Brasil, epicentro do escândalo da FIFA

Teixeira e Marin são acusados de fazer parte de uma rede de corrupção criada há mais de trinta anos: a grande faxina parece ter começado.

Nicolas Bourcier, do Le Monde - na Carta maior
Fotos Públicas
"A polícia suíça deu um pontapé no ninho de ratos!". A frase sai de forma seca, áspera, selvagem. "É um ninho de ratos!”. Romário nunca teve papas na língua. Ex-atacante da seleção, hoje senador, o "Baixinho", como é conhecido, soube trocar passes com seus aliados, jogar com políticos de times adversários, e até passar a bola para inimigos de outrora, mas sempre se manteve no campo oposto ao dos dirigentes da FIFA e de seus comparsas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).


“Ratos!”. No exato momento em que a prisão em Zurique de um dos homens fortes da CBF, o explosivo e controverso José Maria Marin, 83 anos, ex-deputado próximo do regime militar (1964-1985), é exibida na TV, Romário não poupa palavras duras ao descrever um sistema que condena há muito tempo: "O Brasil está hoje associado ao que há pior em termos de corrupção no esporte”.

O golpe é duro e a queda inevitável. Um ano após o trauma do Mundial, com a derrota humilhante e histórica na semifinal contra a Alemanha (7x1) – “Nosso futebol é sugado por dirigentes que ficam nas tribunas brindando aos milhões que entram suas contas bancárias", havia afirmado Romário, em tom profético – o país de futebol encontra-se no meio de um enorme escândalo de extorsão e lavagem de dinheiro envolvendo centenas de milhões de dólares. Trata-se do maior caso de corrupção da história do esporte moderno, segundo jornais do mundo todo. Seu epicentro só poderia estar no Brasil.

A investigação começou no FBI. Em seguida, o caso foi assumido pela procuradoria de Nova York. As primeiras prisões foram feitas pela polícia suíça e processos de extradição estão em andamento. Sete dirigentes eleitos da FIFA, incluindo José Maria Marin, podem ser condenados a até 20 anos de prisão. Outros ainda estão na mira dos investigadores. Hoje, boa parte do mundo do futebol deve ter pesadelos com a justiça norte-americana.

Romário tinha razão. A origem e a jurisdição do escândalo já batizado de "FIFA Gate" têm suas raízes bem fincadas no coração do futebol brasileiro. Senão, como interpretar a partida repentina e sem explicação de Zurique do atual presidente da CBF, Marco Polo del Nero, poucas horas após a prisão de seu mentor e antecessor José Maria Marin?

“Ratos!”, insiste Romário, ainda no mesmo tom: Marco Polo del Nero "é um câncer do futebol que não deve ficar no cargo. Deve ser feita uma moralização, é hora de começar uma investigação interna, feita pelo Brasil”. Como sempre soube fazer dentro de campo, o ex-atacante da seleção chama para si a responsabilidade.

Em discussão há mais de dois anos, e sempre rejeitada, a proposta de criação de uma CPI sobre a CBF foi subitamente adotada no dia 29 de Maio, dois dias após as prisões em Zurique, com a aprovação de 50 dos 81 senadores, quase o dobro dos votos necessários. 

O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, anunciou ao mesmo tempo ter solicitado à Polícia Federal que investigue as práticas criminosas relacionadas ao esquema de corrupção da FIFA, revelado pelas autoridades americanas. Ele deixou claro que o Governo brasileiro irá trabalhar em estreita colaboração com os Estados Unidos.

O efeito foi imediato. No dia 1º de junho, a Justiça brasileira iniciou uma investigação contra Ricardo Teixeira, 67 anos, ex-presidente da CBF, suspeito de lavagem de dinheiro e fraude. A polícia brasileira teria identificado transferências "atípicas" de 464 milhões de reais em várias das suas contas bancárias, entre 2009 e 2012, período em que presidiu o comitê organizador da Copa do Mundo de 2014 sem que ninguém, ou quase, o tenha aborrecido. 

Estes montantes nunca foram declarados. Até o momento, quatro acusações já foram feitas contra Teixeira, incluindo falsificação de documentos e evasão de divisas.

Foi o "bravo" Ricardo Teixeira que conheceu José Maria Marin e o convidou para ser seu vice-presidente na CBF. Foi ele também quem exigiu que Marin o sucedesse em 2012, quando teve que renunciar por suspeita de corrupção. Ricardo Teixeira era então acusado de receber milhões de dólares em subornos da International Sport and Leisure (ISL), empresa pioneira em marketing esportivo que, até a falência em 2001, gerenciava os polpudos direitos de transmissão da FIFA. Após sua renúncia, o ex-dirigente se refugiou em sua luxuosa mansão na Flórida, localizada entre Boca Raton e Palm Beach, onde tem agora todo o tempo do mundo para bater papo com o sogro João Havelange. Patriarca do futebol brasileiro, que em breve completa 100 anos, e predecessor de Joseph Blatter, Havelange ocupou o trono da FIFA entre 1974 e 1998, e também foi obrigado a deixar o cargo de presidente honorário em 2013 por ter aceitado pagamentos suspeitos da ISL.

Marin, Del Nero, Teixeira: a grande faxina parece ter começado, profetizam alguns comentaristas. "Todos os dirigentes corruptos vão sentir a queda como se fosse um tsunami", prevê Romário. No entanto, será preciso agir rápido e aproveitar o momento oportuno. A história do futebol brasileiro é feita de relações ambíguas com representantes políticos, do mundo financeiro e da Justiça, portanto repleta de armadilhas e oportunidades perdidas.

A CPI tem 180 dias para jogar luz sobre as eventuais irregularidades nos contratos de jogos da seleção brasileira, de competições e campeonatos organizados pela CBF, bem como na realização da Copa das Confederações de 2013 e da Copa do Mundo de 2014. São apenas seis meses de trabalho para que os sete membros eleitos e seus suplentes possam folhear as centenas de páginas do relatório da polícia, e mergulhar nos inúmeros inquéritos públicos e privados, em sua maioria inconclusivos. E, acima de tudo, seguir a profusão de pistas levantadas pelo FBI para provar que há algo de profundamente podre no reino do futebol brasileiro.

Teixeira e Marin são hoje acusados de fazer parte de uma rede de corrupção criada há mais de trinta anos, alimentada por lucrativos contratos de comercialização de direitos de transmissão, de marketing e de eventos esportivos. Por muito tempo, agiram na mais completa impunidade, utilizando as facilidades oferecidas pelo sistema financeiro norte-americano para lavar dinheiro obtido ilegalmente. Uma desenvoltura interrompida quando começaram a chamar a atenção das autoridades fiscais e do FBI.

No centro da teia financeira está um certo José Hawilla, 71 anos, que parece ter desempenhado um papel de liderança decisivo no funcionamento dos mecanismos de redistribuição do dinheiro. O brasileiro, até agora desconhecido do público internacional, é um ex-jornalista de São Paulo que fez fortuna no marketing esportivo. À frente de uma empresa apropriadamente batizada de Traffic, ele reinava, até pouco tempo atrás, sobre um império que gerava mais de 500 milhões de dólares por ano. Mais de 60 páginas do processo da procuradoria de Nova York são dedicadas a ele. Foi a Traffic que permitiu ao FBI esvaziar a bola dos crimes relacionados à FIFA.

Chamado de "Midas" tanto por seus amigos quanto pelos inimigos, José Hawilla está agora livre. É um dos quatro réus (junto com o americano Chuck Blazer, Daryan e Daryl Warner, de Trinidad e Tobago) que concordaram em colaborar com a justiça americana. Ele reconheceu seus crimes, se declarou culpado de fraude e obstrução da justiça, aceitando pagar a bagatela de 151 milhões de dólares ao governo dos EUA.

Sua trajetória bastante incomum mostra como o business do futebol tornou-se ao longo dos anos uma máquina de dinheiro espetacular para diversos tipos de negócios. Repórter esportivo na Rádio Bandeirantes, José Hawilla foi contratado pela Rede Globo até ser demitido por participar de uma greve em 1979. Aos 36 anos, pai de um menino de seis meses, decide investir sua indenização na compra da Traffic, então uma pequena empresa especializada em propaganda para pontos de ônibus. Em 1983, recontratado pela Globo para dirigir programas esportivos, Hawilla tem a ideia de usar a Traffic para negociar contratos de publicidade em estádios.

Por causa de seu cargo, o jornalista obtém o precioso calendário dos jogos bem antes da concorrência. Uma vantagem de que tira proveito alugando a preços baixos os outdoors localizados dentro dos estádios para empresas em busca de espaço na televisão.

Desde o início da década de 1990, a Traffic domina o mercado de espaços publicitários dos principais estádios do Brasil. Mas Hawilla quer mais, e decide comprar os direitos de transmissão da Copa América. Ele negocia com Nicolas Leoz, presidente (de 1986 a 2013) da Conmebol, Confederação Sul-Americana de Futebol. Na ocasião, os dois teriam negociado uma propina de 6 milhões de dólares. Este é o primeiro caso de corrupção identificado pelo FBI no inquérito sobre a FIFA.

Hawilla assina primeiro três contratos referentes às Copas América dos anos de 1991, 1996 e 2001. Outros sucederão. Segundo a acusação, ele sempre distribui subornos. A cada novo campeonato, aumenta sua receita proveniente de direitos televisivos e patrocínios: 31,9 milhões dólares em 2001, 64,2 milhões dólares em 2007. Em 2013, ele garante mais uma vez os direitos televisivos para quatro edições da Copa América – a próxima começa dia 11 de junho no Chile. Na ocasião, a Traffic e o consórcio Datisa, do qual o grupo de Hawilla faz parte desde 2007, teriam transferido 100 milhões de dólares aos líderes da Conmebol em troca de um contrato total de 317,5 milhões dólares. No dia 3 de junho, Nicolas Leoz entrou na lista vermelha da Interpol.

Em meados dos anos 1990, a Traffic começa a diversificar suas atividades. A empresa se uniu ao fundo americano Hicks, Muse, Tate & Furts, que lança um projeto de plataforma de mídia latino-americana no modelo da BSkyB, canal e site do magnata Rupert Murdoch. O fundo Hicks investe 100 milhões de dólares na Traffic. Juntos, compram os direitos comerciais de clubes como Corinthians e Cruzeiro, e lançam o canal "PSN". O projeto naufraga por falta de um acordo de exclusividade sobre os direitos de transmissão.

No entanto, é neste período efervescente para José Hawilla que o ex-jornalista organiza, em Julho de 1996, em Nova York, uma reunião entre um dirigente da CBF (provavelmente o próprio Ricardo Teixeira) e quatro diretores da Nike. Um contrato é assinado – oficialmente, de 160 milhões dólares – para que a logomarca da empresa esportiva passe a decorar a camisa da seleção brasileira. Este contrato está hoje na mira do FBI, que suspeita do pagamento de uma grande propina.

Ironicamente, este contrato já havia suscitado uma CPI em Brasília. Liderada pelos deputados Aldo Rebelo e Silvio Torres, a CPI "Nike-CBF", realizada entre 2000 e 2001, não teve o resultado esperado. Nem mesmo o relatório final pôde ser publicado, devido à pressão da bancada da bola, grupo de deputados ligados ao poderoso lobby do futebol.
Sinal dos tempos: hoje, a maioria dos parlamentares brasileiros acredita ser possível uma investigação "profunda" do futebol brasileiro, apesar da oposição de alguns deputados e senadores. "Espero que não haja resistência, e que possamos chegar a alguns nomes", acrescentou Romário. Vêm aí mais alguns pontapés no "ninho de ratos".
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Tradução de Clarisse Meireles.


Créditos da foto: Fotos Públicas

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