Grécia: Tsipras joga bem e bonito


“Surpreende é que não estejais morto – com tantos medicamentos que vos fizeram tomar!”
(MOLIÈRE, O Doente Imaginário, ato III, cena III). [1]
 
Alexis Tsipras, atual PM da Grécia
Magnífica semana europeia. Tsipras joga bem e bonito. Os mata-mouros da União Europeia e os caras-de-pau da Troika acabaram presos na própria armadilha. Lá estão eles outra vez, à vista de todos, a triturar a patadas os absurdos tratados europeus e reunidos, alguns deles, com o Banco Central Europeu! Mas não há quem não saiba que essa concertação é formalmente proibida pelos tratados. Caíram na rede. A crise que eles mesmos provocaram com sua intransigência já ameaça explodir na cara deles!
De um lado recusam-se a afrouxar suas exigências bárbaras. Porque é isso o que são. Aumentar em 23% o imposto sobre valor agregado num país onde o consumo está em queda vertiginosa, de pobreza em massa, é exigência bárbara. Aumentar a idade mínima para a aposentadoria e o acesso às pensões complementares, num país onde praticamente todos os aposentados são arrimos de família, é exigência bárbara. E por aí vai.
São essas as violências bárbaras que a “Europa protetora” quer infligir aos gregos, além de todos os sofrimentos pelos quais estão passando! Mas Tsipras recusa-se a ceder. E então? De que lado está a dissuasão nuclear? Ah! Pois é! Está do lado de Tsipras, é claro.
Porque a União Europeia não tem os meios necessários para ejetar a Grécia para fora da Eurozona!
A bancarrota que resultaria dessa expulsão, obrigaria a acionar imediatamente os instrumentos do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE).
O truque foi votado durante a presidencial de 2012 pelo PS e pela UMP no auge do debate social sobre a carne hallal (agradecimentos ao canal France 2, que realmente conseguiu operar o apagamento magistral de tudo que mais urgentemente interessava discutir!).
De qualquer modo, seria ruinoso para quem, façam-me o favor? Sim, seria ruinoso para quem? É de morrer de rir. E, de quebra, a moeda europeia seria totalmente abalada, a ponto de ameaçar o equilíbrio de toda a Eurozona. E a isso se acrescentaria uma gigantesca onda de choque sobre o mercado mundial. Quem ficaria arruinado? Claro que não seria a Grécia: a Grécia já está arruinada!
Aqui se comprova a hipótese que não me canso de relembrar a todos: na relação de força entre credor e devedor, a fraqueza do credor aumenta conforme aumente o montante do que lhe seja devido. Obama está começando a dar-se conta disso.
Barack Obama e Christine Lagarde
Obama pede aos europeus que não ajam levianamente, que não aumentem a volatilidade do mercado financeiro. É urgente, caro Barack, passar suas ordens ao FMI e a Mme. Lagarde. Voltarei a esse assunto.
Por enquanto, como já disse aqui, ao final, o povo grego continua mobilizado, porque seu governo não o traiu. Ao contrário, o campo adversário fragmenta-se e cada grupo tem ideias próprias sobre o que fazer. É preciso incorporar a evidência de que os durões nunca formaram frente homogênea, nem podem formá-la, porque os interesses particulares são diversos e divergentes, e ali não há avaliações, sem controvérsias entre eles mesmos. Se eles mesmos cedessem, um pouco cada um, a linha dura poderia facilmente se impor. Quando tudo funcionava, todos estavam de acordo. Mas depois, quando a coisa deixou de funcionar... passou a ser cada um por si, e abriu-se a discussão lá entre eles mesmos.
O problema hoje é inteiramente político. Exclusivamente político. No plano técnico não há qualquer dificuldade para cancelar a dívida grega por meios contábeis legais. Por exemplo: distribuir a dívida grega por 100 anos! A 1% de inflação por ano, é pagável. Em relação às datas de pagamento, a coisa pode ser ainda mais facilitada. Durante esse tempo, os títulos permanecem inscritos no orçamento com o valor de face, e tudo permanece em ordem, porque ninguém perde coisa alguma. Sobretudo, porque 80% da dívida grega estaria em mãos de organismos públicos. É apenas um exemplo, só isso.
Mas ajuda a mostrar que a questão não é, de modo algum, técnica. A questão é política. Se se faz o que se faz com a Grécia, por que não se faria com outros? Dito de outro modo: todo o sistema do ordoliberalismo está afundando. Os tratados orçamentários viraram letra morta, o bla-bla-blá austeritário cai de podre. E por aí vai.
A meu ver, o mais impressionante é a crescente incoerência no campo dos credores. O FMI conduz o baile dos abutres. Não esqueçamos que foi Mme. Merkel quem pediu e obteve que o FMI fosse integrado à Troika onde, normalmente, nada tem a fazer. Como parte da confusão crescente, o FMI está em processo de superdistensão. Os últimos dias confirmaram o que escrevi na nota anterior, sobre o papel do FMI no caso grego. Com a Alemanha de Mme Merkel, o FMI de Christine Lagarde é o principal obstáculo a um honesto acordo entre o governo grego e seus credores. Agora que os credores terminaram por entrar num acordo entre eles mesmos, na 3ª-feira passada (9/6/2015), o FMI ameaçou unilateralmente não assumir sua parte de responsabilidade no caso de acordo com o governo grego. Ameaçou não depositar sua parte da ajuda! Mais um endurecimento na intransigência geral.
Primeira intransigência: recusarem-se a renegociar a dívida grega. Leitores desse blog chamaram-me a atenção para o fato de que o FMI se disse, há alguns meses, favorável a uma reestruturação da dívida grega. É verdade. Mas isso não deve enganar ninguém. Primeiro, porque o FMI como os outros credores, recusa-se categoricamente a abrir a discussão sobre a restruturação, ante o fracasso do programa atual. É promessa só para quem acredite em FMI. Nesse domínio, a experiência é muito instrutiva. Os credores já fizeram promessas desse tipo, que não cumpriram. Juraram, por exemplo que se a Grécia equilibrasse seu orçamento a ponto de extrair excedente antes do pagamento anual da dívida (chama-se “excedente primário”), eles aceitariam renegociá-la. O Ministro de direita, Sâmaras, fez o que o mandaram fazer. Nem por isso houve qualquer renegociação de dívida alguma.
Antonis Samaras, ex-Primeiro Ministro da Grécia
Em segundo lugar, o FMI evocou muito vagamente a possibilidade de uma extensão na duração da dívida. Mas nunca, é claro, falou de anulação, é claro. Mas tampouco falou, sobretudo, da única medida reformista razoável: uma indexação dos desembolsos sobre o crescimento, como exige o governo grego.
A provocação, nessa história, é que o FMI considera reestruturar a dívida do Banco Central Europeu e dos estados europeus! Mas não a dívida que de que o próprio FMI é proprietário! Cada um por si! Faça o que eu digo, não faça o que eu faço! Ora, desde a eleição, em janeiro passado, a esmagadora maioria dos pagamentos que o governo Tsipras fez foram pagamentos ao FMI. Quase 3 bilhões de euros. E esse mês de junho a Grécia tem a pagar mais 1,6 bilhões de euros. Ora, a Grécia não pode pagar essa quantia imensa de dinheiro. Não bastará renegociar o próximos pagamentos ao Banco Central Europeu: é preciso que o FMI aceite a reestruturação imediata da dívida grega. Pois o mais recente episódio indica o contrário. O FMI acabou por aceitar que a Grécia reagrupasse seus quatro pagamentos devidos em junho em um só pagamento, no final do mês. Seja como for, já é uma micro-reestruturação. Mas Mme. Lagarde fingiu que não era com ela: foi posta diante de um fato consumado, pela criatividade do governo grego.
A verdade é que Tsipras e seus ministros encontraram e exploraram uma frase do regulamento do FMI que prevê precisamente essa ação. Mas li que Mme. Lagarde só soube do que os gregos haviam solicitado, e que a concessão, naqueles termos era automática, uns poucos minutos antes de os dirigentes do FMI serem obrigados a agir. A página boursorama.fr noticiou:
Na manhã da 5ª-feira (4/6/2015), a diretora geral do FMI Christine Lagarde afirmava não ser “informada desse tipo de coisa” (...) apenas alguns minutos depois de o Fundo já ter recebido o pedido dos gregos. O FMI foi obrigado a informar que aquele tipo de requerimento não precisa ser aprovado. A verdade é que o estatuto do FMI diz bem claramente que o país requerente só é obrigado a “informar” ao FMI.
A segunda intransigência do FMI tem a ver com exigir mais uma redução nas aposentadorias e pensões. Mme. Lagarde só faz repetir que seria “indispensável” uma nova reforma nas aposentadorias, incluindo reduções nas pensões e mais um aumento na idade mínima para aposentadoria. (...)
Pelo canal France 2, o jornalista François Beaudonnet chegou a dizer no noticiário das 20h do dia 3/6/2015, que:
(...) o FMI é intratável. E continuou: Há relatos de que a cada abertura de nova reunião com a Grécia, o FMI diz: “Então, sobre aquela reforma das aposentadoria...” – como provocação.
Diz-se mesmo que o presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Junker estaria disposto a desistir da redução nas aposentadorias. Mas o FMI impõe a linha mais dura, impedindo qualquer discussão construtiva. Le Monde do dia 4/6/2015, escreveu que:
(...) a instituição internacional contribuiu para bloquear as negociações de uma lista de reformas, sempre contra empréstimos suplementares a Atenas. Ainda no fim-de-semana passado, exigia uma reforma das aposentadorias, com novas reduções no nível das pensões.
O quê?! As negociações foram bloqueadas pelo FMI?! Nesse caso... por que acusar incessantemente o governo grego?!
Angela Merkel, Chanceler da Alemanha
Tsipras e os gregos não podem aceitar qualquer nova redução nas aposentadorias. O jornalista de Latribune.fr, Romaric Godin, demonstrou muito bem por quê, num de seus artigos recentes. Há razões econômicas e sociais evidentemente, e razões políticas. Os aposentados gregos já foram sacrificados em sucessivas reduções. Agora, com o desemprego massivo, sobretudo entre os jovens, os aposentados tornaram-se apoio financeiro indispensável à vida diária de grande parte das famílias gregas. Cortar nas aposentadorias seria agredir novamente toda a sociedade grega!
Politicamente, Tsipras sempre combateu as medidas de arrocho em geral e, especificamente, as reduções nas aposentadorias. Até o governo anterior, de direita, recusou cortar aposentadorias. O que o FMI exige hoje é o que não conseguiu obter do governo da direita! Aceitar esses cortes seria suicídio econômico para a Grécia e retrocesso suicidário, para Tsipras.
O FMI sabe disso tudo. Mas insiste. Por sadismo? Por dogmatismo ideológico? Ou por pânico? De fato, o FMI tem todos os motivos para se manter discreto e de cabeça baixa. A Grécia seria mais um novo fiasco para esses doutores Diafoirus do FMI [1].
E por acaso o remédio do FMI, a “austeridade” (mas de fato é ARROCHO), pôs em pé o doente? Era a fórmula de Strauss-Kahn! E só fez agravar a crise, explodir o desemprego, a miséria e também a dívida! Fracasso total! Os próprios economistas do FMI tiveram de reconhecer, desconsolados, o fracasso. Tiveram de confessar que subestimaram o impacto negativo das medidas de “austeridade” (é ARROCHO) sobre a economia.
Vale dizer que ninguém precisaria de olhos de lince para ver. A história dos anos 1930 na Europa, e mais recentemente na América Latina, demonstram contundentemente a nulidades dessas teorias econômicas. Principalmente a América Latina. O efeito dessas imbecilidades “austeras” já estava escrito desde o começo.
Mas o FMI não recua. Assume seu papel de guardião das exigências da finança e dos defensores do ordoliberalismo. Esse papel foi confiado ao FMI por Angela Merkel, no início da crise grega. Em 2010, foi Merkel que impôs que outros países europeus recorressem ao FMI. Consta que Nicolas Sarkozy, então Presidente da França, e Jean-Claude Junker, então Presidente do Eurogrupo, eram contra. Mas acabaram por ceder à Merkel.
Por que Merkel tanto precisava da presença do FMI? Para começar, com certeza para integrar os EUA à discussão. Porque dentro do FMI, os EUA – e só os EUA – têm poder de veto. E ninguém precisa de novas evidências para saber que o alinhamento de Merkel aos EUA é total. Os escândalos de espionagem da França, por serviços secretos alemães, a serviço dos serviços de inteligência dos EUA talvez tenham desviado a atenção de alguns poucos olhos.
O bloqueio em curso é, de certo modo, a aplicação estendida para um pouco além, do ordoliberalismo alemão: povos e políticas não se metem em questões de economia. O FMI, pelo próprio estatuto, escapa a qualquer influência do voto popular democrático. O FMI, pois, é o aliado perfeito. Foi o que Le Monde escreveu claramente:
O FMI é regularmente criticado em Bruxelas por sua abordagem julgada insuficientemente política e pouco adaptada à realidade da Grécia. A Comissão Europeia também não engoliu, mais recentemente, o fato de que o FMI, ao final de 2014, já contribuíra para emperrar as negociações em curso entre [o então primeiro-ministro, de direita] Samaras e os credores do país, com vistas ao segundo plano de ajuda à Grécia. De fato, se algum acordo tivesse sido construído naquele momento, o psicodrama que vivemos ao longo de toda primavera não teria acontecido.
Em 2010, o arrogante Ministro alemão das Finanças Wolfgang Schäuble era contra, parece, a intrusão do FMI. Preferia que o governo alemão, só ele, tivesse a última palavra. Mas a experiência o fez mudar de ideia. Recentemente, elogiou o golpe de mestre de sua patroa, Merkel. Aconteceu em sua recente e espantosa entrevista a Echos. Disse ele:
Minha opinião era que os europeus podiam acertar-se entre eles. A Chanceler tinha outra opinião. No final, os fatos deram razão a ela.
Wolfgang Schäuble, Ministro das Finanças da Alemanha
O FMI atendeu as esperanças até desse ultradireitista! Dado que não há acordo sobre o fim do programa, não se discute a reestruturação da dívida grega. Nessa etapa, o FMI foi o melhor aliado de Schäuble. Não resta dúvida de que, se se tratasse de discutir uma reestruturação da dívida grega como é indispensável que aconteça, Schäuble voltaria à sua posição anterior. Então, ele preparou o terreno, sabendo que Christine Lagarde, quando foi Ministra da França, também era contra a intervenção do FMI. Caso o FMI abandone a linha dura de Berlim... a Alemanha de Merkel e Schäuble retomam a direção dos acontecimentos.
NOTÍCIA DE ATUALIZAÇÃO: 11/6/2015, “FMI deixa a mesa de discussão da dívida grega”, Latribune.fr, Romaric Godin
Alguém pode entender que dou demasiada importância a fatos simples. Pois ouçam essa.
Depois de muitos meses, por iniciativa da Argentina, foi constituída uma comissão técnica da ONU para preparar propostas com vistas a uma lei internacional sobre “falências legítimas” de estados. Finalmente! Mas... Quem se opõe? Onze países da União Europeia, entre os quais França e Alemanha! Ah, como são valentes, bravos homens e mulheres! E não é só isso.
A comissão em questão já começou a discutir oficialmente a atitude de desprezo da UE, que se mantém à distância de toda e qualquer discussão ou concertação sobre a questão das dívidas soberanas na Europa! Adiante, a mesma UE gargarejará sobre a globalização infelizmente “inescapável” e bla-bla-blá para enganar os ingênuos!
A globalização nada tem de novidade na história humana! A novidade é a globalização financeira e seus cães de guarda, que impedem que eleitores e política aproximem-se deles, para pôr ordem naquele galinheiro!
Concluo com um ponto de memória ativa e política. Mme. Lagarde mostrou-se bem menos exigente com os bancos, que com a Grécia. Em 2010, quando era Ministra das Finanças da França, ela não hesitou ao desbloquear dezenas de bilhões de euros de fundos públicos para reinflar bancos atingidos pela crise das hipotecas podres. Mme. Lagarde também se mostrou muito fácil e conciliadora com os bancos quando, em 2010 e 2011, os estados europeus, o FMI e o Banco Central Europeu recompraram títulos de dívidas públicas gregas.
Toda a crise de hoje advém daí. Se a Grécia parar de pagar o que deve, aqueles estados, o FMI e o Banco Central Europeu perdem seus créditos. Mas não acontecerá por culpa de Tsipras. Acontecerá por culpa de Lagarde, Merkel, Sarkozy e os demais que decidiram socializar as dívidas privadas dos bancos, em vez de deixar que os acionistas privados arcassem com o custo de “riscos” que eles mesmos assumiram.
Se a Grécia fosse um BANCO... Ela já estaria SALVA
Essa é a lógica sobre a qual o Partido de Esquerda [orig. Parti de Gauche] construiu a nova campanha de cartazes que está na rua, com o slogan “Se a Grécia fosse um banco, já estaria salva!”. Mme. Lagarde teria dado à Grécia toda a sua atenção, desde o primeiro instante. Porque ela nada fez, a conta é descomunal.
O que nós, os “sonhadores”, os “irresponsáveis” sempre anunciamos que aconteceria aconteceu aí, diante dos olhos de todos. Até do ponto de vista capitalistas, as soluções daquela gente são absurdas e temerárias. Isso tudo acabará como já é evidente: ninguém pagará a dívida!
Como acertar essa situação inescapável: pela crise aberta, ou por soluções que propomos desde o começo? Nesse ponto da situação, poderíamos ganhar em todos os quadrantes. Quem chorará a morte da União Europeia que há hoje, se ela for para o inferno? Não há quem faça beber o burro, se o burro não está com sede.
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Nota dos tradutores
[1] Epígrafe acrescentada pelos tradutores, por inspiração de Mélenchon, que adiante fala do “novo fiasco para os doutores Diafoirus (um dos médicos dessa peça de Molière) do FMI”. Doutor Diafoirus é um dos tresloucados médicos de O doente imaginário de Molière.
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[*] Jean-Luc Mélenchon − nasceu em 19 de agosto de 1951 (63 anos) − é um político francês, atual líder da Frente de Esquerda da França, Front de Gauche, e co-presidente do Partido de Esquerda. Foi senador na França com mandatos nos períodos de 1986–1995 e 2004–2010.

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