham na Rússia (inclusive no Ártico), e que todos já decidiram lá permanecer (com sanções ou sem).
Total (França) e Novatek (Rússia) exploram petróleo no Ártico
O que primeiro chamou a atenção foi que essa exposição (na essência, dirigida à UE) não foi realizada em Bruxelas, mas em Berlim. Já diz muito, sobre a UE de hoje. Em segundo lugar, o Vice-Presidente da francesa Total descreveu a joint venture no Ártico com a Novatek como parcialmente financiada pelos russos (do fundo soberano), parcialmente financiada pela UE e parcialmente financiada pela China. Como se vê, nada de dólares.
Em termos bem simples: o financiamento não-dólar de um dos maiores projetos de Gás Natural Liquefeito (GNL) em todo o mundo tem amplas ramificações para o futuro. Sugere que encontrar financiamento não-dólar para grandes projetos de energia pode ser muito menos problemático do que supõem (e dizem) alguns.
O argumento dos russos é, essencialmente, que a política da UE persegue objetivos conflitantes entre si: quer diversificar a oferta (leia-se: depender menos da Rússia); quer concorrência em todos os níveis (leia-se: nenhuma integração da cadeia de oferta para cima até o consumidor, como tem sido a prática russa); quer preço uniforme (leia-se: sem os russos facilitarem para países favoritos). Mas também quer proteção ao meio ambiente (o que, efetivamente, significa mais gás no mix de energia).
A Rússia compreende muito bem que essa “estratégia de concorrência” da UE só tem a ver com diluir a influência russa na Europa (e privar a Rússia de uma importante fonte de rendas). Mas a Rússia também compreende que a UE está profundamente dividida. Para alguns, a Europa teria errado ao deliberadamente empurrar a Rússia para fora do espaço “europeu” econômico, político e de segurança, com estados membros ainda em estado de irritação contra a Rússia. A Rússia está patentemente apelando para o lado pragmático da Europa, o que é visível em vários estados europeus no momento.
Alexey Miller da Gazprom disse bem simplesmente que essas políticas da UE resumiram-se a uma distorção fundamental da curva de riscos: o imenso investimento fica do lado da produção e do trânsito até o mercado. A UE quis mercado consumidor à prova de risco (múltiplos fornecedores, um único preço de mercado, contratos curtos (permitindo rápida troca entre fornecedores) – mas também quer segurança de fornecimento).
Nessas bases, será que apareceria o massivo investimento indispensável na cadeia de produção? – perguntou ele.
Ao longo de toda a curva, todos os riscos foram empurrados para cair sobre os produtores. Mas a UE também queria segurança no campo energético: queria a segurança de um mercado consumidor de longo prazo – ou não apareceriam os investimentos na cadeia de produção.
Igor Sechin (Rosneft) e Alexey Miller (D) (Gazprom)
Miller fez uma oferta à UE: sugeriu reativar o diálogo de energia UE-Rússia (que atualmente está suspenso), e manifestou a disposição dos russos para trabalhar com o Terceiro Pacote de Energia [orig. Third Energy Package] com a UE. Mas avisou que alguns elementos exigem mais reflexão para se tornarem trabalháveis: visar a um preço comum do gás para toda a UE não resultaria em a UE obter para ela o mais baixo preço uniforme do gás, mas, isso sim, a levaria para um preço mais alto (por contra dos diferenciais de mercado e infraestrutura). Embora fosse verdade que os preços do gás na Europa tenderiam a cair, isso tampouco implicaria um (baixo) preço europeu uniforme: alguns preços no futuro serão determinados por preços Hub (em graus diferentes), mas contratos de longo prazo não são coisas do passado. Bem ao contrário, as partes ainda se interessam por eles (porque ambos, fornecedores e consumidores precisam de garantias de longo prazo).
Por fim, o mesmo Alexey Miller da Gazprom destacou que, no campo do Oeste da Sibéria, o investimento na infraestrutura já foi feito; a capacidade de produção (para fornecer à Europa) já lá está, com significativa capacidade ociosa. Não foi dito explicitamente, mas ficou implícito, que a UE está em risco de “cortar fora o próprio nariz” (ignorando o ativo de primeira qualidade já instalado) para “cuspir na cara” – quer dizer: só para “cuspir” – da Rússia por causa da Ucrânia.
Em resumo, a politização deliberada está arrastando a UE para uma crise. Sim, a UE continuará a ser abastecida com gás e petróleo russos, mas em 2019, termina o acordo de dutos de trânsito com a Ucrânia, para abastecer a UE. Dali em diante, a Rússia abastecerá a UE pelo Ramo Turco, e por um “entroncamento” na fronteira turca (com um duto que poderá avançar pela Grécia para os estados do Báltico, não membros da UE – o que será outro evento com relevante significado geoestratégico).
Mas, como Miller observou, se a UE quer extrair gás desse entroncamento (que deverá está construído em 2017), a UE teria de já ter começado a planejar sua própria estrutura de oleogasodutos. Mas ainda não se vê sinal algum de qualquer tipo de preparação ou planejamento.
Nesse ponto já se pode ver o quadro geral como realmente é: se a UE permanece decidida a reduzir sua dependência dos russos, onde, afinal de contas imagina que estaria sua fonte alternativa para fornecimento de gás?! O Norte da África está mergulhado em confusão e tumultos políticos, e o ISIS cresce por lá; a bacia do leste do Mediterrâneo padece das mais profundas divisões políticas. O Gás Natural Liquefeito dos EUA, ao que tudo indica, será significativamente mais caro que o gás atual, o que minaria a competitividade europeia; o gás do Cáspio, ou, no mínimo, do Turcomenistão, parece destinado à China. Restam o Irã e o Iraque como alternativas possíveis para que a Europa diversifique suas fontes de fornecimento. Mas só – exclusivamente só – se as sanções contra o Irã forem levantadas.
Nesse ponto, é extremamente relevante o comentário de Alexey Miller, sobre a UE querer total segurança como consumidor, à custa da segurança do produtor. Se o Irã, como a Rússia, não tiver nenhuma possibilidade de obter um contrato de longo prazo na UE como compradora, por efeito do Terceiro Pacote de Energia da UE, nesse caso o Irã pode muito bem considerar outras opções para obter essa segurança em outro lugar (uma segurança que será indispensável como garantia para o grande financiamento de que o Irã também precisará).
Pres. da China, Xi Jinping (C) e os PM Nawaz Sharif (D) e o Min. das Finanças do Paquistão, Ishaq Dar
Semana passada [o artigo é do início de abril/2015], o Wall Street Journal noticiou que se esperava que fosse assinado um grande negócio durante a visita do presidente Xi Jinping ao Paquistão [já aconteceu, no final de abril/2015], pelo qual “a China construirá um gasoduto para levar gás natural do Irã ao Paquistão, para minorar a aguda carência de energia que o Paquistão enfrenta”.
Como observou o ex-diplomata indiano convertido em analista, M K Bhadrakumar:
Pequim só pode estar considerando a possibilidade de, adiante, estender o gasoduto até a China. Idealmente, a China gostaria que acontecesse sob a forma de um gasoduto estendido que passasse pelo norte da Índia até a província Yunnan, no sudeste da China. (Xinjiang já é diretamente ligada aos países produtores de energia da Ásia Central.) Significa que a China conta com que, em algum momento, a Índia também se incorpore ao projeto IP.
Originalmente, deveria ter sido projeto de um gasoduto Irã-Paquistão-Índia [IPI] – isso, até meados da década passada, quando Delhi, apanhada numa chave de braço pelos EUA, fugiu do projeto (...) Mas a avaliação dos chineses parece considerar que a Índia reagirá com pragmatismo em relação a iniciativas com o projeto de gasoduto IP (...) Com toda a certeza, o Irã também se interessará por tal projeto envolvendo China e Índia, dado que garantirá ao gás iraniano acesso a três dos maiores mercados asiáticos (...) através de um só megassistema de dutos.” (Negritos de Conflicts Forum).
E há também subtramas. China e Irã teriam algum interesse em sufocar o gasoduto Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia [TAPI] apoiado pelos EUA. A China investiu muito pesadamente na rede de gasodutos da Ásia Central para levar gás turcomeno até Xinjiang, e preferiria que as reservas turcomenas não fossem partilhadas com os mercados sul-asiáticos. O Irã tampouco apreciaria ver o projeto TAPI como rival de seu gasoduto IPI pipeline. Do ponto de vista do Irã, manter cativos três grandes beberrões de energia, bem ao pé da porta, é altamente desejável, porque é garantia de mercado cativo para o longo prazo. O Paquistão com certeza preferirá ter parceiro chinês, a ter patrocinador norte-americano.
Aqui precisamente está o risco a que a Europa expõe-se, quanto à energia de que precisa: se a UE curvar-se aos desejos dos EUA, e desdenhar a oferta dos russos, de fornecimento farto do Campo Sibéria Oeste, pode vir a descobrir que as reservas gigantes de Iraque-Irã já foram capturadas por Paquistão, Índia e China.
Claro que os EUA farão de tudo para impedir que aconteça assim. E o argumento de sempre é que o Irã simplesmente não pode fazer coisa alguma sem tecnologia ocidental (embora os iranianos nos digam que já não é bem assim – que China e Rússia tem tudo de que o Irã precisa).
Integração Irã-Rússia-China
Políticas concorrenciais liberais podem ser ótimas em teoria – é o que Alexey Miller parece estar dizendo, mas nem sempre funcionam conforme a receita – se forçam demasiadamente o risco na direção dos fornecedores. Os grandes produtores prefeririam qualquer comprador que lhes dê mais longas garantias de longo prazo de acesso a algum grande mercado. Será que Alemanha e União Europeia anotaram bem as palavras dos russos em Berlim?
Um ministro alemão e um alto representante da União Europeia foram convidados à conferência promovida e divulgada pelos russos, aceitaram o convite, estavam sendo esperados, mas, à última hora, pularam fora. O observador e tomador de notas que a UE enviou à conferência – e ninguém sabe como e por quê essas coisas acontecem – era polonês e dedicou-se a fulminar tudo que ouviu, como “nefanda politização, pelos russos”, da questão do fornecimento de energia.
Bem claramente, a dinâmica interna divergente dentro da UE, somada às pressões que os EUA estão fazendo sobre os europeus, estão tornando a UE incapaz de tomar qualquer decisão, dada também a relação muito mais longa que mantêm com os russos, mas, como um colega observou, em conversa conosco, as coisas estão mudando, lá no leste, em ritmo mais acelerado a cada dia. Até já se ouve o rangido das placas tectônicas em movimento.
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[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás de narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.
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[*] Alastair Crooke, às vezes erroneamente referido como Alistair Crooke, (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islã político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003), no cargo de High Representative for Common Foreign and Security Policy da União Europeia. Foi ácido crítico da violência e saques militares contra os territórios palestinos e movimentos islâmicos de 2000-2003. Esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade, em Belém. Foi membro do Comitê Mitchell sobre as causas da Segunda Intifada, em 2000. Manteve encontros clandestinos com a liderança do Hamas em junho de 2002. É defensor ativo do engajamento do Hamas no processo de paz na Palestina, a quem ele se referiu como “Combatentes da Resistência".
Crooke estudou na University of St Andrews (1968–1972) do qual ele obteve um mestrado em Política e Economia. Seu livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution fornece informações sobre o que ele chama de “revolução islâmica” no Oriente Médio, ajudando a oferecer insights estratégicos sobre as origens e a lógica de grupos islâmicos que adotaram resistência militar como uma tática, incluindo Hamas e Hezbollah. Seguindo a essência da Revolução islâmica desde as suas origens no Egito, através de Najaf, Líbano, Irã e da Revolução Iraniana até os dias de hoje, desbloqueando algumas das questões mais espinhosas que cercam estabilidade na atual paisagem do Oriente Médio.

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