Líbia: o pontão da morte

Libertada pelos civilizadores da selvageria de Kadafi, a Líbia ilustra em ponto pequeno o oceano de hipocrisia e indiferença por trás da fuga sem fim.

Redação da Carta Maior
matteo / Flickr
Corpos rígidos de negros jovens, corpos velhos, corpos de crianças, de mulheres grávidas. Cinquenta, setenta, cem, cento e cinquenta, duzentos, duzentos cinquenta, quatrocentos, setecentos... podem passar de 900 desta vez. Ou mais.
 
Ninguém sabe ao certo. A contabilidade da morte é opaca quando o cemitério é o mar e o esquife é a noite.
 
O Mediterrâneo se transformou no grande sepulcro da vergonha em nosso tempo.
 
Barcos clandestinos cortam suas águas atulhados de desespero e desolação e naufragam sob o peso da devastação colonial que faz da África hoje o único lugar no mundo onde a fome só cresce, as guerras não tem nome e a barbárie étnica apaga com sangue as fronteiras traçadas pela geometria do europeu branco e predador.  

 
Esse horizonte funesto ganhou um porto à altura do seu desalento: a Líbia.
 
‘Libertada’ pelo Ocidente, em 2011, é de lá que partem dois de cada três futuros náufragos do Mediterrâneo, a buscar uma redenção renegada pela xenofobia dominante na terra de seus antigos algozes.
 
A chegada irregular de imigrantes provenientes do pontão líbio triplicou em 2014. Mais de 170.000 pessoas. Da Líbia provinham também as duas últimas embarcações naufragadas a assoalhar o fundo do canal da Sicília nos últimos dias.
 
O pesqueiro de 20 a 30 metros de comprimento que submergiu a 70 milhas das costas da Líbia, a 120 milhas da Ilha de Lampedusa no último dia 18, trazia mais de 900 integrantes dessa diáspora fúnebre.
 
Embarcaram para o seu fim em um porto vizinho a Trípoli, a capital líbia hoje fracionada entre milícias adversárias.
 
Apenas 28 sobreviveram para narrar a devastação.
 
Foi a maior tragédia da história da migração no Mediterrâneo. Está longe de ser a última.
 
Quatro dias antes, outras 400 pessoas saíram da Líbia, rumo à Sicília, para o afogamento no meio da travessia.
 
Só este ano, 1500 imigrantes encontraram a morte quando buscavam um espaço para a sua vida nas costas europeias.
 
O cais líbio sintetiza o caos humano na África e no Oriente Médio.
 
A correnteza imigrante que o personifica, amarrotada em pedaços cascos clandestinos que quase nunca chegam ao seu destino, condensa a metáfora de um pedaço da humanidade que não encontra o seu lugar no jogo de xadrez montado pelas grandes potências ocidentais.
 
Libertada pelos civilizadores da selvageria de Kadafi, a Líbia ilustra em ponto pequeno o oceano de hipocrisia e indiferença por trás da fuga sem fim.
 
A construção desse estirão por aqueles cujos antepassados libertaram também a África de sua autonomia tribal, foi tema de uma análise perfurante do professor e colunista de Carta Maior, Jose Luís Fiori, em 2011, quando a obra estava em fase de festejos pela mídia não menos cínica.
 
Vale a pena ler de novo.
 
A LÍBIA, A OTAN E O “GRANDE MÉDIO ORIENTE”
 
                                                                                          JOSÉ LUÍS FIORI


“Se aqui e no exterior todos perceberem que estamos prontos para a guerra a qualquer momento, com todas as unidades das nossas forças na linha de frente prontas para entrar em combate e ferir o inimigo no ventre, pisoteando-o quando estiver no chão, para ferver seus prisioneiros em azeite e torturar suas mulheres e filhos, então ninguém se atreverá no nosso caminho”.
    John Arbuthnot  Fisher, Primeiro Lord do Almirantado da Marinha Real Britânica,  (cit. in Norman Angell, A Grande Ilusão, Editora UNB, 2002, p: 275)          



É preciso ser muito ingênuo ou mal informado, para seguir pensando que a “Guerra da Líbia”, foi feita em nome dos “direitos humanos” e da “democracia”. E ainda por cima, acreditar que o governo de Muamar Kadafi foi derrotado pelos “rebeldes” que aparecem nos jornais, em poses publicitárias. Tudo isto, enquanto a aviação inglesa comanda o ataque final das forças da OTAN,  à cidade de Sirta, depois de ter conquistado a cidade de Trípoli. Até o momento, a "primavera árabe" não produziu nenhuma mudança  de regime na região, mesmo na Tunísia e no Egito,  e não há nenhuma garantia de que os novos governos sejam mais democráticos, liberais ou humanitários que seus antecessores. Até porque, quase todos os seus líderes ocuparam posições de destaque nos governos que ajudaram a derrubar, com o apoio de uma multidão heterogênea e desorganizada. Sendo que, no caso da Líbia, não se pode nem mesmo falar de algo parecido a uma "mobilização massiva e democrática" da oposição, porque se trata de fato de uma guerra selvagem e sem quartel, entre regiões e tribos inimigas, que foram mobilizadas e "pacificadas" transitoriamente, pelas forças militares da OTAN.


Segundo Lord Ismay, que foi o primeiro Secretário Geral da OTAN, o  objetivo da  aliança militar criada pelo Tratado do Atlântico Norte, assinado em 1949, era "manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães para baixo". E este objetivo foi cumprido plenamente, durante todo o período da Guerra Fria.  Mas depois de 1991, a OTAN passou por um período de "crise de identidade" e redefinição do seu papel dentro sistema internacional. Num primeiro momento, a organização militar se voltou para o Leste e para a ocupação/incorporação de alguns países da Europa Central que haviam pertencido ao Pacto de Varsóvia. Além disto decidiu participar diretamente das Guerras do Kosovo e da Sérvia. E ao mesmo tampo, lançou, em 1994, um projeto de intercambio militar  e de segurança, com os países árabes do norte da África, o chamado “Diálogo Mediterrâneo”.  Dez anos depois, na sua reunião de cúpula de 2004, em Istambul, os dirigentes da OTAN decidiram expandir o seu projeto de segurança e criaram a "Iniciativa de Cooperação de Istambul" (ICI), voltada para os países do Oriente Médio. Além disto, neste mesmo período, a OTAN, que não havia apoiado as guerras do Afeganistão e do Iraque, decidiu aderir e colocar-se ao lado das tropas anglo-americanas, instalando suas forças também na Ásia Central.


Foram os ingleses que cunharam o termo "Oriente Médio",  para referir-se aos territórios situados no meio do seu caminho, entre a Inglaterra e a Índia, e que  pertenciam ou estavam sob a tutela do Império Otomano. Incluindo os territórios que foram retalhados e divididos depois do fim da 1º Guerra Mundial, sendo transformados em “protetorados” da Inglaterra e da França, que já eram, naquele momento, as duas maiores potências imperiais da Europa, tendo submetido e colonizado a maior parte da África Sub-Sahariana, e todos os países árabes do norte do continente, hoje incluídos no “Diálogo Mediterrâneo” da OTAN. Mas foi o presidente norte-americano, George Bush, quem cunhou o termo “Grande Médio Oriente”, apresentado pela primeira vez na reunião do G8, realizada em Sea Islands, nos EUA, em junho de 2004. A ideia era definir e unificar um novo espaço de intervenção geopolítica, que iria do Marrocos até o Paquistão, e deveria ser objeto da preocupação prioritária das Grandes Potências, na sua guerra contra o “terrorismo islâmico”, e a favor da “democracia” e dos “direitos humanos”. Desta  perspectiva, se pode compreender melhor o significado geo-estratégico da “primavera árabe”, e da Guerra da Líbia.  


Assim mesmo, o que se deve esperar que ocorra depois da guerra? Na Líbia, haverá um longo período de caos, seguido da formação de um governo de coalizão tribal, instável e autoritário, sob o patrocínio e a tutela militar da OTAN.  Ao mesmo tempo, estará dado um passo decisivo na construção de uma força de intervenção “ocidental”, capaz de projetar seu poder militar sobre todo o território islâmico do Grande Médio Oriente, e pode estar sendo criado o primeiro “protetorado colonial” da OTAN, na África.

               Junho de 2011



Créditos da foto: matteo / Flickr

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