Game of Thrones: o princípio absoluto do poder
A série apresenta várias teorias e modos de organização do poder, mas destaca particularmente o sucesso da estratégia maquiavélica.
Francisco Louçã - publico.pt
Na Carta Maior
A tese é esta: Guerra dos Tronos é um enunciado do poder do soberano segundo Maquiavel. De fato, a série apresenta várias teorias e modos de organização do poder, mas destaca particularmente o sucesso da estratégia maquiavélica.
Assim, uma primeira noção enuncia o poder como uma forma de comunicação: na segunda série, Tyrion Lannister ouve de Lord Varys a ideia de que o poder é um truque, uma forma de comunicação manipulada pelo soberano e pelos seus.
Lord Varys e Lord Baelish conversam na série seguinte sobre o poder como uma ilusão e um mito, mas que é instrumental para a ascensão de alguns poucos, sendo a escada social por onde sobem os que não provêm das famílias titulares dos poderes em Westeros. É a mesma ideia, mas apresentada como um poder que é exercido e não só que é contemplado.
Em contrapartida, num diálogo entre Cersei Lannister e o mesmo Lord Baelish, que repete a sua convicção do poder da informação, a rainha viúva usa o poder da força para mostrar que “poder é poder” e depende, antes de mais, da capacidade de usar a violência. É ela quem pode mandar cortar-lhe a cabeça ou poupá-lo, consoante lhe apetecer.
Mas há ainda uma terceira ideia de poder que é apresentada na crónica da Guerra. Ela aparece por exemplo em duas conversas, sendo a primeira entre Jorah Tormont e Daenerys Targaryen, logo na segunda série, quando ele lhe diz que apoia a sua pretensão sucessória porque lhe reconhece força, capacidade de decisão mas também a virtude de se fazer amada. O poder é o poder de a soberana se fazer querida da massa. É a interpretação gramsciana de Maquiavel: a coesão do poder é assegurada pela hegemonia.
Daenerys usa esse poder transformador, libertando os escravos para os fazer seus aliados, embora tenha muita dificuldade em reorganizar socialmente as cidades que conquistou.
A segunda conversa que reforça este ponto de vista é, no final da série seguinte, a demonstração de Tywin Lannister, que se impõe ao seu neto, o jovem e estouvado rei Joffrey Baratheon, durante uma atribulada reunião do Conselho. Twyn, o poderoso patriarca da família Lannister, que então dominava o Trono de Ferro, exerce não só o seu poder pessoal como ensina o rei, sabendo que ele não aprenderá, ao dizer-lhe que um soberano que tem que invocar o seu estatuto real para mandar não consegue ser digno desse poder. O poder é hegemonia e só assim pode chegar a ser coerção.
Estas várias versões do poder em Guerra dos Tronos convergem nas características dramáticas mais importantes. Os derrotados são, de facto, os poderosos que não souberam ser implacáveis com os seus adversários: Ned Stark recusou-se a prender o jovem rei e foi decapitado; Robb Stark preferiu o casamento por amor a um arranjo conveniente e foi traído; e Jon Snow poupou o seu adversário na Guarda da Noite e foi também traído. Os três Stark são os heróis morais da Guerra e morrem por causa disso. Foram incapazes do mal absoluto quando este era necessário para afirmarem o seu poder. Não lhes bastava triunfar, precisavam de aniquilar os vencidos para não serem chacinados por eles. Não souberam ser príncipes maquiavélicos.
O livro discute ainda outras formas de poder. Como se diz em termos de categorias do pensamento estratégico, há também na história o soft power (dos Tyrell) e o smart power (de Tyrion Lannister, o personagem mais denso da narrativa) – mas ambas as formas de poder precisam de recorrer à violência extrema, com Tyrion a assassinar o pai (que o tinha condenado à morte) e Olenna Tyrell a conspirar para a queda da rainha viúva.
Todos estes modos de acção na luta pelo poder supõem, em todo o caso, uma relação política não moderna. Em Westeros, o poder é sempre o poder bruto da força, que pode ter ou não o apoio da magia ou do consentimento. O Estado moderno, em contrapartida, é despersonalizado, como o livro assinala, e portanto o conflito não é originalmente intermediado por casas dinásticas e por exércitos, mas antes de mais por forças sociais e interesses que não são definidos moralmente mas sim política e comunicacionalmente. Nesse Estado moderno, a coerção requer sempre um trabalho de hegemonia que é onde se decide o poder.
A conclusão de Pablo Iglesias é que nesta história há, em todo o caso, uma lição transcendente: não há legitimidade sem ter poder. Essa conclusão tem grandes consequências para a sua concepção estratégica. Se assim for, então a ocupação de lugares de poder é o único caminho para construir uma legitimidade social e para afirmar um projeto político. O que implica que a forma-partido e o seus discurso e organização devem obedecer a esse mandamento essencial, ocupar poder para criar comunicação.
Trata-se de uma inversão da estratégia que a esquerda tem seguido ao longo dos tempos, que se baseava na hipótese contrária de que a constituição de uma legitimidade só pode nascer do movimento popular que se organiza como expressão democrática e contra-hegemónica. Dentro de uma sociedade dominada por ideias conformadoras e conformistas, esta estratégia procura desgastá-las e substituí-las. A dificuldade desse projecto, que não tem tido sucessos definidores, está na dificuldade de disputar a hegemonia em sociedades complexas e com formas de poder muito sofisticadas.
A opção que se lhe tem oposto tem sido a estratégia social-democrata, que foi por vezes bem sucedida na ocupação de poder, mas que assim se consagrou à dominação hegemónica e portanto se desintegrou como alternativa. A social-democracia é hoje um centro cujo poder é o situacionismo.
Na sociedade moderna, então, não há princípio absoluto do poder: o poder mais absoluto é relativo, porque as coligações que o compõem são mais complexas. Mas não é menos poderoso, pelo contrário: nenhuma família de Westeros tem um Banco Central, um mundo homogeneizado pela distracção intensa e pelo senso comum banalizador e um aparelho político e militar tão uniformizado como os das sociedades modernas.
Enquanto assistimos à Guerra dos Tronos e procuramos adivinhar o seu futuro que é o nosso passado, devemos saber que as mil espadas daquele trono em King’s Landing são infinitamente menos poderosas do que uma reunião de um conselho de administração de uma empresa mundial.
O fim da quinta série da Guerra dos Tronos provocou uma discussão tão intensa quanto nos vamos aproximando do final da história, ele é imprevisível para os espectadores e as surpresas e desgostos têm crescido. Até hoje, o sucesso da série, pela sua qualidade dramática e pela intensidade dos personagens e da intriga, pela curiosa mistura de magia e história nesta crônica medieval, transformou a Guerra numa referência cultural e num acontecimento comunicacional. Mas é também uma reflexão política, pelo menos segundo Pablo Iglesias, o secretário-geral do Podemos espanhol, que coordenou um curioso livro sobre as lições desta história, “Ganar o Morir – Lecciones Politicas en Juego de Tronos” (Madrid: Akal, 2014).
O livro, que junta vários autores, discute alguns dos momentos chave da história para analisar o perfil da política, as regras de dominação, o lugar da mulher, as mitologias e outros ingredientes da série. A partir dele, vou referir nesta nota alguns dos momentos essenciais da apresentação da ideia de poder na história e, finalmente, comentar a interpretação de Iglesias, que é politicamente interessante e reveladora.
O livro, que junta vários autores, discute alguns dos momentos chave da história para analisar o perfil da política, as regras de dominação, o lugar da mulher, as mitologias e outros ingredientes da série. A partir dele, vou referir nesta nota alguns dos momentos essenciais da apresentação da ideia de poder na história e, finalmente, comentar a interpretação de Iglesias, que é politicamente interessante e reveladora.
A tese é esta: Guerra dos Tronos é um enunciado do poder do soberano segundo Maquiavel. De fato, a série apresenta várias teorias e modos de organização do poder, mas destaca particularmente o sucesso da estratégia maquiavélica.
Assim, uma primeira noção enuncia o poder como uma forma de comunicação: na segunda série, Tyrion Lannister ouve de Lord Varys a ideia de que o poder é um truque, uma forma de comunicação manipulada pelo soberano e pelos seus.
Lord Varys e Lord Baelish conversam na série seguinte sobre o poder como uma ilusão e um mito, mas que é instrumental para a ascensão de alguns poucos, sendo a escada social por onde sobem os que não provêm das famílias titulares dos poderes em Westeros. É a mesma ideia, mas apresentada como um poder que é exercido e não só que é contemplado.
Em contrapartida, num diálogo entre Cersei Lannister e o mesmo Lord Baelish, que repete a sua convicção do poder da informação, a rainha viúva usa o poder da força para mostrar que “poder é poder” e depende, antes de mais, da capacidade de usar a violência. É ela quem pode mandar cortar-lhe a cabeça ou poupá-lo, consoante lhe apetecer.
Mas há ainda uma terceira ideia de poder que é apresentada na crónica da Guerra. Ela aparece por exemplo em duas conversas, sendo a primeira entre Jorah Tormont e Daenerys Targaryen, logo na segunda série, quando ele lhe diz que apoia a sua pretensão sucessória porque lhe reconhece força, capacidade de decisão mas também a virtude de se fazer amada. O poder é o poder de a soberana se fazer querida da massa. É a interpretação gramsciana de Maquiavel: a coesão do poder é assegurada pela hegemonia.
Daenerys usa esse poder transformador, libertando os escravos para os fazer seus aliados, embora tenha muita dificuldade em reorganizar socialmente as cidades que conquistou.
A segunda conversa que reforça este ponto de vista é, no final da série seguinte, a demonstração de Tywin Lannister, que se impõe ao seu neto, o jovem e estouvado rei Joffrey Baratheon, durante uma atribulada reunião do Conselho. Twyn, o poderoso patriarca da família Lannister, que então dominava o Trono de Ferro, exerce não só o seu poder pessoal como ensina o rei, sabendo que ele não aprenderá, ao dizer-lhe que um soberano que tem que invocar o seu estatuto real para mandar não consegue ser digno desse poder. O poder é hegemonia e só assim pode chegar a ser coerção.
Estas várias versões do poder em Guerra dos Tronos convergem nas características dramáticas mais importantes. Os derrotados são, de facto, os poderosos que não souberam ser implacáveis com os seus adversários: Ned Stark recusou-se a prender o jovem rei e foi decapitado; Robb Stark preferiu o casamento por amor a um arranjo conveniente e foi traído; e Jon Snow poupou o seu adversário na Guarda da Noite e foi também traído. Os três Stark são os heróis morais da Guerra e morrem por causa disso. Foram incapazes do mal absoluto quando este era necessário para afirmarem o seu poder. Não lhes bastava triunfar, precisavam de aniquilar os vencidos para não serem chacinados por eles. Não souberam ser príncipes maquiavélicos.
O livro discute ainda outras formas de poder. Como se diz em termos de categorias do pensamento estratégico, há também na história o soft power (dos Tyrell) e o smart power (de Tyrion Lannister, o personagem mais denso da narrativa) – mas ambas as formas de poder precisam de recorrer à violência extrema, com Tyrion a assassinar o pai (que o tinha condenado à morte) e Olenna Tyrell a conspirar para a queda da rainha viúva.
Todos estes modos de acção na luta pelo poder supõem, em todo o caso, uma relação política não moderna. Em Westeros, o poder é sempre o poder bruto da força, que pode ter ou não o apoio da magia ou do consentimento. O Estado moderno, em contrapartida, é despersonalizado, como o livro assinala, e portanto o conflito não é originalmente intermediado por casas dinásticas e por exércitos, mas antes de mais por forças sociais e interesses que não são definidos moralmente mas sim política e comunicacionalmente. Nesse Estado moderno, a coerção requer sempre um trabalho de hegemonia que é onde se decide o poder.
A conclusão de Pablo Iglesias é que nesta história há, em todo o caso, uma lição transcendente: não há legitimidade sem ter poder. Essa conclusão tem grandes consequências para a sua concepção estratégica. Se assim for, então a ocupação de lugares de poder é o único caminho para construir uma legitimidade social e para afirmar um projeto político. O que implica que a forma-partido e o seus discurso e organização devem obedecer a esse mandamento essencial, ocupar poder para criar comunicação.
Trata-se de uma inversão da estratégia que a esquerda tem seguido ao longo dos tempos, que se baseava na hipótese contrária de que a constituição de uma legitimidade só pode nascer do movimento popular que se organiza como expressão democrática e contra-hegemónica. Dentro de uma sociedade dominada por ideias conformadoras e conformistas, esta estratégia procura desgastá-las e substituí-las. A dificuldade desse projecto, que não tem tido sucessos definidores, está na dificuldade de disputar a hegemonia em sociedades complexas e com formas de poder muito sofisticadas.
A opção que se lhe tem oposto tem sido a estratégia social-democrata, que foi por vezes bem sucedida na ocupação de poder, mas que assim se consagrou à dominação hegemónica e portanto se desintegrou como alternativa. A social-democracia é hoje um centro cujo poder é o situacionismo.
Na sociedade moderna, então, não há princípio absoluto do poder: o poder mais absoluto é relativo, porque as coligações que o compõem são mais complexas. Mas não é menos poderoso, pelo contrário: nenhuma família de Westeros tem um Banco Central, um mundo homogeneizado pela distracção intensa e pelo senso comum banalizador e um aparelho político e militar tão uniformizado como os das sociedades modernas.
Enquanto assistimos à Guerra dos Tronos e procuramos adivinhar o seu futuro que é o nosso passado, devemos saber que as mil espadas daquele trono em King’s Landing são infinitamente menos poderosas do que uma reunião de um conselho de administração de uma empresa mundial.
Créditos da foto: reprodução
Comentários