A emergência perene
Admitir 'provas' ilícitas, como quer Janot, significa estimular o descumprimento da lei. O poder das autoridades deve ser limitado para não ser abusivo.
Paulo Teixeira e Sérgio Salomão Shecaira - na Carta Maior
"O ônus da prova é de quem acusa", dizia a lei. Mas não em crimes graves, pois afinal são crimes graves e justificam a inversão do ônus da prova, ficou decidido. "Todos têm o direito de serem considerados inocentes até o trânsito da sentença penal condenatória", constava no código. Mas não em crimes graves, pois afinal são crimes graves. "Todos têm direito a um devido processo legal (due process of law)". Exceto aqueles que cometeram crimes graves, pois admitem-se exceções para crimes graves.
Superado o momento do conflito com os “terroristas”, as exceções não desapareceram. Foram incorporadas ao ordenamento e sua aplicação estendida para outros crimes. Resultado: criou-se uma perene emergência.
Vimos, muito recentemente, iniciativas em criar motes emergenciais no Brasil. Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo no dia 29 de março, o presidente da Ajufe, Antônio César Bochenek e o Magistrado Federal Sérgio Moro defenderam a ideia segundo a qual basta a condenação de primeira instância, mesmo que o réu tenha recorrido a cortes superiores, para que a prisão seja imediatamente cumprida. Com isso, a “situação emergencial” de combate à corrupção seria prontamente enfrentada.
Carlos Velloso, ex-ministro do Supremo, chegou a afirmar, em artigo de 31 de março no mesmo jornal, que “o entendimento no sentido de aguardar o trânsito em julgado contribui para a impunidade.” A presunção de inocência seria emergencialmente excepcionada para certos crimes. Afinal, estamos diante de um crime grave. Ora, tal medida, se adotada, inibiria o exercício do duplo grau de jurisdição e implicaria uma afronta ao Pacto de São José da Costa Rica, tratado do qual somos signatários desde 1992. Mais do que pensarmos no ordenamento interno, deveríamos olhar para o contexto em que nos inserimos, contrariando um dos mais importantes documentos internacionais de Direitos Humanos.
Na Ditadura Vargas, o recurso se processava com o réu preso, ainda que este fosse absolvido em primeira instância. No famoso erro judiciário conhecido como Caso dos Irmãos Naves, dois irmãos permaneceram encarcerados por oito anos durante todo o processamento do recurso do Ministério Público. Os réus haviam sido absolvidos pelo Tribunal do Júri de Araguari e só foram condenados pelo Tribunal de Belo Horizonte. Somente após a concessão da liberdade em sede de livramento condicional um dos acusados descobriu que a suposta vítima de homicídio estava acoitada na fazenda de seu pai. Naquele caso, a concessão da liberdade acabou funcionando como um permissivo para que o acusado de um crime muito grave pudesse demonstrar sua própria inocência. O Estado pagou a maior indenização de que se tem notícia por um erro judiciário.
Não se pode ignorar a própria história, pois ela é um roteiro para agirmos no presente e no futuro, e não apenas um armazém de precedentes.
Também no final de março, o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, em nome no Ministério Público Federal, sugeriu mudanças no Código de Processo Penal. Segundo ele, seria interessante que em algumas circunstâncias fossem admissíveis provas ilícitas. Especialmente quando os “benefícios decorrentes do aproveitamento forem maiores do que o potencial efeito preventivo”. Isto é, aquilo que se considera hoje uma nulidade absoluta deixaria de sê-lo.
Seu colega de Ministério Público, Deltan Dallagnol, chegou a dizer que é preciso ponderar o tamanho do erro: “Não podemos derrubar um prédio porque se encontrou um vazamento num cano. Somente erros muito graves podem levar à derrubada de um prédio”. Trocando em miúdos, pequenas nulidades são admissíveis. Grandes nulidades, não. O difícil será dizer quais são as grandes e quais as pequenas nulidades. E quem declarará que estas ou aquelas são pequenas? Imagine-se que tenhamos uma prova ilícita obtida sob tortura. Pondere-se, entretanto, que a tortura não causou lesões nem deixou sequelas psíquicas. Derruba-se o prédio ou troca-se o cano?
O poder das autoridades deve ser limitado para que não desborde para o abuso e o arbítrio. O Estado de Direito e a sociedade civilizada pressupõem o devido respeito às garantias individuais da pessoa humana. Admitir "provas" ilícitas, ou abonar atos ilegais, significa estimular o descumprimento da lei. Não podemos permitir a existência de duas éticas distintas. O Estado pode fazer o que quiser, descumprir leis e até mesmo garantias constitucionais sob o pálio de uma proporcionalidade imaginada em cada caso segundo as conveniências ideológicas do acusador de plantão. Enquanto isso, réus serão cobrados por quaisquer deslizes. A paridade de armas demanda a existência de regras iguais e que não podem ser excepcionadas ao talante do operador do Direito.
Enfim, esperamos que a serenidade tome conta de todo o debate acerca do sistema punitivo, e que não ignore nosso passado autoritário de duas ditaduras no século XX, pois não queremos ver o Brasil retroceder de forma antidemocrática e caminhar a passos largos para a barbárie.
Paulo Teixeira é deputado federal (PT-SP)
Sérgio Salomão Shecaira é professor titular de Direito Penal na USP
O importante jurista italiano Sergio Moccia, referindo-se à realidade de seu país, dizia que certas mudanças episódicas feitas no código penal para enfrentar crimes mais graves, como o de terrorismo, acabaram incorporadas ao ordenamento. O que deveria ser uma situação momentânea tornara-se definitiva. Casos que em nada se relacionavam com os crimes que deram ensejo ao endurecimento penal acabaram contaminados por aquela mudança.
"O ônus da prova é de quem acusa", dizia a lei. Mas não em crimes graves, pois afinal são crimes graves e justificam a inversão do ônus da prova, ficou decidido. "Todos têm o direito de serem considerados inocentes até o trânsito da sentença penal condenatória", constava no código. Mas não em crimes graves, pois afinal são crimes graves. "Todos têm direito a um devido processo legal (due process of law)". Exceto aqueles que cometeram crimes graves, pois admitem-se exceções para crimes graves.
Superado o momento do conflito com os “terroristas”, as exceções não desapareceram. Foram incorporadas ao ordenamento e sua aplicação estendida para outros crimes. Resultado: criou-se uma perene emergência.
Vimos, muito recentemente, iniciativas em criar motes emergenciais no Brasil. Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo no dia 29 de março, o presidente da Ajufe, Antônio César Bochenek e o Magistrado Federal Sérgio Moro defenderam a ideia segundo a qual basta a condenação de primeira instância, mesmo que o réu tenha recorrido a cortes superiores, para que a prisão seja imediatamente cumprida. Com isso, a “situação emergencial” de combate à corrupção seria prontamente enfrentada.
Carlos Velloso, ex-ministro do Supremo, chegou a afirmar, em artigo de 31 de março no mesmo jornal, que “o entendimento no sentido de aguardar o trânsito em julgado contribui para a impunidade.” A presunção de inocência seria emergencialmente excepcionada para certos crimes. Afinal, estamos diante de um crime grave. Ora, tal medida, se adotada, inibiria o exercício do duplo grau de jurisdição e implicaria uma afronta ao Pacto de São José da Costa Rica, tratado do qual somos signatários desde 1992. Mais do que pensarmos no ordenamento interno, deveríamos olhar para o contexto em que nos inserimos, contrariando um dos mais importantes documentos internacionais de Direitos Humanos.
Na Ditadura Vargas, o recurso se processava com o réu preso, ainda que este fosse absolvido em primeira instância. No famoso erro judiciário conhecido como Caso dos Irmãos Naves, dois irmãos permaneceram encarcerados por oito anos durante todo o processamento do recurso do Ministério Público. Os réus haviam sido absolvidos pelo Tribunal do Júri de Araguari e só foram condenados pelo Tribunal de Belo Horizonte. Somente após a concessão da liberdade em sede de livramento condicional um dos acusados descobriu que a suposta vítima de homicídio estava acoitada na fazenda de seu pai. Naquele caso, a concessão da liberdade acabou funcionando como um permissivo para que o acusado de um crime muito grave pudesse demonstrar sua própria inocência. O Estado pagou a maior indenização de que se tem notícia por um erro judiciário.
Não se pode ignorar a própria história, pois ela é um roteiro para agirmos no presente e no futuro, e não apenas um armazém de precedentes.
Também no final de março, o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, em nome no Ministério Público Federal, sugeriu mudanças no Código de Processo Penal. Segundo ele, seria interessante que em algumas circunstâncias fossem admissíveis provas ilícitas. Especialmente quando os “benefícios decorrentes do aproveitamento forem maiores do que o potencial efeito preventivo”. Isto é, aquilo que se considera hoje uma nulidade absoluta deixaria de sê-lo.
Seu colega de Ministério Público, Deltan Dallagnol, chegou a dizer que é preciso ponderar o tamanho do erro: “Não podemos derrubar um prédio porque se encontrou um vazamento num cano. Somente erros muito graves podem levar à derrubada de um prédio”. Trocando em miúdos, pequenas nulidades são admissíveis. Grandes nulidades, não. O difícil será dizer quais são as grandes e quais as pequenas nulidades. E quem declarará que estas ou aquelas são pequenas? Imagine-se que tenhamos uma prova ilícita obtida sob tortura. Pondere-se, entretanto, que a tortura não causou lesões nem deixou sequelas psíquicas. Derruba-se o prédio ou troca-se o cano?
O poder das autoridades deve ser limitado para que não desborde para o abuso e o arbítrio. O Estado de Direito e a sociedade civilizada pressupõem o devido respeito às garantias individuais da pessoa humana. Admitir "provas" ilícitas, ou abonar atos ilegais, significa estimular o descumprimento da lei. Não podemos permitir a existência de duas éticas distintas. O Estado pode fazer o que quiser, descumprir leis e até mesmo garantias constitucionais sob o pálio de uma proporcionalidade imaginada em cada caso segundo as conveniências ideológicas do acusador de plantão. Enquanto isso, réus serão cobrados por quaisquer deslizes. A paridade de armas demanda a existência de regras iguais e que não podem ser excepcionadas ao talante do operador do Direito.
Enfim, esperamos que a serenidade tome conta de todo o debate acerca do sistema punitivo, e que não ignore nosso passado autoritário de duas ditaduras no século XX, pois não queremos ver o Brasil retroceder de forma antidemocrática e caminhar a passos largos para a barbárie.
Paulo Teixeira é deputado federal (PT-SP)
Sérgio Salomão Shecaira é professor titular de Direito Penal na USP
Créditos da foto: José Cruz/Agência Brasil
Comentários