Os contextos da esquerda

O que une as esquerdas a curto prazo é a luta pela refundação das condições social-democráticas.

Boaventura de Sousa Santos - na Carta Maior
Fábio Nassif/Carta Maior
Os países do sul da Europa sofrem ameaças semelhantes e enfrentam desafios comuns, mas os contextos em que terão de lidar com umas e com outros variam de país para país. A maior ameaça é a austeridade sem fim, o bem-estar convertido em luxo de poucos, a indignidade e a precariedade impostas a maiorias cada vez maiores, a corrupção como modo normal de fazer política, a financeirização da vida, a democracia transformada num espantalho vazio agitado pelas cotações bolsistas para intimidar cidadãos ainda não resignados. 

O desafio maior é encontrar uma saída que não seja um precipício. 


Este é o maior desafio que as esquerdas enfrentam desde 1919. 

A grande dificuldade é esta: há um século, as esquerdas dividiram-se entre a opção socialista/comunista e a opção social-democrática; hoje, continuam divididas, apesar de não haver condições para nenhuma das opções. O que sempre as uniu foi a luta por uma sociedade mais justa e uma vida digna para as grandes maiorias. 

Sendo mais do que nunca urgente o objetivo que as une, será possível atenuar o que as divide? 

Debruço-me sobre a opção que na Europa resistiu mais, a social-democracia proposta pelos partidos socialistas. Sendo certo que os partidos socialistas participam em cerca de metade dos governos da UE, como se explica que a ortodoxia neoliberal, ferozmente anti-social-democrática, domine tão amplamente?

Sem dar demasiado peso ao atoleiro de mediocridade e de corrupção em que a política corrente se converteu, a razão reside em que há partidos social-democratas mas não há condições social-democráticas. O drama é que a ausência de tais condições afeta tanto os partidos socialistas como os partidos à sua esquerda que aspiram a ser governo. 

Ou seja, todos estes partidos põem na agenda o ideário social-democrático: direitos sociais assentes em políticas públicas bem financiadas, na saúde, na educação e na segurança social; justiça fiscal, Estado democraticamente forte, justiça acessível, independente e eficaz. 

Assim sendo, o que une as esquerdas a curto prazo é a luta pela refundação das condições social-democráticas. Para isso, é urgente trazer o social e o popular para dentro do político como forma de defender este do assalto à mão armada pelos mercados por parte do capital financeiro. 

É aqui que os contextos divergem. 

Na Grécia, o Movimento Socialista Pan-helênico (Pasok) está ferido de morte. O Syriza e o povo grego têm um crédito moral impressionante sobre os europeus do sul: um país periférico ousou negociar, em nome de um povo que não quer morrer de austeridade, em condições chocantemente desiguais. E prepara-se para o fazer sozinho durante meses e ainda por cima servindo de vacina contra o Podemos em Espanha e o Sinn Féin na Irlanda, os países onde a hidra financeira está focada. 

Na Espanha, o Podemos põe em causa a própria distinção convencional entre esquerda e direita, como forma de fazer emergir uma esquerda digna do nome. E provavelmente vai ter êxito. 

Em Portugal, o Partido Socialista pode ganhar as próximas eleições. Ao contrário do que acontece na Grécia e na Espanha, a esquerda não pode prescindir do PS nem o PS pode prescindir da esquerda. António Costa apresentou na recente cimeira de The Economist em Cascais um documento importante sobre a criação das condições social-democráticas. Não surpreende que não tenha tido eco. 

A direita já pressentiu o perigo e está apostada em neutralizar o PS em tudo o que o afaste dela. A estratégia é clara: converter a devastação social dos últimos anos num sucesso digno dos alemães; só dar visibilidade a António Costa em tudo o que faça do PS uma não alternativa. 

E o mais grave é que a direita está bem instalada dentro do PS, pronta para boicotar o Secretário-Geral. 

Se este se der conta a tempo, deverá trazer o social para dentro do político; dizer sem equívocos que não quer homens dos mesmos negócios de sempre na presidência da República; não ter medo das palavras pátria e soberania quando o país é já um protetorado; dar espaço às esquerdas, para que todos lutem pelos votos dos portugueses ofendidos e maltratados por este governo, em vez de se comerem uns aos outros; mostrar com veemência que, ao contrário de muitos que ocupam altos cargos, é um político honesto.
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Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).


Créditos da foto: Fábio Nassif/Carta Maior

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