Cem anos depois, o que o reconhecimento do genocídio arménio levanta
Neste 24 de abril passa o 100º aniversário do começo do genocídio arménio. Face à negação do Estado turco, os historiadores têm travado uma batalha para fazer triunfar uma verdade hoje indiscutível: o massacre dos arménios da Anatólia foi concebido, planificado e executado metodicamente. Este artigo tenta analisar as causas desse genocídio e o que atualmente está em jogo com o seu reconhecimento.
Por Jean Batou - 24 de Abril, 2015 - 22:34h - ESQUERDA.net
Por Jean Batou - 24 de Abril, 2015 - 22:34h - ESQUERDA.net
Civis arménios, escoltados por soldados turcos, marcham para a prisão, abril de 2015 – Foto da wikipedia
A 22 de agosto de 1939, Hitler dizia aos chefes dos seus exércitos que pretendia semear a morte entre a população civil polaca, antes de acrescentar: “Afinal, quem fala hoje da aniquilação dos arménios?”.
Efetivamente, depois dos processos tentados por Istambul contra os principais responsáveis pelas políticas de extermínio, sob pressão das potências vitoriosas, entre 1919-1922, o genocídio arménio caiu rapidamente no esquecimento. Desde a fundação da Turquia kemalista em 1923, a versão oficial de Ancara não variou: os arménios foram vítimas dos rigores da guerra, de epidemias fatais e de atos de violência isolados. Portanto, o Estado otomano não teve nenhuma responsabilidade nesta hecatombe.
A mecânica do genocídio
No verão de 1914, antes até da entrada da Turquia na guerra em 26 de setembro, numerosos dados apontam que os arménios da Anatólia estavam já ameaçados de aniquilação pelo governo jovem turco do Comité União e Progresso (CUP), no poder desde 1908. A mobilização geral marcou efetivamente o começo de uma vigilância generalizada desta minoria, suspeita de simpatias pelo Império dos czares, enquanto as suas aldeias foram submetidas a uma opressão cada vez mais brutal: impostos arbitrários, confiscações, buscas, apreensão de armas, em particular as das organizações revolucionárias. Nas zonas fronteiriças com a Rússia, unidades especiais, compostas de refugiados muçulmanos dos Balcãs e de delinquentes, postas em pé pelo CUP e submetidas às ordens do exército, lançaram-se a uma primeira onda de massacres e de deportações seletivas de arménios, acusados de colaborar com o inimigo.
"Tendo em conta os sobreviventes no exílio, os convertidos à força e os que escaparam, a estimativa do número total de mortos oscila entre meio milhão e 1,5 milhões (0,8 milhões segundo o Ministro do Interior turco do imediato pós-guerra), de uma população total de 2 milhões de indivíduos"
A derrota de Sarikamis (NE da Anatólia) contra os russos (fins de 1914 - começos de 1915) provocou uma radicalização extrema dessas políticas, sendo os arménios considerados como um obstáculo maior à resistência comum das populações muçulmanas de origem turca contra a expansão russa. Neste contexto, em março de 1915, o CUP tomou a decisão de organizar a deportação e aniquilação da totalidade da população arménia da Anatólia. Na realidade, os governadores locais receberam do Ministério do Interior uma ordem criptografada que ordenava a deportação dos civis, enquanto a direção do partido lhes comunicava oralmente a orientação de executar sumariamente os homens que não estivessem alistados no exército. Por sua vez, os soldados foram desarmados e assassinados, tal como os homens mais jovens ou de mais idade matriculados nos batalhões de trabalho (cavadores, transportadores, etc).
É impossível enumerar as vítimas, forçadas a cavar as suas próprias sepulturas antes de serem abatidas nas imediações das suas aldeias, ou embarcadas no Mar Negro para nele serem afogadas. A deportação sistemática começou em maio - junho de 1915, nas províncias orientais, seguida pela das províncias centrais e ocidentais. Centenas de milhares de arménios, fugidos dos massacres in situ, viram-se obrigados assim a uma longa marcha para o sul: os que não foram assassinados pelo caminho pelos gendarmes ou por populações hostis, encorajadas a roubar os seus escassos bens, nem morreram de esgotamento ou de fome, foram reagrupados em campos de concentração na região de Alepo, antes de serem empurrados para o deserto onde os esperava uma morte certa. Tendo em conta os sobreviventes no exílio, os convertidos à força e os que escaparam, a estimativa do número total de mortos oscila entre meio milhão e 1,5 milhões (0,8 milhões segundo o Ministro do Interior do imediato pós-guerra), de uma população total de 2 milhões de indivíduos.
A racionalidade do genocídio
Do ponto de vista do Estado otomano, o genocídio arménio correspondeu a uma tentativa desesperada de salvar uma entidade política “turca”, face aos planos de partição do Império, que a Rússia e as potências ocidentais contemplavam de forma cada vez mais aberta. Após as independências nacionais grega (1830), búlgara, sérvia, montenegrina, romena (1878) e albanesa (1912), os territórios árabes ameaçavam por sua vez cindir, sem dúvida sob a tutela colonial europeia. Alguns anos mais tarde, imediatamente após a revolução de Outubro, as potências vitoriosas estudariam repartir territórios e zonas de influência na própria Anatólia, apoiando subsidiariamente uma Arménia, até um Curdistão, parcialmente independentes. Num cenário como este, o Império poderia ver-se reduzido a um estado marginal turco, no centro-norte da Anatólia.
"Do ponto de vista do Estado otomano, o genocídio arménio correspondeu a uma tentativa desesperada de salvar uma entidade política “turca”, face aos planos de partição do Império, que a Rússia e as potências ocidentais contemplavam de forma cada vez mais aberta"
Perante este perigo, o CUP encarou a possibilidade de uma expansão compensatória para o Leste, alimentada por um projeto pan-turco ou pan-islâmico, em direção ao Cáucaso, Azerbaijão, norte do Iraque, noroeste do Irão, etc. E com esta esperança decidiu entrar em guerra, em setembro de 1914, ao lado da Alemanha e da Áustria-Hungria. Este projeto, no entanto, ficaria rapidamente frustrado pelas derrotas do exército otomano frente à Rússia, desde o começo da Primeira Guerra Mundial. Foi então que se desencadeou uma batalha até à morte pelo controle da Anatólia Oriental que o governo de Istambul levou a cabo, em particular, deportando a população arménia cristã para benefício dos grandes proprietários de terras e dos colonos muçulmanos. Desde a primavera de 1915, como vimos, esta política generalizou-se a toda a Anatólia, dando lugar a um verdadeiro genocídio.
As razões de uma amnésia
Em 1918, o Império tinha perdido 85% da sua população e 75% do seu território de 1878. O novo governo otomano, dominado já por elementos hostis ao CUP, contava, no entanto, evitar a partição dos territórios ainda sob o seu controle, aceitando perseguir, julgar e condenar os responsáveis pelo genocídio arménio. Em junho de 1919, após a ocupação de Istambul por ingleses, franceses e italianos, e depois de Esmirna pelos gregos, Mustafá Kemal reagrupou as forças nacionalistas no centro da Anatólia, reunindo em torno de si os militantes jovens turcos após a dissolução do seu partido em 1918. Estabeleceu, com isso, um segundo poder em Ancara sem por isso se distanciar imediatamente das ações judiciais empreendidas por Istambul contra os dirigentes do CUP, responsáveis diretos das ordens para o genocídio.
Assim, durante um breve período, Istambul e Ancara aceitaram perseguir conjuntamente os chefes unionistas e os responsáveis governamentais, contanto que só as pessoas diretamente implicadas no planeamento e na execução dos massacres fossem julgados, tivessem que responder perante uma jurisdição nacional e de que a integridade territorial da Anatólia não fosse posta em questão. Mustafá Kemal chegou então, inclusive, a reconhecer a cifra, apresentada por Istambul, de 800.000 arménios mortos, atribuindo no entanto essa liquidação em massa a círculos governamentais muito restritos.
"O kemalismo abandonou muito rapidamente as suas declarações iniciais a favor de um julgamento dos responsáveis pelo genocídio ou dos direitos das minorias cristãs. A vitória final das suas tropas, no outono de 1922, abriu o caminho a uma atitude negacionista duradoura do novo Estado em relação ao massacre dos arménios da Anatólia"
Neste contexto, a prioridade dada pelas potências europeias aos objetivos coloniais do Tratado de Sèvres (agosto de 1920), que previa a partição do Império Otomano (incluindo a Anatólia), justificou aos olhos de amplos setores populares a fase ofensiva da guerra de independência turca, dirigida por Mustafá Kemal contra as forças gregas desde começo do ano de 1921, com o apoio da jovem União Soviética. Isto tanto mais que os principais líderes europeus justificaram a partição da Anatólia por uma vontade de “castigar” os turcos. Entretanto, a resistência na Anatólia também se radicalizava politicamente, declarando abertamente a sua adesão a um projeto republicano. Isto levou-o a promover por cima, de forma acelerada, sob o fogo do inimigo, as bases de um nacionalismo turco da Anatólia, até então balbuciante, combinando pertenças mais amplas - islão, otomanismo, pan-turquismo- sobre um território arbitrariamente delimitado pelas circunstâncias, que se converterá na Turquia.
Foi nestas condições particulares que o kemalismo abandonou muito rapidamente as suas declarações iniciais a favor de um julgamento dos responsáveis pelo genocídio ou dos direitos das minorias cristãs. Pelo contrário, a vitória final das suas tropas, no outono de 1922, abriu o caminho a uma atitude negacionista duradoura do novo Estado em relação ao massacre dos arménios da Anatólia. Efetivamente, a República define-se desde então como um Estado homogéneo nos planos religioso, nacional e social. É a expressão de uma só nação, na realidade maioritária (os curdos são apresentados como os “turcos das montanhas”) “representada” pelo seu partido único. Os seus cidadãos pertencem unicamente à religião muçulmana, ainda que as manifestações sociais desta sejam já então estritamente controladas pelo poder. Por fim, os seus cidadãos não conhecem nenhuma divisão de classe, o que permite à sua nova burguesia de Estado, apoiada pelo exército, proibir a formação de sindicatos e de partidos operários independentes.
Reconhecer o genocídio arménio: algo atual
Como assinalou o politólogo Benedict Anderson, as nações são sempre “comunidades imaginadas”. A dos turcos da Anatólia foi-o em tempo de guerra, no quadro do afundamento de um velho império multinacional, sob a ameaça de um projeto de partição colonial particularmente cínico, pretensamente justificado, pelo menos em parte, pela “reparação” do genocídio arménio. Desde os anos de 1990, com a implosão da URSS, e mais recentemente, com o afundamento dos vizinhos Estados sírio e iraquiano, a Turquia vê-se confrontada com uma séria crise de identidade. É a razão pela qual o reconhecimento do genocídio arménio, assim como dos direitos nacionais do povo curdo, são de uma importância crucial para permitir à sociedade desse país desenvolver uma ordem democrática fundada no exercício dos direitos populares, permitindo com isso também a expressão das reivindicações e das aspirações de classe das massas trabalhadoras.
"Para as esquerdas internacionais, a exigência do reconhecimento do genocídio arménio é inseparável da defesa intransigente das liberdades democráticas na Turquia, face a um Estado sempre tentado pelos métodos autoritários. Pressupõe ao mesmo tempo o apoio incondicional aos direitos nacionais do povo curdo, assim como aos direitos políticos e sindicais das massas trabalhadoras do conjunto do país"
Para as esquerdas internacionais, a exigência do reconhecimento do genocídio arménio é inseparável da defesa intransigente das liberdades democráticas na Turquia, face a um Estado sempre tentado pelos métodos autoritários. Pressupõe ao mesmo tempo o apoio incondicional aos direitos nacionais do povo curdo, assim como aos direitos políticos e sindicais das massas trabalhadoras do conjunto do país. Tais exigências devem também ser acompanhadas pela denúncia das intenções imperialistas dos vencedores da Primeira Guerra Mundial, que têm uma responsabilidade indireta no genocídio arménio. Ao mesmo tempo, a perspetiva socialista da “questão do Oriente” (nome dado pelas chancelarias ocidentais do século XIX às suas rivalidades coloniais) é hoje inconcebível sem o triunfo das aspirações democráticas e sociais dos povos do antigo império otomano, da Síria à Palestina, do Bahrein ao Iémen, do Egito à Tunísia.
Por isso, as esquerdas e os movimentos populares internacionais devem apoiar sem reservas as mobilizações revolucionárias dos povos do Médio Oriente e da África do Norte, que não dispõem de nenhum outro aliado face às forças da contra-revolução: os imperialismos norte-americano, europeu e russo, os Estados iraniano e turco, a Arábia Saudita e as demais petromonarquias, o islão político reacionário e o jihadismo criminoso. Para isso, têm que abandonar uma leitura dos conflitos reduzida à confrontação de Estados e de campos para partir antes de mais nada das contradições sociais fundamentais que os alimentam e das forças populares que, combatendo as diferentes formas de opressão, atuam verdadeiramente pela sua emancipação. Como dizia Rosa Luxemburgo, em outubro de 1896, num artigo em defesa de um ponto de vista socialista independente sobre as lutas nacionais na Turquia: “Não é uma casualidade se, nas questões abordadas aqui, considerações práticas conduziram às mesmas conclusões que os nossos princípios gerais. Pois os objetivos e os princípios da social-democracia derivam do verdadeiro desenvolvimento social e fundam-se nele; assim, nos processos históricos, deve resultar, em grande parte, que os acontecimentos contribuam finalmente para levar a água ao moinho social-democrata e que possamos ocupar-nos dos nossos interesses imediatos da melhor forma possível, ao mesmo tempo que conservamos uma posição de princípio. Um olhar mais profundo sobre os acontecimentos torna supérfluo aos nossos olhos o facto dos diplomatas intervirem nas causas dos grandes movimentos populares e procurar os meios de combater esses mesmos diplomatas com outros diplomatas. Isso não é mais do que uma política de café”1.
Artigo de Jean Batou, publicado em vientosur.info. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net"
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