Flávio Aguiar: 'Usar uma arma tem três mandamentos'. Um conto sobre a FEB na guerra
HISTÓRIA E FICÇÃO
O mundo lembra hoje (8) os 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, com participação militar brasileira, o que teve reflexos definitivos nas políticas exteriores do país
por Flávio Aguiar, para a Rede Brasil Atual publicado 08/05/2015
DOMÍNIO PÚBLICO
Soldados brasileiras após a tomada de Monte Castelo, batalha da 2ª Guerra Mundial, travada na Itália: 70 anos do fim do conflito
Hoje, 8 de maio de 2015, comemora-se o aniversário de 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial – lembrando que na Rússia a comemoração oficial acontece amanhã (9), porque a assinatura do documento de rendição foi feita perto da meia-noite, em Berlim, e em Moscou já era o dia seguinte.
Tradicionalmente, a data lembrava o esforço conjunto dos aliados para derrotar os nazistas. Este ano a ênfase é outra: cai sobre as diferenças, lembrando os tempos da chamada Guerra Fria que começou logo após o fim dos conflitos bélicos.
Países do Ocidente estão boicotando as comemorações russas devido à crise na Ucrânia, enquanto Moscou enfatiza seu próprio esforço e o altíssimo número de vítimas de seu país (20 milhões).
Mas há um aspecto importante a lembrar, para nós brasileiros. O Brasil foi o único país latino-americano que enviou tropas para a Europa, lutando na Itália. Esta condição teria consequências decisivas na vida política e militar brasileira posterior. Rezam várias interpretações que ela apressou o fim do Estado Novo. Ao mesmo tempo, marcou a definitiva aproximação entre as Forças Armadas brasileiras e americanas, o que impulsionaria o Brasil ao alinhamento quase automático com os Estados Unidos na Guerra Fria, e à oposição de vastos setores militares do Brasil contra o segundo governo Vargas, de 1951 a 1954.
Para lembrar estes momentos da vida brasileira – e sua perpetuação em nossa memória, trouxe a seguir um conto meu, de meu livro Crônicas do mundo ao revés", publicado pelaBoitempo em 2013. Boa leitura para o fim de semana!
"Os três mandamentos"
_O que vou dizer pra vocês vai soar estranho, disse o capitão instrutor de tiro.
_Usar uma arma, ele continuou, tem três mandamentos, tão sagrados como os dez de Deus.
A voz dele era grave e rouca. Era grisalho. E ele olhava a gente nos olhos.
_Primeiro mandamento: nunca apontem a arma para ninguém. Parece estranho, não é?
Mas é por causa do segundo mandamento: quem apontar, é melhor estar a fim de atirar. E aí vem o terceiro: é preciso saber atirar e, se atirar, atirar para matar. Esqueçam aquilo de atirar na mão, no ombro, no braço, na perna. Isso é coisa de filme americano e história em quadrinhos. Deus queira que ninguém aqui precise fazer isso, mas, se atirarem em alguém, atirem para matar. No peito. No meio do peito. Porque senão o outro mata vocês. Nem que seja mais tarde. Por que no meio do peito? Porque o que mata é a porrada da bala, que paralisa o coração. O outro morre de parada cardíaca.
Ele se chamava Capitão Roberto. Estava em fim de carreira. Lutara na FEB, na Itália. Gostava de conversar, nas pausas do serviço. Ele me contou, e a mais alguns de nós, uma história, a sua história. Foi na batalha de Castelnuovo. Num bombardeio dos alemães, ele se desgarrou do seu pelotão. Avistou uma cabana e correu para lá. Abriu a porta e deu de cara com um soldado alemão. Os olhos dele eram azuis, disse o capitão, que atirou primeiro e matou o outro. Depois foi ver: era um jovem, nem dezoito anos devia ter. É provável, disse ele, que a sua juventude tenha feito o alemão hesitar. Quem sabe? Ele sonhava com isso todas as noites. Acordava suando frio. Noite após noite.
Assim começou minha instrução no uso de armas. E eu fui bom aprendiz. O importante não era acertar a mosca, no centro. A gente não estava aprendendo a atirar para concorrer em tiro ao alvo, ou para passar o tempo num parque de diversões. O importante era dar os tiros que a gente dava de cada vez no mesmo lugar, fosse em cima, em baixo, do lado ou no meio do alvo. Porque isso mostrava a firmeza no tiro, e isso era a primeira coisa a aprender. Porque na guerra, numa trincheira ou em outro lugar, é raro alguém disparar um único tiro contra um inimigo.
Para atirar, era preciso saber segurar a arma com firmeza e apertar de leve o gatilho, sem puxa-lo com força. E manter o olho na reta entre a alça de mira, perto do gatilho, a massa de mira, na ponta do cano, e o alvo, um pouco abaixo do lugar visado, porque com o soco do disparo a arma levantava um pouco, sempre. Se fosse de pistola, a gente devia apoiar o pulso da mão que segurava a arma no pulso da outra mão. E nada daquilo que os mocinhos faziam no cinema, atirando com a arma na altura da cinta. Aquilo era piada, dizia o capitão. Bom, hoje tudo mudou, com essas armas que apontam a bolinha vermelha do raio laser para o alvo. Mas o princípio da firmeza ficou igual.
O capitão seguiu seu rumo, eu segui o meu. Nos cruzamos no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, o CPOR, de Porto Alegre. Era no começo de 1965. Ele se reformou, foi trabalhar na empresa privada. Eu entrei na universidade. E na política. Política? Na luta armada contra a ditadura, quero dizer. Por que entrei? Ideias? Sim, ideias. Mas eu achava, além das ideias, que quem não ia até o fim era covarde. E ir até o fim era pegar em armas.
Fui para São Paulo, depois o Rio de Janeiro. Participei de ações importantes. Dei apoio ao sequestro de um embaixador, para trocá-lo por prisioneiros políticos que eram torturados e podiam ser assassinados. Qual embaixador? Não importa. Não quero entrar em detalhes.
Mas os tempos apertaram. E a organização a que eu pertencia começou a se desfazer. Os companheiros começaram a cair, um atrás do outro. Restamos umas poucas células, uns poucos quadros. Numa noite, eu e mais três de minha célula tomamos uma resolução: sair do país. Estávamos isolados, não tínhamos mais contato com o comando, nem com outros companheiros. Depois, talvez, voltar. Mas para sair precisávamos de dinheiro.
Imaginamos uma ação ousada. Nada de expropriar um banco. Isso era manjado. Imaginamos o cofre de uma empresa. Naquele tempo, sem computadores e sem dinheiro virtual, o importante era o cofre. Lá estavam os dólares ilegais, não declarados, as verdinhas, a grana preta, como se dizia. E assim foi.
Entrar na empresa foi fácil. Não havia detectores de metal. Ir até a gerência, render o gerente, os seguranças, tudo isso foi rápido. O gerente tremia, mas conseguiu abrir o cofre, e pegamos a grana. Aí, era preciso sair. Isso foi difícil.
Outros seguranças vieram, mais experientes, não treme-tremes como os primeiros. Veio o apoio da polícia. Houve tiroteio. Os outros três companheiros ficaram para trás, perdidos. Depois eu soube que um morreu, e os dois outros foram presos. Passaram o diabo na tortura. Mas sobreviveram. Hoje um é agente do Ibama em Macapá e o outro virou pai-de-santo na Casa Verde, em São Paulo. Estão bem, parece. Mas nunca mais nos vimos. Nem eles sabem de mim, só eu deles.
Eu embarafustei por uma porta em direção aos fundos, não à frente do prédio, onde a guarda e a polícia bloqueavam o caminho, e consegui chegar até uns muros, atrás. Quando me preparava para subir nuns caixotes e pular, ele apareceu. O Capitão Roberto. Ele trabalhava naquela firma. Depois eu soube que era o chefe da segurança. Os nossos olhos se cruzaram. Num relance, eu atirei primeiro. No meio do peito, como ele me ensinara. O tranco da bala mata o cara. Faz o coração parar. Pulei o muro, me fui, me perdi na cidade, no país, no mundo. Ele morreu.
Tempos depois, um psicólogo que me atendeu me explicou que talvez a minha juventude detivera a mão dele. Quem sabe a história que ele tinha vivido na Itália cobrou seu preço? Aquele fulgor de olhar que ele vira nos olhos do outro e que deve ter visto no meu. Vá se saber.
Consegui fugir do país com a grana que eu levei. Fui primeiro para o Uruguai. Acabei na França. Meu nome verdadeiro nunca apareceu em processo algum, só o falso, de guerra. Os companheiros presos ou seguraram, ou não sabiam mesmo quem eu era de verdade. Mas mudei de nome, consegui papéis. Na Europa, naquele tempo, era mais fácil. Consegui um emprego, casei, tenho família. Minha mulher sabe de toda a história, nossos filhos ainda não. Talvez um dia eu lhes conte tudo, para terminar de desabafar. Por quê? Porque herdei o sonho do capitão. Todas as noites, eu e ele nos vemos diante daquele muro. Eu atiro, ele morre. Mas como um vampiro, ele renasce na noite seguinte. Ou será que sou eu o vampiro?
Estou para me aposentar. Sou – que ironia! – chefe de segurança de uma usina nuclear. Na nossa empresa há uma rotatividade constante. Em seguida recebo uma turma de novatos. Aos que usam armas, que ficam nas portas, nas entradas e saídas, às equipes de assalto e aos da manutenção das armas, até aos vigias do circuito de tevê, sempre começo dizendo:
_Usar uma arma tem três mandamentos...
É uma ironia, mas também uma homenagem.
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