Encurralados entre a Des-integração Social e a Regulação Moral

Há quem duvide podermos ter tido alguma influência sobre as decisões de alguns suicidas gênios; ou sobre as volições de algumas almas que se purificaram em saltos de Lêucade ou artes icárias.

Por Rilton Primo - no Vermelho


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São êxtases. Voltando aos grandes números - onde a normal gaussiana não explica as exceções, mas o contrário -, cogitemos sobre as razões pelas quais, e.g., o suicídio de Policiais Federais (PF) no Brasil siga matando duas, quatro vezes mais que as operações que envolvem confrontos.

Comentando o problema, um PF redarguiu: “Toda vez que números de suicídios em forcas policiais brasileiras chegam a mim me impressionam, mas não por serem altos. Eles deveriam ser muito maiores considerando todo o cenário”. Embora tenhamos atingido o pico de um suicídio por mês, aproximadamente, especialistas creem que a realidade pode ser ainda mais grave, caso se incluíssem as mortes por causas não esclarecidas e as tentativas de suicídio. Será uma doença? 



A arbitrariedade dos que dizem “normais” ou “anormais” estes ou aqueles indivíduos, nestes e naqueles quadrantes, foi satirizada mil vezes, como n’O Alienista, de nosso literato-mor, epilético. Chegamos enfim ao ponto, semelhante ao epílogo da trama do conto machadiano, em que ninguém está “doente”, apenas em condições que o fazem usuário de serviços de saúde psíquica. Linguística? Em encontro de médicos e militantes da saúde um psiquiatra mostrou-se desolado, com seus iguais, não tanto por medicarem o ser humano às vezes até a amnésia de si e daquelas condições compelidoras, mas por estigmatizá-lo com um código correspondente a cada suplício.

Na física quântica estamos acostumados à impossibilidade de observar sem afetar os observados.

Ponto pacífico: o ato de rotular subjetividades pode albergar preconceitos criminosos, induções patogênicas e antiéticas. A arte ou vício de criar nomenclaturas para os nossos semelhantes ou, inversamente, a de rever constantemente as classificações, considerando as peculiaridades de cada caso, estão comprometidas pela subjetivação do analista, quando não pela insuficiência dela ou, o que talvez seja mais frequente, pela perversidade desta subjetividade igualmente humana e passível de transtornar-se, inconscientemente e não, qual nas contratransferências das “terapias”.

Para observadores como Foucault, os modos de subjetivação possíveis do analista e do analisado vão da escolha estética à política, por meio dos quais se “acolhe” determinado tipo de existência.

Abolir ou polir palavras substantivas ou adjetivas, todavia, pouco teria que ver com a solução real dos problemas mentais ou de quaisquer outros, exceto os linguísticos, e em parte. Dir-se-ia, em termos filosóficos, esta seria uma arte neoescolástica, cuja sintomatologia é verificada no quadro da síndrome neosolipsista ou wittgensteiniana tardia, que prefere se esbater com as falhas da representação que com as da realidade que a desvirtuou. Nominalista, hegeliano, kantiano: Pirros.

O que aguarda mais das licenças poéticas, se engana. A noite anoiteceu tudo... O mundo não tem remédio... Os suicidas tinham razão, disse um eminente C. Drummond, que não se matou nunca. Um colega seu de profissão ironizou outro, suicidado, e até o acusou de pusilanimidade, em frase de tédio e vodca celebrizada, algum tempo antes de também matar-se. Filha e genro do imortal Marx, suicidas! Outros viveram. Rousseau diria: “Ai dos sensíveis e das crianças, nas sociedades disciplinares e Estados policiados; o homem tanto perde, metido a ferros, que os estima.” E revive.

Qualquer pessoa minimamente familiarizada à psicanálise sabe que, em termos clássicos, a teoria da repressão (recalque) é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura desta abordagem e que os transtornos mentais dos adultos, eclodindo mais facilmente diante de condições de pressão e abuso sistemático, radicam em experiências contra a naturalidade, desde as infâncias.

O próprio louvador do Contrato Social satirizaria: “No estado em que já se encontram as coisas, um homem abandonado a si mesmo, desde o nascimento, entre os demais, seria o mais desfigurado de todos. Os preconceitos, a autoridade, a necessidade, o exemplo, todas as instituições sociais em que nos achamos submersos abafariam nele a natureza e nada poriam no lugar dela. Ela seria como um arbusto que o acaso fez nascer no meio do caminho e que os passantes logo farão morrer, nele batendo de todos os lados e dobrando-o em todos os sentidos.”

Verbo deleuziano, o fim seria o produto-processo em que a engranagem maquínica da “sociedade regulada” de Gramsci desnaturalizaria o ser humano até estropiá-lo uma máquina-subjetividade.

Figuras de linguagem e tecnicismos postos à parte, ao menos por um momento, o suicídio é uma situação-limite diante da qual as energias que passam pelo cérebro de alguém já não podem ser tratadas como compatíveis com sua própria existência, e é um desafio encontrar seu sentido puro. O que tomamos pelo senso comum como rotinas, obumbra nonsenses mais letais que a “doença”. Não basta supor, por trás da lucidez e homeostasia clínicas, existam problemas, porque invisíveis. A máscara de problemas parece ter que encobri-los até o ponto em que nada mais há que revelar.

Não sendo doença, não há “cura”. Sendo, pode não haver remédio. Resta evitar, quando possível. Se, como deixou firmado Freud, a verdade biográfica é indevassável, a anamnese pode cogitar causas menos remotas e fatores predisponentes do colapso. Rijo é o enigma das autodestruições. A adoção de uma hipótese multifatorial é inevitável, absorvendo, no fator subjetivo, os objetivos.

O próprio trabalho de um policial exige a despersonalização de seus relacionamentos interpessoais, explica a dissertação de mestrado Quero Morrer do Meu Próprio Veneno, defendida em Portugal pela delegada federal Tatiane da Costa Almeida: “Ele deve atuar sem demonstrar emoção, bem como colocar uma barreira que o proteja da miséria humana que é obrigado a testemunhar. Porém, mesmo quando não estão de serviço, os policiais têm dificuldade de religar suas emoções, o que resulta no estabelecimento de relações pessoais um tanto impessoais, já que estas demandam emoções que ele tem dificuldade de vivenciar”. A realidade não cabe aqui: O assédio moral e a perseguição que servidores e sindicalistas sofrem nas dependências da PF são razão de protestos, sabe-se. Os sindicatos há décadas denunciam o sucateamento do órgão, desamparo da categoria. Assinalam problemas antigos que vão desde o pequeno contingente às estruturas físicas inadequadas, passando pela falta de viaturas e armamento, até o atual contingenciamento de verbas que tem levado não poucas unidades da PF a atrasos de contas simples como luz e água. Já desde quando alunos na academia, são sujeitos a uma intensa rotina, sob regime de semi-internato, das 7h40 às 19h30, de segunda a sábado, longe da família e dos amigos. Depois de formados, nas palavras da Federação Nacional dos Policiais Federais, "o grande problema é que os agentes federais se submetem a um regime de trabalho militarizado, sem que tenham treinamento militar para isso". Se não isto, as rotinas burocráticas os consomem.

Neste sentido, se teorizou, nos tempos de É. Durkheim, que o referencial das taxas de suicídio era o grau de desequilíbrio de duas forças: 1) integração social e 2) regulação moral. Ideias fecundas. Embora ainda deem frutos, o que se precisa é de uma atualização deste referencial para o Brasil.

Para Durkheim apenas se pode comparar e explicar um fato social por outro, do que as taxas de suicídio só poderiam ser elucidadas em função de fatores sociais, dos divórcios, das crises econômicas, e.g., não por questões objetivas, como pretenderam os sociólogos da escola paretiana, ao aventar correlações fortes entre o suicídio e as variações de temperatura, conjetura desmentida pelo próprio Durkheim ao discutir Lombroso e Ferri, cotejando taxas de suicídio no Norte e Sul da Itália, à parte II, capítulo III, Livro Primeiro do seu Le suicide. Estabeleceu mais: um suicídio é um fato pontual, cujo esclarecimento pode ser aparentemente restringível ao âmbito psicológico; mas uma sequência, revela o oposto: tratar-se de possível tendência incompreendida.

A delegada T. Almeida chegou a apurar que, ao longo do tempo, ao serem solicitados para situações de miséria humana e demandas que não conseguem resolver, os policiais podem sentir-se frustrados/impotentes, distanciando-se e adquirindo uma visão cínica da realidade, processos desumanizadores reforçados pela exposição a situações degradantes de violência, morte e abuso sexual, “impelindo o policial a se proteger, por exemplo, abusando do álcool ou adotando uma postura fria, como reflexo do mecanismo de defesa do ego”. Ainda neste estudo verificou-se que o fator mais importante é a questão do isolamento. A natureza da sua atividade exige objetividade e despersonalização. Não apenas o trabalho em regime de plantão contribui para o isolamento. O policial federal já é, desde o curso de formação, isolado e desintegrado, lotados nas localidades de difícil provimento, regiões de fronteiras, norte e centro-oeste, numa comunidade que não é a sua. Por fim, “o policial é compelido ao papel social ditado pela organização formal - preocupada em manter a imagem de uma organização que funciona e em que os membros marcham ‘como um homem só’ - sob pena de sofrer penalidades disciplinares. Por outro, deve obedecer às exigências da cultura informal, sob pena de sentir-se excluído pelos seus pares. O problema é que, em geral, as culturas formal e informal estão em oposição nas
organizações policiais. Daí o policial viver em constante conflito, para se equilibrar entre as prescrições da cultura policial formal e informal, e o seu papel como indivíduo. Não é de estranhar que o policial se veja invadido por sentimentos ambivalentes em relação ao público, à instituição, aos seus colegas, à sua família e amigos, e ao seu próprio trabalho, que ele ama e odeia.” Admiração virada em egoísmo-arrivismo.

Por falar em personalidade, não é ocioso lembrar com Silvia Tedesco, da Universidade Federal Fluminense, que “o processo de subjetivação bifurcante distancia-se das determinações subjetivas estabilizadas para criar novas experiências de mundo, dispositivos heterogêneos, fugidios, atitudes não repertoriáveis e sempre desconcertantes para a figura subjetiva.” Crises.

O autor de O Emilio atacou, há mais de dois séculos, sem que, aqui, já lhe tenhamos respondido: “Aquele que, na ordem civil, deseja conservar a primazia da natureza, não sabe o que quer. Sempre em contradição consigo mesmo, hesitando entre suas inclinações e seus deveres, nunca será nem homem nem cidadão; não será bom nem para si nem para outrem. Será um dos homens de nossos dias, um francês, um inglês, um burguês; não será nada.” A morte, como fuga. Se isto se passa com o comum dos cidadãos, excita imaginar que ocorre ao policiador do cidadão.

Alunos da Academia Nacional de Polícia (ANP) expressaram seus sentimentos, pensamentos e emoções e as dimensões significativas encontradas para o suicídio foram, por ordem de importância, “Mal-estar”, “Desesperança”, “Debilidade” e “Fuga”, apurou a referida dissertação de Almeida para a qual, no estudo do fenômeno do suicídio policial é fundamental focar o fator isolamento e a solidariedade interna. Por falar nela (ou em seu colapso), o título “Morrer do Meu Próprio Veneno” alude ao simbolismo que a arma tem para cada policial, meio preferido para o gesto suicida. Desmoronando vertiginosa espiral, quando o PF é diagnosticado com transtornos psicológicos ou depressão, pode ter sua arma e distintivo subtraídos, “o que faz com que ele se sinta marginalizado dentro da própria instituição”; mas o pior não é bem isto, segundo o presidente do Sindicato Estadual dos Policiais Federais do Mato Grosso do Sul, Jorge Caldas, já para quem urge recuperá-lo e trazê-lo de volta para a atividade policial, mas “o que o departamento faz é não dar o devido tratamento. Esse servidor fica marginalizado, encostado em sua residência. Cai num nível de depressão e estresse tamanho que acaba recorrendo ao suicídio." Vezes aos psicoativos.

Entre 2012 e 2013 a taxa de policiais federais que não se suicidaram por sobreviver medicados despertou a corporação: 30%. A repórter Débora Lopes conta que um agente federal com 18 anos de serviço relatou-lhe que, faz poucos dias, ligou para um amigo também policial federal que estava retornando à função depois de 15 dias de férias e desabafou: "O descanso não foi suficiente. Estou me entupindo de Rivotril pra ir trabalhar". Consta em pesquisa feita pela Universidade de Brasília (UnB), há três anos, que 53% dos PF gostariam de se desligar do órgão, a despeito do prestígio, estabilidade profissional e salários que ultrapassam R$ 16 mil, até porque 88% dos PF consideraram não haver programa para o bem-estar ou atenção à saúde do servidor.

Registrou-se mais um suicídio, um PF de 39 anos, em sua sala de trabalho. Mulher PF e filha longe, apurou-se. Porém vinte casos o precederam, não se podendo apurar igual situação, pela qual, aliás, outros milhares passaram sem suicidar-se. Pouco há de explicável, pelo aparente. Ou há? Voltando ao sociólogo, “se em lugar de apenas vermos os suicídios como acontecimentos particulares, isolados uns dos outros [...] nós considerássemos o conjunto dos suicídios cometidos numa sociedade dada [ou grupo], durante uma unidade de tempo dada, constata-se que o total assim obtido não é uma simples soma de unidades independentes, um todo de coleção, mas que ele constitui por si só um fato novo e sui generis, que possui sua unidade e sua individualidade, consequentemente sua natureza própria, e que, ademais, é uma natureza eminentemente social.”

Aprofundou a discussão através de comparações entre as taxas de suicídio de diferentes grupos e constatou que eram mais estáveis que as taxas de mortalidade destes mesmos grupos, e que as variações entre os grupos podiam ir do dobro ao quádruplo ou ainda mais, o que lhe permitiu concluir que as taxas de suicídio são específicas a cada segmento social, razão pela qual, desde então, passaram a ser vistas como um índice social característico e não mais como fatos isolados.

Chegou-se, inclusive, à categorização de quatro tipos básicos de suicídios. As relativamente altas taxas dos tipos “egoístas”, por exemplo, estariam relacionadas aos fenômenos ligados a uma diminuição da integração social (por exemplo: maiores taxas entre homens solteiros do que wentre casados). Hoje diferentes especialistas assinalam que a sociedade científico-industrial moderna (o sistema positivo) se revela mesmo uma grande produtora de “egoísmo” e “des-integração social”, com suas consequentes elevadas taxas de suicídio. Se a falta de solidariedade entre as pessoas há séculos segue predispondo-as a se matarem, não é seguro que encontrem paz se reunidas.

Ainda ontem, dia 06 de maio, os sindicatos dos agentes federais do Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Bahia, Piauí, Paraíba, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Goiás, Alagoas, Minas Gerais, Maranhão, Brasília concentraram-se em frente às Superintendências e Delegacias das PF locais com faixas, cartazes e até um elefante branco inflável, intitulado inquérito policial, congregadas em um altissonante “Não” à proposta de emenda constitucional n.º 412/2009 - PEC 412, a ruidosa PEC da Autonomia que, segundo avaliação do presidente do Sindipol/DF, ao conceder amplos poderes a 10% do departamento, pode ampliar as possibilidades de arbitrariedades internas e externas. Um número indefinido tem apoiado a PEC. O momento é politicamente tenso, partidarizado; os interesses detrás das declarações, obscuros...

“Se precisamos melhorar a Polícia Federal, vamos melhorar a autonomia investigativa”, inferiu Jones Leal, presidente da Federação Nacional dos Servidores da Polícia Federal (Fenapef). Fala com base em dados. Em 2013 a Fenapef fez uma pesquisa de opinião criptografada, com margem erro de 3%, a agentes, escrivães e peritos em impressões digitais, revelando que 89,37% dos entrevistados acreditavam que existia falta de autonomia política em suas investigações e que 75,28% dos policiais já presenciaram ou ouviram relatos sobre interferências no trabalho investigativo. Ainda assim a PF, que é vinculada ao Ministério da Justiça, tem protagonizado as maiores missões já vistas de combate a crimes financeiros, desvio de recursos, corrupções várias.

No entanto, para o vice-presidente do Sindicato dos Agentes Federais, Hélio Freitas, a autonomia da PEC 412 seria excessiva, pois daria ao gestor da Polícia Federal poder para gerir verbas com liberdade e fazer as modificações administrativas que julgasse apropriadas, sem que isso precisasse passar pela análise prévia do Congresso Nacional, onde trabalham os investigados. Os delegados tomam estas críticas como elogios à proposta. Querem maior salário, lhes replicam.

Parece ser este o centro da disputa atual. Atos “solidários” são vistos com ceticismo por ambos os lados. No Maranhão, o diretor da Fenapef, Danilo Santos, considera não se poderia permitir que o individualismo minasse a PF. A defesa do “interesse público” – ou do que Durkheim chamaria da “solidariedade orgânica” - deveria decidir sobre esta emenda, avisa Santos. Para a delegada Tatiane Almeida, de fato a solidariedade interna assume uma importância central entre os policiais e decorre da necessidade de confiar nos colegas em uma situação difícil, e.g., convertendo-se, em armadura para que não conheçamos suas infrações. Mas, solidariedade não é corporativismo.

Destinado a reafirmar o individualismo dos interesses no seio de cada corporação e os interesses privativos desta corporação no seio das organizações sociais de um país, o corporativismo é um sistema político que atingiu seu completo desenvolvimento teórico e prático na Itália Fascista, quando as regulações morais e os disciplinamentos legais passaram a ser feitos diretamente pelas corporações representativas dos setores do país, mediante entidades de classe, pelas quais os indivíduos travariam disputas políticas individualistas, sem se unir na luta como classe social.

Confusa entre o corporativismo e a solidariedade, não admira que a PF siga suicidando-se entre a desintegração social e a regulação moral. Falta menos verba, salário, consulta, remédio, placebo, programa de prevenção ao suicídio e devolução de arma a bipolar que desmaquinizar o altruísmo.

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