“Agradeça a contravenção”: a falta de transparência na parceria da Globo com os bicheiros do Carnaval

Boni prestigia o título de 2015 com o bicheiro Aniz Abrahão David, dono da Beija Flor
Boni prestigia o título de 2015 com o bicheiro Aniz Abrahão David, dono da Beija Flor

O Jornal Nacional de quinta-feira não surpreendeu quem esperava que os atores principais, William Bonner e Renata Vasconcellos, fossem tocar nos assuntos mais palpitantes da semana: o título da Beija Flor e o escândalo do HSBC.
Nem uma palavra sobre os dois temas. No caso do banco, sabe-se que sonegação é uma questão, para usar um eufemismo, delicada para a Globo.
No do Carnaval carioca, a situação é igualmente embaraçosa, por motivos outros: a Globo é sócia daquilo tudo há décadas.

Nunca antes na história desse país um campeonato momesco foi tão contestado. Foi preciso o patrocínio de um ditador africano para muita gente se perguntar o óbvio: como pode um desfile bancado pelo crime há tanto tempo?
Mais: como fica a Globo, detentora dos direitos de transmissão, diante dessa pilantragem?
A relação da emissora com os bicheiros é de, para usar outro eufemismo, cumplicidade. Há reuniões para decidir estratégias comerciais. A Globo vende cotas da transmissão. As escolas não podem, por exemplo, ter uma marca que conflite com um parceiro da TV.
A Marquês de Sapucaí é transformada numa sucursal do Projac, com todos os atores e atrizes sambando. Centenas de jornalistas são mobilizados para a cobertura de um megaevento promovido pela empresa para a qual trabalham.
Para ficar apenas na Beija Flor: em 2014, o enredo foi em homenagem a Boni, o ex-homem forte da Globo. A relação é íntima. O bicheiro Anísio Abrahão David, “patrono” da escola, comprou a cobertura tríplice de Roberto Marinho na Avenida Atlântica, em Copacabana.
É impossível que a Globo não soubesse de antemão o que a Beija Flor, ou qualquer outra agremiação, fosse fazer na avenida. Quando o escândalo de Teodoro Obiang estourou, ficou difícil evitá-lo. E então a cobertura jornalística foi a mais esquizofrênica possível.
Só no final da participação da Beija Flor na Sapucaí Fátima Bernardes mencionou que a Guiné Equatorial era um país “ainda em busca de suas liberdades” e que o presidente estava no poder há 35 anos. Nem pensar em chamá-lo “ditador”.
Na Globo News, a mesma saia justa. Entre matérias idiotas sobre dietas de Momo, os comentaristas falavam do financiamento. O velho Merval achou uma solução: toda a negociação começou quando Lula visitou o país durante seu governo. Segundo Merval, é um esquema parecido com o que o PT faz nas campanhas. Curiosamente, é a maneira como a Globo noticia, eventualmente, o HSBC: sua suposta ligação com a Lava Jato.
“Se não fosse dinheiro da contravenção, hoje não teríamos o maior espetáculo audiovisual do planeta. Agradeça à contravenção”, disse Neguinho da Beija Flor, num sincericídio necessário. “A Portela também teve um patrocínio muito forte. O governador do Rio de Janeiro, o Pezão, queria que a Portela ganhasse. E ele não fez algum investimento? O prefeito (Eduardo Paes) é portelense doente. Vai dizer que ele não colocou dinheiro na Portela?”
Uma discussão séria sobre a transparência e o dinheiro sujo do Carnaval carioca passa pelo papel da Globo na pilantragem.
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Sobre o Autor
Diretor-adjunto do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

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