O furacão Charlie e a crise de identidade europeia

Surge uma luta por identidade na Europa. E a religião, assim como os valores republicanos emanados da Revolução Francesa, terá um papel importante.

Miguel Marín Bosch - La Jornada, México - na Carta Maior
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Os chefes de Estado ou de governo não costumam ir às ruas para liderar manifestações repletas de gente. Vão a atos políticos durante as campanhas eleitorais, mas raramente saem para defender uma causa ou uma ideia como a liberdade de expressão. Mas foi isso exatamente o que fez o presidente François Hollande em 11 de janeiro quando aconteceu em Paris uma manifestação com um milhão e meio de franceses e 50 chefes de Estado e de governo europeus, em sua maioria.

 
Inicialmente se tratou de um ato para reafirmar o direito à liberdade de expressão e para repudiar o terrorismo após os assassinatos no escritório da revista satírica Charlie Hebdo e em um supermercado. Mas Hollande, que se mostrou muito ativo diante dos atentados, soube aproveitar a manifestação para ganhar alguns pontos políticos, e agora se fala do “espírito de unidade de 11 de janeiro” e de uma “frente republicana”.
 
Falou-se, em princípio, que o grande perdedor dessa jornada histórica seria a Frente Nacional liderada por Marine Le Pen. Ela não esteve na manifestação e foi muito criticada por ele.
 
Entretanto, no domingo passado, a Frente Nacional ressurgiu com força nas eleições parciais no departamento de Doubs, ao ficar em primeiro lugar, e à frente do candidato socialista, o partido que costumava ganhar as eleições. É certo que houve uma participação muito baixa e que os socialistas poderiam vencer no segundo turno, realizado nesta quinta-feira (05/02). Mas é certo também que o auge da ultradireita preocupa muito os franceses. Durante a campanha em Doubs, a Frente Nacional criticou a “imigração massiva” e o “perigo islâmico”.
 
A popularidade do novo premiê, Manuel Valls, também registrou um notável aumento. Em entrevista coletiva em 20 de janeiro, referiu-se com contundência aos problemas sociais da França. Disse que existia um “apartheid territorial, social e étnico”. Disse que também está falida a escola laica e republicana e se comprometeu a lutar contra as desigualdades. Insistiu na necessidade de “aportar respostas republicanas; se não, os franceses buscarão respostas estigmatizantes na Frente Nacional”.
 
No dia seguinte, Valls anunciou um programa para reformar com capital humano e material a luta antiterrorista. Concretamente, aludiu “aos meios humanos e técnicos dos serviços de inteligência”. Neste aspecto, assemelhou-se à Lei Patriota aprovada pelo Congresso americano seis semanas depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. Essa lei abriu espaço para um intenso debate nos Estados Unidos sobre como lutar contra o terrorismo sem violar os direitos e as liberdades civis. Agora é a França que deverá discutir a questão.
 
Faz 40 anos que começou a aumentar na França o número de imigrantes do norte da África, particularmente da Argélia e do Marrocos. Os que cometeram os atentados de 7 de janeiro eram franceses. Por isso os comentários de Valls sobre o fracasso da educação laica e republicana. 

Atualmente há 4,7 milhões de franceses muçulmanos, o país europeu com a maior população islâmica. Constituem 7% da população total e estão concentrados na periferia das grandes cidades. Mas costumam ser cada vez mais pobres que o restante da população francesa, sua taxa de desemprego é o dobro da média nacional e a taxa de analfabetismo das pessoas entre 18 e 29 anos de idade é de 12% (quatro vezes mais do que a média nacional).
 
Este é o desafio lançado pelo primeiro-ministro. Depois dos conflitos de 2005, a situação piorou, apesar das promessas de reformas profundas. Como há dez anos, a pergunta é: como assegurar que essa população se transforme em franceses que defendam os valores republicanos? Segundo Valls, será necessário um esforço de 30 anos.
 
Não restam dúvidas de que a Europa em geral e a França, particularmente, atravessam uma etapa social, política e economicamente complicada. Na Alemanha e em outros países, surgiram grupos como o movimento islamofóbico Pegida (o acrônimo alemão de Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente). Exercem seu direito à liberdade de expressão e fazem contramanifestações para manifestar xenofobia e racismo.
 
Surge uma luta pela identidade na Europa. E a religião, assim como os valores republicanos emanados da Revolução Francesa de 1789, terá um papel importante nesta luta. A poucos dias do atentado de Paris, o papa Francisco disse que a liberdade de expressão não deve ser usada para insultar outras religiões.
 
No dia seguinte, o primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, respondeu ao Papa: “Acho que numa sociedade livre existe o direito de ser ofensivo com a religião dos outros. Eu sou cristão. Se alguém diz algo ofensivo sobre Jesus, poderia considerá-lo ofensivo, mas numa sociedade livre não tenho o direito de fazer minha vingança sobre essa pessoa. Temos que aceitar que esses jornais e revistas podem publicar coisas que podem ofender alguém, a não ser que infrinjam a lei. Isto é o que devemos defender”.
 
O Papa se viu obrigado a relativizar seu comentário original:  “Em teoria, não se deve reagir de forma violenta a uma provocação ou a uma ofensa. Podemos dizer aquilo que o Evangelho diz, devemos dar a outra face. Todos estamos de acordo na teoria, mas somos humanos e a prudência é uma virtude da convivência humana. A liberdade de expressão deve levar em conta a realidade humana e precisa estar acompanhada da prudência para não perturbar os demais”.
 
O debate ainda vai longe e, na França, iniciou-se uma reflexão coletiva sobre o que significa ser francês. A república terá que se reinventar, como disse o renomado cientista político Dominique Moïsi pouco tempo atrás. 
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A tradução é de Daniella Cambaúva.




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