Ferguson e Baltimore, apenas tensão racial?

  

A mídia hegemônica brasileira trata as rebeliões em cidades americanas como tema secundário do noticiário internacional. Nesta quarta-feira (29) nenhum dos jornalões sequer dá uma chamada de capa para a continuidade dos protestos. O país símbolo do capitalismo está em crise desde 2008 e a enfrenta aumentando a exclusão social. Mas a conta está chegando. O economista americano, Paul Craig Roberts, publicou em 2015 um artigo com um título chamativo: “O futuro da América será a ruína”.


No segundo semestre de 2014, a cidade de Ferguson vivou mais de 150 dias de revolta popular a partir de 9 de agosto daquele ano, quando o policial branco Darren Wilson atirou no jovem negro Michael Brown, 18 anos, que morreu. Segundo todas as testemunhas ouvidas o jovem não reagiu à abordagem e estava com as mãos levantadas. No dia 16 de agosto o governador do Missouri decretou estado de emergência e toque de recolher entre meia-noite e 5 horas. No dia 18 foi acionada a guarda nacional, braço do exército americano nos estados. Com o grande aparato repressivo em funcionamento, a situação foi controlada, embora incessantes distúrbios tenham continuado a acontecer até que chegamos de novo a uma grande revolta, desta vez em Baltimore onde, desde esta última segunda-feira (27) populares, principalmente jovens, enfrentam as forças de segurança, o que acontece até este momento. A rebelião atingiu tais proporções que o governo de Maryland decretou estado de emergência e a prefeitura de Baltimore impôs um toque de recolher.

Ferguson e Baltimore – Freddie Gray

É a segunda vez em menos de nove meses que medidas deste tipo são tomadas em território estadunidense, com o governo deslocando uma enorme força policial e militar para conter a revolta popular. O estopim agora foi o caso de Freddie Gray, um negro de 25 anos, que ao ser preso desarmado, no dia 12 de abril, foi tão espancado que teve sua coluna vertebral quebrada, vindo a falecer uma semana depois. A mídia hegemônica brasileira é tão servil que, repetindo as agências de notícias imperialistas, reproduz acriticamente a versão oficial sobre a morte do rapaz. Um exemplo disto é o jornal O Estado de São Paulo, segundo o qual “Freddie Gray teve sua coluna vertebral fraturada em circunstâncias ainda não esclarecidas”. A notícia correta seria algo como, “Freddie Gray estava sob custódia policial quando teve sua coluna vertebral fraturada, o que indica a ocorrência de violência policial, embora não se conheçam ainda os detalhes da agressão”. Assim como ignora as “circunstâncias” da morte de Freddie, a mídia também não faz uma pergunta óbvia: quais as causas destes constantes protestos populares, para além da questão racial?

Ferguson e Baltimore – “O futuro dos EUA será a ruína”

Em imperdível artigo publicado no Portal Vermelho, intitulado “EUA imperialista: decadência e isolamento” o médico e economista Sergio Barroso menciona os argumentos de Paul Craig Roberts, Secretário Assistente do Tesouro do governo Reagan, para quem os EUA estão passando ao estágio do subdesenvolvimento. Abaixo alguns trechos do artigo de Sergio Barroso que nos ajudam a entender Ferguson e Baltimore.

“Analisa o economista (Craig) – como inúmeros pesquisadores – que o transportar da manufatura da grande empresa americana especialmente à Ásia (‘outsourcing’) acelerou fortemente o fenômeno da desindustrialização do país”.

“Roberts reforça suas opiniões relembrando que os centros industriais dos EUA se tornaram ‘cascas’ daquilo que simbolizavam: Detroit perdeu 25% da sua população, assim como Gary Indiana 22%, Flint Michigan 18%, e St. Louis 20%”!

“Novos dados sobre a trágica decadência do império norte-americano revelam que no início deste ano já somavam 3,5 milhões de pessoas sem moradias, o que significa o triplo desse número desde 1983; estão sem teto 1,5 milhões de crianças das 15 milhões de crianças que passam fome. Igualmente triplicou nesse período para 18 milhões as casas-fantasmas (vazias e sem moradores!). A própria UNICEF (ONU) descreve atualmente os EUA como um país que menos protege suas crianças, em cuja lista aparece (inacreditavelmente) abaixo da Grécia e ficando apenas duas posições acima da Romênia. Eram 60 mil os sem tetos no último inverno, sendo a metade crianças”.

Ferguson e Baltimore – Para a mídia, “tensão racial”

Dados do último censo nos EUA, realizado em 2011, revelaram que um em cada seis americanos vive na pobreza, o que significa 46,2 milhões de pessoas. Segundo o escritório responsável pela pesquisa é a maior taxa de pobreza já registrada desde que os dados começaram a ser coletados em 1959. O censo mostrou ainda que a taxa de pobreza é mais alta entre negros (27,4%) e hispânicos (26,6%) do que entre brancos (9,9%). Entre crianças negras, a taxa de pobreza chega a 39%, mais de três vezes maior do que a registrada entre crianças brancas (12,4%). O censo também revela que cerca de 50 milhões de americanos não tinham seguro saúde em 2010. Mas para a mídia hegemônica, o que acontece nos EUA é fruto apenas de “tensão racial”, ou o que acontece é "conflito racial" termos quase obrigatórios em todas as coberturas sobre o assunto, ignorando a crescente injustiça social e as tensões que ela provoca. É fácil prever qual seria a abordagem desta mesma mídia e de seus colunistas amestrados se rebeliões semelhantes acontecessem em Caracas, La Paz, Quito ou Havana.

Charlie Hebdo e a liberdade de expressão

No último dia 19, um naufrágio no canal da Sicília matou, segundo o Alto Comissariado da ONU para os refugiados, cerca de 800 imigrantes que se dirigiam à Itália. Quase a totalidade das vítimas são pessoas negras e boa parte dos mortos é de crianças que acompanhavam os pais, refugiados de nações como Eritréia, Somália e Síria. Vejam abaixo o que publicou sobre a tragédia a revista Charlie Hebdo.



Sob o título “reagrupamento familiar no mediterrâneo”, o que a revista pratica sob o manto da liberdade de expressão é simples e tão somente um crime. Crime de preconceito. Crime de ódio. Qualquer humanista, diante do drama deste naufrágio, treme de indignação diante do que foi publicado. Imagine um africano, o que sentirá. Defender este escárnio com a alegação da liberdade de expressão é distorcer o sentido da liberdade de expressão e aviltar a noção de dignidade humana. Foi sempre a esquerda que em nosso país defendeu a liberdade de expressão. Foi sempre direita e a mídia hegemônica que apoiaram em peso a ditadura, a censura, o arbítrio e a tortura. No entanto, esta mesma mídia e seus hipócritas representantes enchem a boca para defender a “liberdade de expressão” como valor absoluto. O que ela ganha com isso? Simples, o direito de impunemente manipular, distorcer e estimular preconceitos de toda ordem. E quem compactua com isso não defende verdadeiramente os ideias da esquerda socialista.

Colabore com o Notas Vermelhas: envie sua sugestão de nota ou tema para o email wevergton@vermelho.org.br

Comentários