Antônio David: Discurso de Vladimir Safatle bloqueia a reflexão

publicado em 02 de junho de 2015
VLADIMIR-SAFATLE-FILOSOFO-BR
Um fantasma ronda a esquerda: uma forma autoritária de pensar
por Antônio David, especial para o Viomundo
Não é de hoje que a esquerda brasileira vive às voltas com impasses. Por isso, deveríamos no mínimo fazer o esforço de tentar olhar para trás de maneira honesta e generosa, se quisermos entender os impasses em torno do “lulismo” e enfrentá-lo da melhor forma. Mas nem isso conseguimos.

Em seus mais recentes artigos, O que podemos?  e Frente de esquerda para quê?, Vladimir Safatle insiste na tese de que os impasses da atual conjuntura reduzem-se à “falta de coragem” – uma maneira nova de dizer o velho bordão “falta de vontade política”.
Segundo Safatle, enquanto a esquerda brasileira “não tem mais nada a oferecer de realmente novo e diferente do que vimos”, os espanhóis “não temeram procurar reinventar a força da política através de uma confiança renovada no povo”.
Safatle argumenta: “Se a esquerda quiser ter alguma razão de existência (pois é disso que se trata), ela deve começar por fazer uma rejeição clara do modelo que foi aplicado no Brasil na última década, seja no campo político, seja no campo econômico. O modelo lulista não chegou a seu esgotamento por questões exteriores, pressão da mídia ou inabilidades de negociação da senhora Dilma. Ele se esgotou por suas contradições internas e quem o criou não é capaz de criar nada de distinto do que foi feito”.
Atente-se bem para os termos empregados: “realmente novo e diferente”, “rejeição clara”. As palavras são fortes e contundentes. Todavia, por trás dessa aparente assertividade, há algo de lacunar no discurso de Safatle. A verdade, como sabemos, aparece melhor nos silêncios do discurso. Vejamos.
Tendo criticado a evocação de Lula por uma Frente de Esquerda, Safalte conflui: “não é a falta de direção que acomete a esquerda brasileira. É a falta de coragem”.
Afinal, de quem exatamente Safatle está falando? Do PT ou da esquerda no seu conjunto? No caso, a “esquerda brasileira” da qual fala Safatle envolve toda a esquerda – incluso a esquerda à esquerda do PT, incluso seu próprio partido, o PSOL?
À primeira vista, a pergunta parece conduzir à velha e inútil cultura da picuinha. Porém, abaixo da superfície, há uma questão de fundo.
Se, como sustenta Safalte, o lulismo “se esgotou por suas contradições internas e quem o criou não é capaz de criar nada de distinto do que foi feito”, cabe indagar: quem o criou? Safatle não diz. Não é por acaso.
Ao contrário do que Safatle sugere – sem, no entanto, dizer -, a estratégia do lulismo – pois é de uma estratégia que se trata – não foi criada pela mente (genial ou doentia) dessa ou daquela pessoa, desse ou daquele grupo, mas pelo confronto no interior do PT ao longo da década de 1990. Formulada no curso dessa década como resposta à derrota de 1989, essa estratégia é a síntese da luta interna travada no interior do PT.
Vistas as coisas sob essa ótica, é necessário reconhecer, se quisermos de fato enfrentar os impasses do lulismo, que se a estratégia do lulismo guarda limites, deméritos, vícios, a esquerda brasileira no seu conjunto – no que se incluem as correntes que deram origem ao PSOL – é tão responsável pela estratégia do lulismo quanto àquelas que se mantiveram no PT.
Claro que essas correntes recusarão esse ponto de vista. Afinal, elas se opuseram à estratégia. Como podem então ser responsáveis? Tal como tratei longamente em outro artigo, na estratégia do lulismo está inscrita a incapacidade de as correntes que a ela se opuseram, seja enquanto estavam no PT, seja depois que saíram, de oferecer uma alternativa.
Na ausência de alternativas, na recusa a discutir o que de fato merece ser discutido – estratégia –, tudo se resume a apontar os culpados. Para tanto, forjou-se uma narrativa: o campo majoritário fez filiações em massa; os congressos foram fraudados; a maioria esmagou a minoria. Sem dúvida, é mais cômodo olhar os acontecimentos históricos sob essa ótica.
No entanto, se nos perguntarmos a quem o discurso de Safatle é dirigido e com vistas a quê esse discurso é produzido, será que essa ótica ainda se sustenta?
Ao defender a tese de que o problema se resume a “falta de coragem”, Safalte está como que dando um recado. É como se estivesse dizendo: “Não percam tempo em discutir estratégia. Isso é pretexto. Quem discute estratégia quer no fundo desviar a atenção da questão central: ter ou não ter coragem”.
Se o que Safatle diz é verdade, livros como Os Sentidos do Lulismo, de André Singer, não têm valor algum. No fundo, trata-se de um grande blá-blá-blá que apenas desvia o leitor da questão central: ter medo ou ter coragem.
Não admira que, para Safatle, correlação de forças mereça aspas. (Claro que, se questionarmos Safatle das razões pelas quais seu partido não logra realizar o sonho do triunfo eleitoral, para o qual declaradamente nasceu, imediatamente será evocada a correlação de forças desfavorável: não fosse a desigualdade do financiamento de campanha e do tempo de TV, tudo seria diferente).
Faço a ressalva: Safatle tem razão em parte. Todos sabemos haver fanáticos entre os que defendem o governo Dilma e o PT, para os quais a estratégia do lulismo é inquestionável.
De fato, estes usam e abusam da expressão correlação de forças. Para estes, nada é possível por conta da correlação de forças. Todavia, note-se bem que, ao recusar colocar a expressão no seu devido lugar – isto é, no interior de um debate sério sobre estratégia -, o que estes fanáticos fazem não é outra coisa senão… recusar discutir estratégia. No fundo, e ironicamente, a atitude dos defensores fanáticos governo Dilma e de Safatle é exatamente a mesma. Ambas as abordagens apenas atestam a incapacidade de parte da esquerda de oferecer alternativas à estratégia do lulismo.
Qual é o segredo desse discurso?
Ao analisar o discurso do movimento integralista nos anos 1920 e 1930, Marilena Chaui constatou que se tratava de um discurso que trabalha com pontos fixos, ou seja, como verdades tomadas de antemão, sobre as quais o pensamento não se debruça. Com isso, o discurso integralista “não só permite economizar a reflexão acerca dos processos históricos, mas permite sobretudo assegurar ao destinatário um suposto conhecimento” prévio da realidade, com base na reafirmação e repetição de preceitos tomados de antemão, de modo que o discurso tenha “força persuasiva e até mesmo constrangedora”.
Chaui nota que o aspecto político dessa operação reside exatamente na exclusão da reflexão: “Unido e disperso, a imagem, espelho dos dados imediatos, exclui a reflexão e, simultaneamente, cria a ilusão de conhecimento, graças ao seu aspecto ordenador”. Trata-se, em suma, de uma forma autoritária de pensar.
Ao trabalhar com pontos fixos, tomados como verdades de antemão – “realmente novo e diferente”, “rejeição clara”, “falta de coragem” –, o discurso de Safatle cumpre exatamente esse papel: bloquear a reflexão. Como explicar que um discurso que se pretende mobilizador do pensamento realize-se como bloqueio à reflexão?
A pergunta deveria ser: a quem, afinal, o discurso de Safatle é dirigido?
O discurso é dirigido à militância e aos simpatizantes do PSOL. Cumpre a função de coesionar essa militância. Assim como o discurso integralista, o discurso de Safatle “não só permite economizar a reflexão acerca dos processos históricos, mas permite sobretudo assegurar ao destinatário um suposto conhecimento” prévio da realidade, com base na reafirmação e repetição de preceitos tomados de antemão, de modo que o discurso tenha “força persuasiva e até mesmo constrangedora”.
Não tenho dúvida de que se trata de um discurso bem-sucedido e até mesmo útil em face do propósito de formar um exército de soldados – aliás, todos devidamente uniformizados. Os militantes e simpatizantes do PSOL ficarão felizes lendo os artigos de Safatle. Sentirão alívio. Terão a consciência apaziguada. Não terão de enfrentar o fantasma da crise interna que se abriria com a reflexão. Eles sabem que a estratégia do lulismo é um fracasso – aliás, sempre foi – e que a sua estratégia é a verdadeira, ainda que ela não possa ser exposta. E por que precisaria? Sua verdade é autoevidente, tão autoevidente que toda tentativa de reflexão sobre a estratégia não passa de pretexto e serve apenas para esconder o medo de fazer o que deve ser feito. Enfim, não há o que discutir: a culpa é dos outros, da sua “falta de coragem”. Nós estamos certos.
Estranho falar em reflexão quando nós da esquerda continuarmos a aceitar estruturas dirigistas, hierárquicas, hegemonistas e centralizadas.

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