Afro-Latino-América: Memórias da opressão em tempo de liberdade


Flavio Jorge Rodrigues da Silva & Gevanilda Santos 

Edição fac-similar da seção Afro-Latino-América do jornal alternativoVersus, dos anos 1970, apresenta a memória da imprensa negra e socialista ao Brasil do século XXI.
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O suplemento Afro-Latino-América, publicado no jornal Versus entre os anos 1977 e 1979, é relançado agora em versão fac-similar. A obra, uma iniciativa da Soweto Organização Negra e da Fundação Perseu Abramo (FPA), mostra 20 edições encartadas nos números 12 a 31 do periódico alternativo brasileiro. É um exemplo especial da típica imprensa negra paulista da época, marcada por seu caráter socialista e marginalizada pela grande mídia.

A seção Afro-Latino-América foi editada por jornalistas, estudantes e ativistas antirracistas que, naquela época, resistiram à ditadura militar empunhando as bandeiras do combate ao racismo e à ideologia oficial que criou o mito da democracia racial no Brasil. Denunciar o racismo disfarçado pelo autoritarismo do regime militar imposto em 1964 era a tarefa diária da militância. O Afro-Latino-América contou e fotografou muitas histórias, desmascarando a censurada realidade do negro no país e no mundo. O lançamento da edição fac-símile registra a passagem de meio século do golpe militar de 1964, no Brasil.
 
A seção Afro-Latino-América nasceu de um artigo da jornalista Neusa Maria Pereira, publicado na edição nº 11 de Versus, sob o título “Em defesa da dignidade das mulheres negras em uma sociedade racista”. A crítica contundente das suas palavras denunciava: “A mulher negra pertence a uma das minorias raciais mais cruelmente vitimadas pelos castigos da divisão da sociedade em classe. Esta divisão é a maior responsável pela campanha da difamação sofrida pela mulher negra, considerada pelos representantes desta sociedade de classes como objeto sexual de consumo. Há muito que nós, afro-brasileiros, estamos lutando para apagar esta mancha original e sair do lugar onde nos colocaram”. (Jornal Versus nº 11, junho de 1977, SP, págs. 22 e 23)
 
As palavras de Neusa Maria Pereira foram a expressão do pioneirismo da luta da emancipação da mulher que, naqueles anos, esboçava uma leitura original da corrente de pensamento feminista que se insurgia contra a dominação de gênero, raça e classe. Ao incorporar um acentuado colorido político, o texto de Neusa Maria Pereira provocou o ressurgimento da imprensa negra em São Paulo, centro econômico e cultural do país.
 
Versus aninhou o novo suplemento porque suas linhas editoriais eram voltadas à cultura, à arte e à revolução. Em seu horizonte próximo estava presente o objetivo de dar voz à luta internacional dos oprimidos, dos povos africanos, dos latino-americanos e, em especial, dos trabalhadores brasileiros.
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Marcos Faerman
Fundado em outubro de 1975, Versus era liderado por seu criador, o jornalista Marcos Faerman (1944-1999). Editado em São Paulo, em pouco tempo se transformou em uma publicação de circulação nacional, influente por sua linguagem inovadora e por seu estilo alternativo de resistência e de contestação política.Em sua trajetória, a publicação reuniu cerca de 350 colaboradores - repórteres, escritores, poetas, chargistas, tradutores e ilustradores.
 
O jornal incorporou a editoria Afro-Latino-América na décima segunda edição. A decisão foi apoiada por ativistas críticos, jornalistas negros e por grupos estudantis. Parte deles eram militantes do Núcleo Negro Socialista, um grupo de orientação de esquerda, que reunia lideranças negras de vários estados brasileiros. Seu pensamento e ação foi capaz de romper o silêncio diante dos casos de preconceito e discriminação no trabalho, na escola e na sociedade, ao denunciar episódios de repressão e todo o tipo de violência contra o trabalhador e a trabalhadora negra.
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Hamilton Bernardes Cardoso
Os artigos e as reportagens das edições deste fac-símile estampam o protesto negro nas ruas, como revela um texto do jornalista Hamilton Bernardes Cardoso, escrito por ocasião da manifestação de 7 de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. O ato público inaugurou as mobilizações do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), depois conhecido por Movimento Negro Unificado. Hamilton Cardoso (1953-1999) nasceu em Catanduva e cresceu na capital de São Paulo. Formou-se em jornalismo nas Faculdades Casper Líbero e Metodista, de Rudge Ramos. Foi um dos fundadores do Afro-Latino-América, e é considerado um dos mais importantes líderes do Movimento Negro contemporâneo brasileiro.
 
O álbum divulga também uma entrevista marcante realizada por Astrogildo Esteves Filho, correspondente de Versus no Rio de Janeiro, que revelou a história da viagem de exílio de Tereza Santos, atriz e educadora, em três países do continente africano – Guiné-Bissau, Angola e Moçambique – e sua dedicação às lutas de libertação nas áreas de educação e cultura.
 
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Notícias internacionais da luta anticolonial do negro na África e nas Américas estão preservadas nessas páginas. A obra reapresenta, além de inúmeras lições de protagonismo e de liderança, reflexões sobre ideais pan-africanistas de orientação socialista. Nomes referenciais como o do martinicano Frantz Fanon, os panteras negras dos EUA, Steve Biko, Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Samora Machel e Abdias do Nascimento eram lembrados permanentemente no suplementoAfro-Latino-América.
   
Também as notícias sobre a realidade do negro e da negra no Brasil estão estampadas nas páginas do volume fac-símile. Elas desvelam as características dos ideais revolucionários daquele momento, que aproximaram o jornalismo negro do socialismo e demarcaram a construção de um modelo de ação antirracista da esquerda brasileira. Tais políticas abarcavam diferentes universos na poesia, música, teatro, literatura, história e sociologia, destacando a resistência histórica de personagens anônimos e das culturas negras, valorizando suas memórias e experiências.
 
O desafiador Afro-Latino-América denunciava, sob os olhos da censura e da repressão, o limiar entre o mito e a realidade do homem negro e da mulher negra. O encarte abordava, também, a questão da terra de quilombos, do voto negro e do voto do analfabeto no contexto da reforma do pluripartidarismo, além da escandalosa situação de extermínio das crianças e adolescentes negros.
 
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Reunidas em uma única edição, as notícias formam hoje um conjunto de artigos e reportagens que recordam as lutas e os contextos dos principais temas e bandeiras do Movimento Negro Brasileiro. Retratam, em essência, o pensamento e a atitude de uma geração de ativistas antirracistas que cresceu durante os enfrentamentos com a ditadura e  o racismo.
   
Vale a pena se debruçar sobre as páginas do fac-símile Afro-Latino-América para descobrir as inúmeras versões e interpretações guardadas nas palavras, entrelinhas, fotografias, poesias, cartazes, reportagens e personalidades históricas condensados nesse período da história do Brasil.
   
Saudações a todos que construíram e ou participaram dessa história que, direta ou indiretamente, nos ajudaram na publicação inédita do fac-símile de Afro-Latino-América.
 
Axé!
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Texto publicado como apresentação da obra fac-símile Afro-Latino-América, lançada em 01/06/2015, no auditório da Fundação Perseu Abramo, em São Paulo. Adaptado, foi revisado em 07/06/2015.
 




Muito obrigado a Tlaxcala

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