“Há uma obsessão na mídia local por denegrir o Brasil”

Celso Amorim fala sobre Irã, em 2012. / ANTONIO CRUZ (ABR)
No El País

Primeiro, ele confiava na memória. Depois, até espaços em branco em cardápios de restaurantes foram sendo preenchidos em centenas de viagens. Foi só um ano e meio depois de estrear como chanceler do governo Lula que Celso Amorim ganhou um presente: “Quem me deu um caderninho foi a Dilma. No Equador. Ela era ministra de Minas e Energia e ela me disse: ‘Olha aqui, para você escrever’.”

Desse caderninho e dos que se seguiram, Amorim retirou as anotações para refletir, anos depois, sobre três momentos de sua passagem pelo Itamaraty entre 2003 e 2010. O resultado está em "Teerã, Ramalá e Doha - Memórias da política externa ativa e altiva" (Benvirá), a ser lançado no mês que vem.
No livro, Amorim revisita a tentativa do Brasil e da Turquia de mediar a negociação do programa nuclear iraniano, em 2010, um momento de protagonismo global mas controverso de sua gestão, os movimentos da diplomacia local no mundo árabe e o papel brasileiro nas negociações da OMC (Organização Mundial do Comércio).
Na entrevista abaixo e no livro, o ex-ministro de 72 anos sublinha o que julga ter sido um papel ambíguo da então colega Hillary Clinton na questão. Ele relata que a secretária de Estado tentou, sem sucesso, dissuadi-lo da tarefa de conseguir o acordo com Teerã, que previa o enriquecimento de urânio para pesquisa médica tendo o Brasil e Turquia como fiadores — Istambul seria ainda intermediária e guardiã do material. O acordo foi, depois, rejeitado pelos EUA, apesar de cumprir os requisitos pedidos inicialmente, em carta, por Barack Obama. Para o ex-chanceler, um fator para o recuo americano em relação à proposta turco-brasileira foi a agenda política própria da democrata.
Amorim queixa-se, como no livro, da cobertura da imprensa brasileira deste caso e de outros. Para ele, é excessivamente negativa, uma "obsessão" local, o tratamento depreciativo do Brasil na grande mídia ­ (e não só sob Lula).
Já desvencilhado das funções de ministro da Defesa de Dilma desde dezembro, o ex-chanceler explica por que resolveu falar publicamente da crise de recursos do Itamaraty. Mostrou-se frustrado porque as diretrizes de expansão do corpo diplomático brasileiro e certas iniciativas globais lançadas por ele não tiveram seguimento no governo da sucessora de Lula.
Pergunta. Por que o sr. quis escrever sobre a iniciativa do Brasil e Turquia na questão iraniana? Foi para evidenciar a troca de posição de Hillary Clinton especialmente?

Há uma obsessão pelo autodenegrimento na mídia brasileira, deve ser uma coisa da psicologia coletiva. Eu acho que é pior com o PT, mas mesmo sem o PT era assim.
Resposta. Achei que era importante reunir de uma maneira mais ou menos sistemática as minhas anotações e as minhas lembranças. Comecei a fazer isso na época em que tinha saído o acordo provisório do P5+1 com o Irã (sobre o programa nuclear iraniano, em 2013). Recebi dois pesquisadores americanos que estavam escrevendo sobre ‘oportunidades perdidas’. Eles tinham escrito sobre (Jimmy) Carter e Cuba nos anos 70 e vieram falar comigo sobre Irã, por isso tive a ideia do título (do capítulo: ‘Declaração de Teerã: oportunidade perdida?’). É evidente que no curso da narrativa eu tive a preocupação de esclarecer como eu vi tudo se passar. Foram criados muitos equívocos. Como é que o presidente escreve uma coisa e quinze dias depois um ministro diz uma coisa diferente? Eu dou duas explicações possíveis, e eu confesso que a primeira a que eu me inclinei foi achar que Hillary não conhecia em detalhe (a carta de Obama que propunha os termos de um possível acordo com o Irã). Não é impossível, mas não é comum, porque lá eles são muito coordenados. Depois, pensei que poderia ter sido uma coisa diferente, como quem diz: ‘Obama escreveu mesmo, mas não tem importância. Estou aqui eu. Eu sou secretária de Estado e estou dizendo’.

P. Em retrospectiva, o que o sr. e o Brasil poderiam ter feito diferente?
R. Nós fomos até onde podíamos com a nossa capacidade diplomática, nossa capacidade de persuasão. Não acho que teríamos outra coisa a fazer. Até porque não era uma agenda nossa, e no livro eu deixo isso claro. O Obama é quem pediu. Eu me interessava, tinha participado daqueles episódios do Iraque. Eu achava que o Brasil tinha, sim, capacidade para ajudar a resolver o problema, desde que houvesse disposição das partes. Quando o Obama pediu, pareceu que era uma oportunidade. Nós temos uma vocação universalista na política externa e o Irã é um país importante. Dados os preconceitos e as atitudes muito tímidas que a opinião pública brasileira, e sobretudo a mídia brasileira, estimula, o Irã era, não digo essencial, mas útil para que o Brasil estivesse envolvido positivamente em uma questão universal. O que houve foi uma mudança de comportamento político, mas nós produzimos o que ninguém acreditava que nós fôssemos produzir, que o P5 + 1 não tinha produzido, que a Rússia não tinha produzido. Enfim, seria um gol. O fato de não ter sido gol não quer dizer que você não tem que chutar. Se não chutar, não vai fazer gol nunca.
P. O sr. falou da mídia e a crítica à imprensa brasileira é muito presente no livro. O que se escreve aqui tem tanto peso assim?

Enfim,  (com o Irã) seria um gol. O fato de não ter sido gol não quer dizer que você não tem que chutar. Se não chutar, não vai fazer gol nunca.
R. A mídia tem uma influência na opinião pública. Você pode dizer que hoje em dia, talvez, é menos importante do que foi no passado, que há outras fontes de informação, redes sociais, etc., mas obviamente tem um peso. As pessoas às vezes fazem perguntas estapafúrdias de quem nunca entendeu nada porque só leu a mídia brasileira. Não estou falando uma coisa da minha cabeça. Conversando com embaixador estrangeiro aqui, depois até de sair da Defesa, ele fez um comentário: ‘Nunca estive num país em que a mídia fosse tão unanimemente contra o governo quanto é no Brasil.’ Vou até complementar isso, embora, você sabe, eu tenha trabalhado com Lula, Dilma, seja ligado ao PT: Eu acho que é pior com o PT, mas mesmo sem o PT era assim. Eu dizia isso e meus amigos do PT não gostavam muito, não, mas é a verdade.
Cito um exemplo: uma vez eu estava na OMC, quando aconteceu aquele episódio da Vaca Louca no Canadá logo depois da questão da Bombardier e a Embraer. Claro que eles negaram até à morte que houvesse ligação entre as duas coisas, mas, para mim, tinha, e eles não tinham fundamento na questão da Vaca Louca. Eu convoquei uma reunião de um dos comitês fitossanitários que tem lá na OMC e era uma coisa fora do comum que um embaixador fosse a esse tipo de reunião mais técnica. Cinco ou seis países apoiaram o Brasil e o Canadá, exclusivamente, criticou o Brasil. Manchete no outro dia num dos grandes jornais: ‘Brasil é criticado na OMC’. Isso era na época do Fernando Henrique. Não posso nem dizer (que era coisa contra o PT). Há uma obsessão pelo autodenegrimento, deve ser uma coisa da psicologia coletiva, que eu acho que se acentuou com um governo popular, que não é de elite, mas não é só com ele, não.
P. Mas o sr. não acha que é melhor isso que uma coisa à americana, de imprensa patriótica, o que pode acabar em desvios?
R. Não acho que deve ser fechada. Acho que deve ser objetiva. Dou esse exemplo porque ele é emblemático. Nunca fizemos o que a mídia queria, mas temos de lidar com a opinião pública. Tudo foi pintado de uma maneira totalmente diferente do que era, que o Brasil queria ser amiguinho do Irã, voluntarismo, Chávez. Uma misturada na cabeça.
P. Os relatos do livro sobre as iniciativas globais do Brasil na sua gestão contrastam com a leitura atual da política externa, de recolhimento e também de crise financeira, como o sr. escreveu em artigo para a Folha de S. Paulo. Por que decidiu falar da crise no Itamaraty?

Às vezes tem isso: o Brasil é pioneiro e depois fica para trás. Sobre Cuba, por exemplo, temos de continuar lá com nossos investimentos. Com o Irã as portas comercialmente estavam muito abertas para o Brasil, e depois teve um recuo.
R. Escrevi porque achei que tinha obrigação de escrever. Fui ministro de Relações Exteriores por nove anos e meio. Não é quantidade que faz a qualidade, mas fui o chanceler mais longevo da República ou até do Império. Eu me sinto responsável pelos jovens que entraram no Itamaraty ou que querem entrar no Itamaraty em grande parte motivados pela nossa política externa, mas que precisam de um mínimo de meios materiais para fazer essa política. Todo dia que eu abria o jornal tinha uma notícia negativa. Tenho muita confiança no Mauro (Vieira, novo chanceler). Ele tem tudo para ser um excelente ministro. Ele tem muito conhecimento da política externa, da diplomacia. Trabalhou comigo duas vezes. Foi chefe de gabinete. Conheço ele muito bem. Ele é muito hábil, e talvez seja mais hábil que eu. Eu falo muito o que eu penso, e isso de repente até cria resistências. Não sei. Eu acho que ele vai conseguir melhorar. Provavelmente, isso vai acontecer gradualmente. Não quero fazer esse julgamento. Achei que minha palavra poderia ter algum peso, estimular os jovens a ir para frente. Quem sabe isso também chega aos ouvidos de outras pessoas.

Houve vitórias também. Um dado muito importante recente foi a criação do Banco dos Brics. As reações da presidenta Dilma sobre a espionagem americana foram muito corretas.
P. O sr. nunca recebeu o convite para voltar para o Itamaraty?
R. Não recebi o convite.
P. Se tivesse recebido, teria voltado?
R. Quero deixar isso muito claro: não pleitearia, e não pleiteei. Cheguei a comentar, não com a presidenta, mas cheguei a comentar que o problema aí não era tanto o nome, mas ter condições. Não pleitearia até pelas condições do país. Dificilmente eu teria como fazer um trabalho, a meu ver, tão positivo como eu fiz naquela época, tem também o momento do Brasil, do mundo naquela época. Eu não poderia recusar porque eu teria um sentimento de responsabilidade com relação às pessoas, sobretudo os jovens. Só em quatro concursos entraram 400 pessoas, 40% do quadro do Itamaraty. Como eu poderia dizer, se fosse convidado: ‘Agora não é comigo, não, porque eu já cansei’.
P. Quantos às vagas no Itamaraty e os postos na África, há quem diga que o governo Lula deu um passo maior que a perna, que não era sustentável, e que a crise agora reflete isso. O que sr. diz?
R. Hoje em dia não está na moda citar Marx, mas vou citar uma frase dele que eu muito certa: a humanidade só coloca problemas que ela pode resolver. Você não pode querer, de antemão, resolver todos os problemas. Essas questões iam surgindo e a gente ia resolvendo. Eu confiava que as coisas continuassem no mesmo sentido. Evidente que você não pode deixar o embaixador sozinho na África, porque senão você faz das críticas, como se diz em inglês, uma profecia autocumprível. Se bem que, na hora de eleger o doutor Graziano (da FAO) e o Azevêdo (na OMC), ter embaixador na África ajuda, mesmo que ele não estiver fazendo nada, mas é claro que ele precisa fazer alguma coisa. Precisa de recursos para a Agência Brasileira de Cooperação, precisa ter condições de trabalho adequadas, que as pessoas não fiquem com medo de pegar malária. Isso pode acontecer com qualquer um, mas porque não tem ar condicionado porque não pagou a conta de luz não tem cabimento. Você tem que dar os estímulos adequados, as pessoas têm de saber que vão para um posto difícil e que depois terão recompensa, seja nas condições de vida materiais, seja em promoções.
Não acho que foi passo maior que a perna. Isso é a visão de quem não quer fazer nada. No mesmo ano em que aumentamos de 1.000 para 1.400 diplomatas, os EUA aumentaram de 10.000 para 14.000. Não estou dizendo que temos de ser do mesmo tamanho, mas também não podemos ter 1.000.
P. O sr. acha que faltou esse entendimento no governo Dilma?
R. Não vou julgar. Eu fui ministro do governo Dilma. Não sei se as circunstâncias não permitiram. Não cabe a mim dizer. Eu sei o que eu esperava fazer, que era preciso ter um apoio grande, era preciso que a outra lei que criava mais 400 vagas tivesse sido implementada _se não no ritmo que a gente fez, num ritmo um pouco menor, cinco, seis anos, sei lá. Motivação é fundamental.
P. E gestos de prestígio da presidenta? No seu livro, o sr. cita várias vezes o entusiasmo de Lula.
R. Lula gostava muito do Itamaraty. Ele foi até lá muitas vezes. Isso realmente estimula, ajuda as pessoas. Não quero fazer críticas. Volto a dizer: a própria escolha do Mauro demonstra, na minha opinião, que a presidenta Dilma está empenhada em ter uma boa política externa. Eu só tenho que ter esperança. Vamos ver se isso se concretiza. Isso depende da habilidade de cada um.
P. Em meio à crise, o governo cortou verbas de viagem, também não compareceu a uma discussão sobre a guerra na Síria, em Genebra. Isso não é frustrante para o senhor, que dedicou um capítulo do livro à movimentação diplomática brasileira no Oriente Médio?
R. Eu lamento. Você não constrói condições para ser convidado para uma reunião de poucos países sobre a Síria em poucos dias, você constrói em dez anos. É importante. Não vou negar que, nesse episódio específico, fiquei pensando: ‘Puxa vida, devíamos ter ido’. Às vezes tem isso: o Brasil é pioneiro e depois fica para trás. Sobre Cuba, por exemplo, temos de continuar lá com nossos investimentos. Com o Irã as portas comercialmente estavam muito abertas para o Brasil, e depois teve um recuo. O nosso trabalho na África. Tudo isso é recuperável. A história não é linear. Ela tem ciclos. Dá trabalho retomar ciclos. Mas quero dizer que houve vitórias também no Governo. Um dado muito importante recente foi a criação do Banco dos Brics. Esse é um dado novo. Realizar as coisas é muito difícil, porque eu conheço as resistências, inclusive da nossa área econômica. É um passo muito importante. As reações da presidenta Dilma sobre a espionagem americana foram muito corretas.

Generais e diplomatas de pijama

O mais longevo chanceler da história brasileira passou quatro discretos anos à frente do Ministério da Defesa, entre 2011 e 2014. No cargo, teve a tarefa de comandar a pasta enquanto o governo criava a Comissão Nacional da Verdade, para apurar as violações de direitos humanos entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.
As três Forças Armadas foram acusadas de obstruir a informações e arquivos da ditadura. Os chefes militares não compareceram ao lançamento do relatório e jamais pediram desculpas pelas violações. Amorim, no entanto, recebeu elogio da comissão pela mediação.
"Tivemos uma colaboração importante, claro que pela pressão da própria sociedade, representada pela própria Comissão da Verdade”, diz o ex-ministro. “Cada momento histórico é o seu momento histórico. É possível que se avance mais. O Estado brasileiro já reconheceu que houve essas violações, então não pode ninguém negar que houve. As Forças Armadas são parte do Estado brasileiro, que é um só.”
Amorim disse que não enfrentou resistência dos militares da ativa, numa pasta que, segundo os especialistas da área, segue sem subordinação total ao poder civil. Segundo ele, os problemas, em sua "maioria", se resumiram às manifestações dos militares da reserva, que protestaram durante sua gestão. “Ai, os generais de pijama! Eu já tinha tido problemas com os embaixadores de pijama”, ironiza, em referência a suas diatribes públicas com proeminentes diplomatas ligados ao PSDB durante o governo Lula.

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