Eduardo Galeano: os imorríveis

'Somos como um vento que não morre quando a vida se acaba. Não creio em outra imortalidade, porque estou certo de que nós sobrevivemos na memória'

Stella Calloni - La Jornada
 na Carta Maior
Casa de América / Flickr
Dizem que Eduardo Galeano faleceu ontem, mas parece impossível aceitá-lo, porque se há um escritor bastante vivo na América Latina hoje é ele, que fez da palavra o maior jogo da imaginação para a vida.
 
Quando me presenteou com seu livro Las Palabras Andantes (1993, sem título em português) – num encontro em Montevidéu, anos atrás, e depois me deu todas as primeiras edições dos que lançou pela editora El Chanchito, criada por ele nos Anos 80 –, senti que era um trabalho que estava grávido de magia, tive o prazer de dizer isso a ele. Num dos parágrafos, podemos ler a melhor definição sobre seu próprio caráter: “Por favor, eu lhe rogo, não me ofenda você perguntando se essa história ocorreu. Eu lhe estou oferecendo para que você faça que ela ocorra. Não lhe peço que descreva a chuva naquela noite da visita do arcanjo: lhe exijo que se molhe. Decida-se, senhor escritor, e por uma vez ao menos seja você a flor que exala em vez de ser o cronista que a aprecia. Pouca graça tem escrever o que se vive. O desafio está em viver o que se escreve”.

 
Galeano aceitou completamente esse desafio, e por essa razão foi possível entrar com ele em todos os labirintos deste nosso continente e molhar-nos com as chuvas e tremer entre os furacões, e bailar quando a realidade circundante queria instalar em nós a cultura da morte. E podíamos falar dos temas mais relevantes que nos rodeiam, como esses milhares de seres ignorados que resistem simplesmente por “magias soltas da vida”.
 
Os temas que ele escolheu são variados, e nós os lemos como quem bebe uma água fresca que sai de uma cascata no meio da selva. Lemos com sede, porque, como a água, suas palavras nos acalmam e curiosamente nos abrigam. Era comovedora a ternura que aparecia em sua narrativa quando falava dos países da América Latina, da Bolívia, da Guatemala, da Nicarágua, onde em outros momentos compartilhamos uma viagem inesquecível à Costa Atlântica, na que aconteceram infinidades de situações que superaram qualquer ficção, ou quando ele pode “olhar vendo” a realidade do que significava o presidente Hugo Chávez para o seu país e a decepção que o golpeou ao ver os velhos amigos socialistas, que em algum momento foram figuras políticas da esquerda venezuelana, chegando a um encontro num hotel de Caracas, em luxuosos carros de grandes empresários defendidos por eles. Algo incompreensível para um escritor como Galeano, que disse isso a eles abertamente – eu fui testemunha.
 
Numa das várias entrevistas que pude fazer com ele, no período do aparente esplendor do neoliberalismo e da globalização em nosso continente, Galeano advertia que o mundo nunca havia sido tão desigual. “É um paradoxo terrível que retrata o fim do século (XX) de uma forma não muito amável, onde somos obrigados a pensar todos iguais, a nos vestirmos todos iguais, a comer as mesmas coisas, inclusive ocupando o lugar das comidas típicas. Creio que é preciso estar a favor da autodeterminação das comidas, como em tudo, porque as comidas típicas são uma das energias culturais mais poderosas que os países contêm (…) os pobres nunca foram tão pobres e os náufragos nunca estiveram tão abandonados. Nunca havíamos visto essa homogenização atroz, impulsada principalmente pela televisão. A grande uniformizadora de costumes é a televisão, que nos leva a não pensar com nossa própria cabeça, a não sentir e nos tornar incapazes de caminhar com nossas próprias pernas. Não estou confundindo a faca com o assassino, a televisão é um instrumento, mas da forma como funciona e a serviço de quem funciona, ela cumpre esse papel”.
 
Galeano era tão transparente em sua escritura como quando falava diante de públicos diversos, condenando a hipocrisia que era “estabelecer a uniformidade em nome da diversidade”. E nesse mesmo contexto, demonstrava que em nome da luta contra o dogmatismo se instalava o paradoxo de impor o pior dos dogmatismos, que é o dogmatismo do mercado. “Agora, existe uma onda universal de luta contra os fundamentalismos, na medida em que vão ficando sem inimigos, e com isso justificam mais gastos em armamentos… Já não há inimigos reais à vista, então fabricam novos: o mais poderoso é fundamentalismo islâmico, mas não dizem que, ainda mais poderoso, é ofundamentalismo dos tecnocratas do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, que impõem uma receita econômica obrigatória aos países do sul, dentro dos estreitíssimos limites da idolatria do mercado. Um conceito de economia e da vida que dá prioridade às mercadorias e não às pessoas, confunde qualidade de vida com quantidade de coisas e nega todos os valores àquilo que não tem preço, num mundo onde – como diria o poeta Machado (Antonio Machado, poeta espanhol) – qualquer idiota confunde valor e preço”.
 
Sobre os aspectos perversos de um sistema que, como ele mesmo analisava “assalta e rouba as palavras”, pensava que tudo isso o leva a valorizar o sentido que tem a aventura de escrever, “devolver às palavras o sentido que perderam, manipuladas como estão por um sistema que as usa para negá-las. Há uma lição que o mundo ignora e nos foi dada pelos índios guaranis, quando criaram o seu idioma. Em guarani, a palavra e a alma se dizem da mesma forma. Há uma voz ñ’e, onde dizem que palavra e alma são a mesma coisa. E neste sistema desalmado que alcançou a quase unanimidade universal em nome da luta contra o materialismo – que é o mais materialista dos sistemas que a humanidade já conheceu – a palavra tem estado e continua sendo manipulada com propósitos comerciais ou de trapaças políticas. Seu uso e abuso são a traição da alma. Ou seja, que esta identificação entre a palavra e a alma é quebrada todos os dias”.
 
Galeano sempre tinha respostas, e embora As Veias Abertas da América Latina (1971) seja o seu livro mais conhecido ao redor do mundo, admitia que cada escritor escreve, na realidade, um só livro e o mudando, renovando, revivendo, ao mesmo tempo que “a vida vive e o escritor continua escrevendo”. Lhe perguntei exatamente o que representava para ele Las Palabras Andantes, um livro de textura tão poética.
 
“Creio que esse livro é uma provocação que surge da imaginação coletiva. Muitos dos relatos que eu recolhi, nos caminhos por onde andei pela América, e outros são produto da imaginação. Mas tanto num caso quanto noutro, creio que o que o livro expressa é uma teimosa fé do autor numa questão humana fundamental, que é o direito de sonhar, que não está na Carta das Nações Unidas de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Há tantos direitos, mas entre eles não figura o direito de sonhar, que é um direito fundamental, sem o qual a pobre esperança morreria de fome. Se o sonho não nos permitir antecipar um mundo diferente, se a fantasia não tornar possível essa capacidade um pouco milagrosa que o bicho humano tem de cravar os olhos além do horizonte da infâmia, em que poderíamos acreditar? O que poderíamos esperar? O que poderíamos amar? Porque, no fundo, nós amamos o mundo a partir da certeza de que este mundo, triste mundo convertido às vezes em campo de concentração, contém outro mundo possível. Esse mundo possível que hoje vemos surgir na América Latina".
 
Tomo suas palavras andantes: “Sinto que somos gotas de algum dos tantos rios que sobrevivem à constante destruição provocada pela mão do homem, que insiste em destruir o paraíso onde pode viver. Somos como um vento que não morre quando a vida se acaba. E por isso não creio em outra imortalidade mais que essa, porque estou certo de que nós sobrevivemos na memória”.




Créditos da foto: Casa de América / Flickr

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