Por que o ocidente não admite as verdadeiras raízes do terrorismo?
A violência política se alimenta da violência de Estado e da violência social. O radicalismo se alimenta das presepadas geopolíticas ocidentais.
Mediapart
Esses dois quadros de interpretação das chacinas se equivocam sobre um fato social maior: “a comunidade muçulmana não existe”, como lembra Olivier Roy. As organizações muçulmanas não representam os presumidos muçulmanos. Os presumidos muçulmanos constituem uma população diversa em termos de classe social, nacionalidade, tendências políticas e ideológicas, etc. Pluralidade completamente esmagada pelas injunções à desolidarização, neologismo que supõe uma solidariedade camuflada entre assassinos e supostos muçulmanos. Dito de outra maneira, os presumidos muçulmanos são assim presumidos culpados, mesmo quando entre eles existe um policial assassinado friamente e um outro antigo morador de rua que salvou inúmeras vidas no supermercado kasher. Os presumidos muçulmanos enfrentam assim uma situação terrível: eles seriam a fonte do problema pois são muçulmanos e se veem ao mesmo tempo chamados a se desolidarizar publicamente enquanto muçulmanos... Vivem então uma dupla indignação: uma que condena as mortes e tem empatia com as famílias das vitimas, e outra que rejeita a injunção difamatória a “desolidarização”.
Se esses dois tipos de discurso são impostos na França é porque os imigrantes de ontem são os presumidos muçulmanos de hoje. Depois do “problema da integração dos imigrantes”, nós passamos ao “problema muçulmano”, o que continua em jogo é: eles têm legitimidade para viver no território francês? A expulsão de desempregados não é uma solução concebida para o “problema do desemprego”, mas ela é claramente vislumbrada quando se trata do “problema muçulmano”. Existe uma verdade inconfessável quando a identidade dos presumidos muçulmanos é resumida a sua “islamidade”. Não é novidade: eles seriam somente franceses no papel e mereceriam ser expulsos mesmo tendo nacionalidade francesa.
Só podemos questionar a cegueira geral diante das fontes da violência que se abateu sobre a capital. A emoção nacional e internacional engendrada pelas chacinas tende a desqualificar os pesquisadores em ciências sociais e os jornalistas que descontroem os mecanismos de produção dessa violência (François Burgat, Olivier Roy, Farhad Khosrokhavar, Dietmar Loch, Vincent Geisser, Ahmed Boubeker, Samir Amghar, Mohamed-Ali Adraoui, Valérie Amiraux, Romain Caillet, etc.). Eles são descreditados, acusados de « angelismo », de « politicamente corretos », de « incapazes de ver a realidade ». A conjuntura histórica lembra a de depois do 11 de setembro, quando jornalistas limitados e filósofos de televisão davam lições aos cientistas políticos, sociólogos e jornalistas que pesquisavam há anos os grupúsculos violentos com referência islâmica. O que está em jogo é a possibilidade de produzir um discurso racional, fundado empiricamente, no momento em que islamofóbicos de todos os lados aproveitam a brecha para impor o retorno da ideia de “choque de civilizações”.
Depois de acusar os presumidos muçulmanos, os jornalistas e militantes que supostamente denunciaram a islamofobia do Charlie Hebdo é que foram colocados na forca. Estes seriam responsáveis pelas chacinas e deveriam prestar contas, como se os assassinos tivessem se inspirado nos seus artigos e comunicados para realizar a operação. Isso é atribuir-lhes uma dimensão midiática que eles não têm. O acesso à arena pública é seletivo e testemunha de uma assimetria persistente das modalidades de discurso. É desconhecer as verdadeiras influências ideológicas do comando que poderiam ser procuradas nos escritos dos xeiques da nebulosa Al-Qaeda. O raciocínio subjacente a essa acusação é um sofisma: defender a linha editorial do jornal e atacar os que a criticaram equivale a reconhecer que a chacina poderia eventualmente ser justificada pela natureza da linha editorial. Parece que a emoção vence a razão e que toda posição acadêmica, jornalística e militante que denuncie a islamofobia que realmente existe deva ser censurada. O risco é que esta responsabilidade coletiva vire uma punição coletiva: todos que “não são Charlie” seriam inimigos potenciais.
Para evitar essa cegueira mórbida, que só pode alimentar uma escalada violenta já ilustrada pela multiplicação de atos islamofóbicos, é indispensável voltar aos fatos e adotar uma análise profana da violência política. Esses combatentes não são os únicos a usar a violência: outros grupos o fazem em nome de outras ideologias e no contexto de outros conflitos. É absolutamente necessário desvincular a violência cometida pelos combatentes com referência islâmica para entender os mecanismos profundos e, se somos responsáveis políticos, encarregar-nos da prevenção. A questão que se coloca então é a seguinte: como se entra nessa “carreira” de combatente? Quais são as condições que possibilitam a violência política? As trajetórias dos membros do comando nos fornecem as seguintes indicações: o combate se alimenta das presepadas geopolíticas provocadas pelas intervenções militares ocidentais antes e depois do 11 de setembro (Síria, Iémen, Iraque, etc.). Depois de terem sido apoiados pelos Estados Unidos contra a União Soviética, “os combatentes da liberdade”, que eram talibãs e futuros quadros da Al-Qaeda, com a Queda do Muro tomaram como alvo seus antigos aliados estadunidenses. Eles impuseram ao Afeganistão sua ordem político-religiosa com a ajuda de potências internacionais, e criaram um refúgio para todos os combatentes do mundo, que partilhavam a mesma ideologia e que queriam aprender as técnicas de execução e de destruição. Várias gerações de combatentes foram formadas nos campos de treinamento afegãos. O “monstro” que acabou golpeando o coração das potências ocidentais em 1995 em Paris, em 2001 em Nova Iorque, em 2004 em Madri e em 2005 em Londres é filho das intervenções ocidentais, e se alimenta dos conflitos de poder na Argélia, na Tchetchênia, na Bósnia, etc. O acúmulo de capital militar desde os anos 70 propiciou que uma onda de violência sem precedentes perpetrada pelos combatentes experientes se abatesse sobre as potências ocidentais. A “guerra contra o terrorismo” favoreceu que esses grupos violentos que estavam confinados em alguns países se multiplicassem em países até então poupados ou menos afetados: Iraque, Síria, Líbia, Iémen, Mali, Paquistão, etc. Uma nova geração, encarnada pelos líderes da organização do « Estado Islâmico », se forma militarmente no combate contra a ocupação ocidental, se radicaliza nas ou às vistas das células de Abu Ghraib e de Guantánamo, e circula numa verdadeira rede transnacional que vai da África à Ásia. Quer dizer, a primeira fonte de violência política com referência islâmica reside na violência de Estado no Oriente Médio e nas consequências desastrosas das guerras declaradas em nome da “luta contra o terrorismo”.
Exaurir a fonte internacional é certamente a tarefa mais difícil: como proceder a uma política internacional francesa fundada no direito de autonomia dos povos e no (verdadeiro) respeito aos direitos humanos, sem rever as alianças com regimes autoritários no mundo árabe e na África, a política colonial israelita e os interesses das multinacionais francesas?
A segunda fonte de violência está ligada à grave anomia social nos bairros populares franceses. Contrariamente ao que subentende a injunção islamofóbica da “desolidarização”, três membros do comando são de certa forma “elétrons livres”, com frágeis laços pessoais e afetivos, produto de rupturas biográficas traumatizantes, de desfiliação social e de desigualdades estruturais, que os colocaram no mundo da delinquência e de grupúsculos violentos. Esses elétrons livres se “desolidarizaram” dos seus pares, principalmente dos laços familiares amplos e dos fiéis da mesquita local, não foram recuperados pelas estruturas de assistência educativa, e foram magnetizados pelos pregadores convictos da eminência do “choque de civilizações”, aliados objetivos de seus semelhantes neoconservadores. Esses filhos de classes populares absorveram um alto nível de violência social, que fez deles agonizantes que não encontram sentido na existência dentro das estruturas tradicionais, mas sim na ideologia niilista e mortífera que promete potência e reconhecimento, e que continua ultraminoritária nos bairros populares.
Podemos distinguir múltiplas tendências do islamismo na França: as mesquitas não filiadas, as grandes organizações próximas dos países de origem (Magrebe e Turquia), irmandades ou Irmandade Muçulmana, os Tabligh, os “salafistas” pietistas e apolíticos, os sufis, etc., e enfim, os grupúsculos violentos ditos “takfiristes”. Todos os dias, habitantes, militantes e responsáveis políticos locais lutam discretamente, sem virar manchete dos jornais, contra a influência desses grupúsculos violentos. Assim, os membros da “rede des Buttes Chaumont”, da qual os irmãos Kouachi faziam parte, foram excluídos das manifestações pró-Palestina pelos militantes da imigração e do antifascismo no começo dos anos 2000. Ironia da história: os que ontem se opuseram contra os grupúsculos violentos são hoje acusados quando denunciam a islamofobia... A existência desses grupúsculos violentos é então diretamente ligada às correlações de força internas às classes populares: se eles têm influência sobre certos elétrons livres é porque outras forças políticas, principalmente as herdeiras das manifestações pela igualdade e contra o racismo se enfraqueceram deixando um vazio político de onde emergem os candidatos ao horror. A propagacão desse fenômeno é favorecida pela extrema facilidade para comprar armas de guerra vindas da antiga União Soviética e pela mobilização constante das redes takfiristes para recrutar nas redes sociais, transmitindo uma ideologia e um conhecimento militar que ultrapassa as fronteiras.
Exaurir a fonte francesa tampouco é simples. Consistiria em atacar as desigualdades econômicas, sociais, escolares, a desqualificação política, o racismo endêmico, a estigmatização territorial, as fontes de violência social e de delinquência, e promover uma política de igualdade real para os inscritos na base da pirâmide social.
As condições que possibilitaram a violência política em janeiro de 2015 são múltiplas. As análises dos pesquisadores em ciências sociais mereceriam ser conhecidas pelos responsáveis políticos. Ora, são os “especialistas autoproclamados” no “islã-e-terrorismo” que são ouvidos pelas autoridades políticas, pelos conselheiros e pelas mídias. As falhas dos serviços de informação que tinham encontrado e interrogado os assassinos parecem ter sido ocultadas na aura das execuções. As primeiras reações políticas parecem ir pelo pior caminho: votar um “Patriot Act à francesa” quando uma lei liberticida sobre o terrorismo já foi votada há dois meses; reavivar o debate sobre a pena de morte, visar o "inimigo interno" muçulmano inassimilável, etc. Podemos esperar que alguns queiram rediscutir o jus soli. As lições políticas do pós 11 de setembro parecem não ter sido aprendidas: a violência política se alimenta da violência de Estado e da violência social.
Assinam o texto:
Chadia Arab, chargée de recherche au CNRS
Ahmed Boubeker, professeur à l'Université de Saint-Étienne
Nadia Fadil, professeure assistant à l’Université catholique de Louvain
Nacira Guénif-Souilamas, professeure à l'Université Paris 8
Abdellali Hajjat, maître de conférences à Université Paris-Ouest Nanterre
Marwan Mohammed, chargé de recherches au CNRS
Nasima Moujoud, maîtresse de conférences à l'Université de Grenoble
Nouria Ouali, professeure assistant à l’Université Libre de Bruxelles
Maboula Soumahoro, maître de conférences à l’Université de Tours
Tradução: Mariana Stelko
Para remediar “a cegueira geral diante das fontes da violência que se abateram” sobre Paris dias 7, 8 e 9 de janeiro, e que foram atribuídas rapidamente a um problema “muçulmano”, “é indispensável voltar aos fatos e adotar uma análise profana da violência política”, afirma um grupo de universitários dentre os quais Nacira Guénif-Souilamas, Abdellali Hajjat e Marwan Mohammed.
“O que faz ser um problema?” escreveu o sociólogo negro W. E. B. Dubois em 1903. Essa é há 30 anos a pergunta lancinante dos (presumidos) “muçulmanos” franceses e estrangeiros que vivem na França e na Europa.
O massacre no Charlie Hebdo e a tomada de reféns antissemita e mortífera perpetradas por um comando armado com três combatentes franceses que reivindicavam pertencer à Al-Qaeda e à organização do “Estado Islâmico”, somente exacerbaram as tensões políticas e sociais já existentes na sociedade francesa. Para alguns, essas mortes seriam somente a concretização macabra das profecias literárias e jornalísticas que entendem a “comunidade muçulmana” como um “povo dentro do povo”, e que os problemas decorrentes da presença só podem ser resolvidos com a “re-imigração”, conceito eufemístico que quer dizer “expulsão”. Para outros, que consideram importante não fazer amálgama entre islã e terrorismo, a única solução que resta a esta violência seria a “reforma do islã” que deveriam (enfim) proceder os teólogos e responsáveis muçulmanos.“O que faz ser um problema?” escreveu o sociólogo negro W. E. B. Dubois em 1903. Essa é há 30 anos a pergunta lancinante dos (presumidos) “muçulmanos” franceses e estrangeiros que vivem na França e na Europa.
Esses dois quadros de interpretação das chacinas se equivocam sobre um fato social maior: “a comunidade muçulmana não existe”, como lembra Olivier Roy. As organizações muçulmanas não representam os presumidos muçulmanos. Os presumidos muçulmanos constituem uma população diversa em termos de classe social, nacionalidade, tendências políticas e ideológicas, etc. Pluralidade completamente esmagada pelas injunções à desolidarização, neologismo que supõe uma solidariedade camuflada entre assassinos e supostos muçulmanos. Dito de outra maneira, os presumidos muçulmanos são assim presumidos culpados, mesmo quando entre eles existe um policial assassinado friamente e um outro antigo morador de rua que salvou inúmeras vidas no supermercado kasher. Os presumidos muçulmanos enfrentam assim uma situação terrível: eles seriam a fonte do problema pois são muçulmanos e se veem ao mesmo tempo chamados a se desolidarizar publicamente enquanto muçulmanos... Vivem então uma dupla indignação: uma que condena as mortes e tem empatia com as famílias das vitimas, e outra que rejeita a injunção difamatória a “desolidarização”.
Se esses dois tipos de discurso são impostos na França é porque os imigrantes de ontem são os presumidos muçulmanos de hoje. Depois do “problema da integração dos imigrantes”, nós passamos ao “problema muçulmano”, o que continua em jogo é: eles têm legitimidade para viver no território francês? A expulsão de desempregados não é uma solução concebida para o “problema do desemprego”, mas ela é claramente vislumbrada quando se trata do “problema muçulmano”. Existe uma verdade inconfessável quando a identidade dos presumidos muçulmanos é resumida a sua “islamidade”. Não é novidade: eles seriam somente franceses no papel e mereceriam ser expulsos mesmo tendo nacionalidade francesa.
Só podemos questionar a cegueira geral diante das fontes da violência que se abateu sobre a capital. A emoção nacional e internacional engendrada pelas chacinas tende a desqualificar os pesquisadores em ciências sociais e os jornalistas que descontroem os mecanismos de produção dessa violência (François Burgat, Olivier Roy, Farhad Khosrokhavar, Dietmar Loch, Vincent Geisser, Ahmed Boubeker, Samir Amghar, Mohamed-Ali Adraoui, Valérie Amiraux, Romain Caillet, etc.). Eles são descreditados, acusados de « angelismo », de « politicamente corretos », de « incapazes de ver a realidade ». A conjuntura histórica lembra a de depois do 11 de setembro, quando jornalistas limitados e filósofos de televisão davam lições aos cientistas políticos, sociólogos e jornalistas que pesquisavam há anos os grupúsculos violentos com referência islâmica. O que está em jogo é a possibilidade de produzir um discurso racional, fundado empiricamente, no momento em que islamofóbicos de todos os lados aproveitam a brecha para impor o retorno da ideia de “choque de civilizações”.
Depois de acusar os presumidos muçulmanos, os jornalistas e militantes que supostamente denunciaram a islamofobia do Charlie Hebdo é que foram colocados na forca. Estes seriam responsáveis pelas chacinas e deveriam prestar contas, como se os assassinos tivessem se inspirado nos seus artigos e comunicados para realizar a operação. Isso é atribuir-lhes uma dimensão midiática que eles não têm. O acesso à arena pública é seletivo e testemunha de uma assimetria persistente das modalidades de discurso. É desconhecer as verdadeiras influências ideológicas do comando que poderiam ser procuradas nos escritos dos xeiques da nebulosa Al-Qaeda. O raciocínio subjacente a essa acusação é um sofisma: defender a linha editorial do jornal e atacar os que a criticaram equivale a reconhecer que a chacina poderia eventualmente ser justificada pela natureza da linha editorial. Parece que a emoção vence a razão e que toda posição acadêmica, jornalística e militante que denuncie a islamofobia que realmente existe deva ser censurada. O risco é que esta responsabilidade coletiva vire uma punição coletiva: todos que “não são Charlie” seriam inimigos potenciais.
Para evitar essa cegueira mórbida, que só pode alimentar uma escalada violenta já ilustrada pela multiplicação de atos islamofóbicos, é indispensável voltar aos fatos e adotar uma análise profana da violência política. Esses combatentes não são os únicos a usar a violência: outros grupos o fazem em nome de outras ideologias e no contexto de outros conflitos. É absolutamente necessário desvincular a violência cometida pelos combatentes com referência islâmica para entender os mecanismos profundos e, se somos responsáveis políticos, encarregar-nos da prevenção. A questão que se coloca então é a seguinte: como se entra nessa “carreira” de combatente? Quais são as condições que possibilitam a violência política? As trajetórias dos membros do comando nos fornecem as seguintes indicações: o combate se alimenta das presepadas geopolíticas provocadas pelas intervenções militares ocidentais antes e depois do 11 de setembro (Síria, Iémen, Iraque, etc.). Depois de terem sido apoiados pelos Estados Unidos contra a União Soviética, “os combatentes da liberdade”, que eram talibãs e futuros quadros da Al-Qaeda, com a Queda do Muro tomaram como alvo seus antigos aliados estadunidenses. Eles impuseram ao Afeganistão sua ordem político-religiosa com a ajuda de potências internacionais, e criaram um refúgio para todos os combatentes do mundo, que partilhavam a mesma ideologia e que queriam aprender as técnicas de execução e de destruição. Várias gerações de combatentes foram formadas nos campos de treinamento afegãos. O “monstro” que acabou golpeando o coração das potências ocidentais em 1995 em Paris, em 2001 em Nova Iorque, em 2004 em Madri e em 2005 em Londres é filho das intervenções ocidentais, e se alimenta dos conflitos de poder na Argélia, na Tchetchênia, na Bósnia, etc. O acúmulo de capital militar desde os anos 70 propiciou que uma onda de violência sem precedentes perpetrada pelos combatentes experientes se abatesse sobre as potências ocidentais. A “guerra contra o terrorismo” favoreceu que esses grupos violentos que estavam confinados em alguns países se multiplicassem em países até então poupados ou menos afetados: Iraque, Síria, Líbia, Iémen, Mali, Paquistão, etc. Uma nova geração, encarnada pelos líderes da organização do « Estado Islâmico », se forma militarmente no combate contra a ocupação ocidental, se radicaliza nas ou às vistas das células de Abu Ghraib e de Guantánamo, e circula numa verdadeira rede transnacional que vai da África à Ásia. Quer dizer, a primeira fonte de violência política com referência islâmica reside na violência de Estado no Oriente Médio e nas consequências desastrosas das guerras declaradas em nome da “luta contra o terrorismo”.
Exaurir a fonte internacional é certamente a tarefa mais difícil: como proceder a uma política internacional francesa fundada no direito de autonomia dos povos e no (verdadeiro) respeito aos direitos humanos, sem rever as alianças com regimes autoritários no mundo árabe e na África, a política colonial israelita e os interesses das multinacionais francesas?
A segunda fonte de violência está ligada à grave anomia social nos bairros populares franceses. Contrariamente ao que subentende a injunção islamofóbica da “desolidarização”, três membros do comando são de certa forma “elétrons livres”, com frágeis laços pessoais e afetivos, produto de rupturas biográficas traumatizantes, de desfiliação social e de desigualdades estruturais, que os colocaram no mundo da delinquência e de grupúsculos violentos. Esses elétrons livres se “desolidarizaram” dos seus pares, principalmente dos laços familiares amplos e dos fiéis da mesquita local, não foram recuperados pelas estruturas de assistência educativa, e foram magnetizados pelos pregadores convictos da eminência do “choque de civilizações”, aliados objetivos de seus semelhantes neoconservadores. Esses filhos de classes populares absorveram um alto nível de violência social, que fez deles agonizantes que não encontram sentido na existência dentro das estruturas tradicionais, mas sim na ideologia niilista e mortífera que promete potência e reconhecimento, e que continua ultraminoritária nos bairros populares.
Podemos distinguir múltiplas tendências do islamismo na França: as mesquitas não filiadas, as grandes organizações próximas dos países de origem (Magrebe e Turquia), irmandades ou Irmandade Muçulmana, os Tabligh, os “salafistas” pietistas e apolíticos, os sufis, etc., e enfim, os grupúsculos violentos ditos “takfiristes”. Todos os dias, habitantes, militantes e responsáveis políticos locais lutam discretamente, sem virar manchete dos jornais, contra a influência desses grupúsculos violentos. Assim, os membros da “rede des Buttes Chaumont”, da qual os irmãos Kouachi faziam parte, foram excluídos das manifestações pró-Palestina pelos militantes da imigração e do antifascismo no começo dos anos 2000. Ironia da história: os que ontem se opuseram contra os grupúsculos violentos são hoje acusados quando denunciam a islamofobia... A existência desses grupúsculos violentos é então diretamente ligada às correlações de força internas às classes populares: se eles têm influência sobre certos elétrons livres é porque outras forças políticas, principalmente as herdeiras das manifestações pela igualdade e contra o racismo se enfraqueceram deixando um vazio político de onde emergem os candidatos ao horror. A propagacão desse fenômeno é favorecida pela extrema facilidade para comprar armas de guerra vindas da antiga União Soviética e pela mobilização constante das redes takfiristes para recrutar nas redes sociais, transmitindo uma ideologia e um conhecimento militar que ultrapassa as fronteiras.
Exaurir a fonte francesa tampouco é simples. Consistiria em atacar as desigualdades econômicas, sociais, escolares, a desqualificação política, o racismo endêmico, a estigmatização territorial, as fontes de violência social e de delinquência, e promover uma política de igualdade real para os inscritos na base da pirâmide social.
As condições que possibilitaram a violência política em janeiro de 2015 são múltiplas. As análises dos pesquisadores em ciências sociais mereceriam ser conhecidas pelos responsáveis políticos. Ora, são os “especialistas autoproclamados” no “islã-e-terrorismo” que são ouvidos pelas autoridades políticas, pelos conselheiros e pelas mídias. As falhas dos serviços de informação que tinham encontrado e interrogado os assassinos parecem ter sido ocultadas na aura das execuções. As primeiras reações políticas parecem ir pelo pior caminho: votar um “Patriot Act à francesa” quando uma lei liberticida sobre o terrorismo já foi votada há dois meses; reavivar o debate sobre a pena de morte, visar o "inimigo interno" muçulmano inassimilável, etc. Podemos esperar que alguns queiram rediscutir o jus soli. As lições políticas do pós 11 de setembro parecem não ter sido aprendidas: a violência política se alimenta da violência de Estado e da violência social.
Assinam o texto:
Chadia Arab, chargée de recherche au CNRS
Ahmed Boubeker, professeur à l'Université de Saint-Étienne
Nadia Fadil, professeure assistant à l’Université catholique de Louvain
Nacira Guénif-Souilamas, professeure à l'Université Paris 8
Abdellali Hajjat, maître de conférences à Université Paris-Ouest Nanterre
Marwan Mohammed, chargé de recherches au CNRS
Nasima Moujoud, maîtresse de conférences à l'Université de Grenoble
Nouria Ouali, professeure assistant à l’Université Libre de Bruxelles
Maboula Soumahoro, maître de conférences à l’Université de Tours
Tradução: Mariana Stelko
Créditos da foto: The U.S Army / Flickr
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