MARCO AURÉLIO E A QUESTÃO DE CARÁTER

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por Paulo Moreira Leite

O ministro Marco Aurélio Mello deu uma aula de Justiça no fim de semana. Não. Ele não fez nenhuma ginástica erudita nem anunciou uma nova…
O ministro Marco Aurélio Mello deu uma aula de Justiça no fim de semana. Não. Ele não fez nenhuma ginástica erudita nem anunciou uma nova jurisprudência que o cidadão comum não entende.  Conhecido pelo espírito bem-humorado, também não fez ironias.

Marco Aurélio mostrou que o Rei está nu:  apontou o dedo para uma situação que muitos enxergam mas, por interesse político, covardia ou conforto pessoal, preferem fingir que não está vendo — os abusos da Operação Lava Jato contra as regras do Estado Democrático de Direito.
“Com 25 anos de Supremo, eu nunca tinha visto nada parecido. E as normas continuam as mesmas”, disse.
O ministro se referia a “condução coercitiva” de João Vaccari Neto, responsável pelas finanças do Partido dos Trabalhadores, para prestar um depoimento a Polícia Federal — quando a boa regra democrática determina que cidadão em sua condição tenham a oportunidade de comparecer, voluntariamente, perante autoridades policiais, para prestar esclarecimentos necessários. Você lembra do espetáculo produzido: a TV mostrou imagens grotescas de policiais pulando o muro da casa de Vaccari, cena destinada a criar um espetáculo vergonhoso de faroeste para os telejornais.
A finalidade destas cenas nós sabemos: ajudam a criminalizar os acusados, permitem que sejam vistos como cidadãos condenáveis, capazes de atos criminosos — sem um fiapo de prova. Essa é a função do espetáculo.
Marco Aurélio deu uma demonstração semelhante de caráter em 2012,  durante o julgamento da AP 470. Inconformado diante das seguidas demonstrações de agressividade de Joaquim Barbosa, que tinham a função de intimidar os colegas de plenário, ele rebateu: “Não admito que Vossa Excelência suponha que todos aqui sejam salafrários e só Vossa Excelência seja vestal.” O jogo era o mesmo: ao ficar em silêncio diante do “espetáculo a flor da pele, intolerância e desqualificação dos colegas”, como descreveu o Estado de S. Paulo em editorial, os ministros ajudavam a montar o teatro destinado a justificar medidas extremas, “exemplares”, como se dizia, típicas daqueles tristes momentos em que a Justiça se assemelha a uma noite no circo.
Imagine que o mais conhecido erro judiciário da história universal, o Caso Dreyfus, envolvendo um oficial do Exército francês colocado a ferros sob o sol inclemente da Guiana sob a falsa acusação de vender segredos militares para o Exército alemão, só pode ser desmascarado graças a uma atitude semelhante. O coronel George Picquart, que havia sido  professor de Alfred Dreyfus no Colégio Militar, teve acesso aos arquivos do serviço secreto que demonstravam que as provas contra o capitão eram pura falsificação, destinadas a esconder o verdadeiro traidor. A partir daí, Picquart passou a travar uma luta para rever o caso, enfrentando as reações que se pode imaginar. Foi desterrado para a Tunisia, no Norte da África, e também foi processado.  Quando o segundo julgamento de Dreyfus estava em curso, Picquart aguardava sua chance num tribunal militar.

O que se aprende, aqui, é  uma lição bastante simples. Nossa sociedade do espetáculo não precisa de heróis nem de justiceiros. Mas necessita de autoridades que tenham a coragem de cumprir seus deveres,  como guardiões das verdades duras e os direitos de pedra que estão na Constituição — mas precisam ser garantidos, dia após dia, por homens e mulheres de carne-e-osso. Sem eles, o Estado de Democrático de Direito é um enfeite pendurado na parede.
Essa é a lição.

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