O desafio de punir juízes no Brasil
Publicado na DW.
O juiz federal Flávio Roberto de Souza, flagrado dirigindo um Porsche apreendido na casa do empresário Eike Batista, está afastado das funções. Teve prisão pedida pelo Ministério Público Federal, mas negada pelo Tribunal Regional Federal do Rio. Em dezembro do ano passado, o magistrado maranhense Marcelo Baldochi foi punido por abuso de poder depois de dar voz de prisão a funcionários da TAM que o impediram de embarcar por atraso.
Mesmo com o afastamento, ambos recebem a aposentadoria compulsória, sanção máxima conferida a membros do Judiciário. Eles continuam recebendo vencimentos integrais ou proporcionais ao tempo de serviço, assim como mais de 40 juízes que, atualmente, estão submetidos a esse regime. No Brasil, um juiz só pode perder o cargo depois que for condenado e a sentença transitar em julgado – ou seja, quando se esgotarem todos os recursos.
“Essa aposentadoria privilegiada causa uma enorme revolta na população. Não é possível alguém cometer um fato grave e se retirar com uma renda muito superior à da maioria absoluta dos brasileiros”, afirma o desembargador Vladimir Passos de Freitas, professor da PUC-PR.
Propostas de reforma emperradas
A justificativa usada para a punição com aposentadoria é que os cargos são vitalícios. “Isso dá direito ao recebimento, mas não é republicano. Eles deveriam, se fosse o caso, pagar pelo prejuízo que provocaram. Não podem ser premiados com uma aposentadoria compulsória e recebimento de salários”, critica o ex-procurador Lenio Streck.
Duas Propostas de Emenda Constitucional (PECs) tramitam no Congresso para pôr fim à aposentadoria compulsória. A PEC 505, de 2010, está parada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. O projeto exclui a aposentadoria e permite a perda de cargo de magistrados e membros do Ministério Público. A PEC 53, de 2007, que também tramita na Câmara, prevê a aposentadoria, mas mantém intactos os vencimentos de autoridades acusadas de irregularidades.
Para Streck, a magistratura se beneficia de legislações atrasadas, que abrandam punições a juízes que cometem irregularidades. Segundo ele, vai levar anos ainda para equiparar a jovem cidadania – “porque a democracia brasileira é recente” – a uma Justiça centenária.
Corporativismo e impunidade
Segundo Freitas, a fiscalização sobre a conduta dos juízes tem melhorado, mas ainda existe muita proteção interna. “Muitas vezes os que aplicam a sanção são conhecidos dos infratores e decidem de forma muito condescendente, impondo, por exemplo, uma mera pena de advertência”, explica.
Ele acredita que a reforma da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) pode trazer avanços para o controle disciplinar dos juízes. “As próprias associações começam a se dar conta de que não podem proteger os que têm má conduta, porque isso afeta todos indistintamente”, diz.
A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) se posicionou a favor da apuração do caso do juiz que utilizou o automóvel de Eike Batista, rejeitando dar apoio ao magistrado. Para Freitas, essa é uma posição inédita. “Jamais vi uma associação tomar tal tipo de atitude”, afirma o ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre.
Para Streck, casos como o da TAM e o do Porsche mostram que os juízes se consideraram acima dos cidadãos. Freitas lembra que esses casos são exceções. “Mas eles acabam abalando a imagem de toda a classe. Por isso penso que as medidas disciplinares devem ser rápidas e efetivas.”
Herança patrimonialista
Para Streck, as leis do Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública são corporativas: “Elas trazem mais direitos do que deveres. Isso faz parte da nossa herança patrimonialista.”
O especialista dá um exemplo: entidades de classe querem que a presidente Dilma Rousseff vete artigos do novo Código de Processo Civil, aprovado pelo Congresso, que exigem fundamentação das decisões judiciais. Segundo nota das três associações de magistrados do país (AMB, Ajufe e Anamatra), os vetos não têm o objetivo de “diminuir o trabalho dos juízes”, mas preservar a independência funcional e a “duração razoável do processo”.
“Quando se trata de maior responsabilização para os juízes, as entidades recuam. O modo como elas lidam com a população ainda é muito autoritário”, avalia Streck.
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