Saul Leblon: A saúde, a saúva e a virtude
Em 2013, o dobro do valor do execrado 'Mais Médicos' foi gasto em próteses fraudadas, mas quanto a este escândalo as associações de médicos se calam.
por: Saul Leblon - na Carta Maior
Nenhuma outra corporação profissional se destacou tanto na guerra aberta à reeleição da Presidente Dilma quando a do jaleco branco.
O pleito foi o ápice de uma espiral de colisões iniciada em 2013, quando as entidades médicas alinharam-se ao conservadorismo mais feroz na oposição ao programa ‘Mais Médicos’.
Classificada como uma fraude, a iniciativa federal de levar cerca de 5,5 mil profissionais cubanos a rincões não cogitados por médicos brasileiros mereceu do Cremesp, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, a seguinte nota, em maio de 2014: ‘Tomaremos iniciativas políticas e eventuais medidas judiciais para impedir essa afronta à saúde da população e à dignidade da medicina brasileira’.
Em outubro, dez dias antes do pleito, a Associação Médica Brasileira (ABM) lançaria um manifesto conclamando os associados a eleger Aécio.
‘Urge mudarmos estas mazelas e descasos, frutos de um ideário político-partidário que nunca teve, na sua essência, a legítima e real preocupação com a saúde no Brasil (...) precisamos retirar do poder aqueles que não se preocuparam com os anseios e necessidades da população, em prol da saúde brasileira. Conclamamos todos a votar em Aécio Neves’, finalizava a nota.
Passados pouco mais de dois meses, uma reportagem do Fantástico, veiculada pela Globo, no último domingo, mostrou bastidores de um, aí sim, gigantesco esquema de mazelas; um assalto aos cofres do SUS, o Sistema Único de Saúde, que carrega no nome a promessa de uma equidade ainda distante.
Os protagonistas dessa sucção ‘não se preocuparam’ -- para emprestar os termos da Associação Médica Brasileira -- ‘com os anseios e necessidades da população, em prol da saúde brasileira’.
Não há leviandade em cogitar – aliás existem evidências -- de que muitos deles atenderam ao apelo cívico-eleitoral lançado pela associação de classe, em outubro passado.
A expressão ‘máfia da prótese’ chega a ser suave no caso.
Ela condensa a ação de uma quadrilha integrada por profissionais da medicina, advogados e fornecedores de próteses.
A mecânica do golpe, que pode envolver dezenas de milhões de reais, apoia-se em uma triangulação.
O paciente que espera pelo implante na fila do SUS – de cuja receita foram decepados R$ 40 bilhões por ano com a extinção da CPMF, em 2006, sem protesto da AMB --, é orientado por médicos que fazem a ponte com advogados e escritórios encarregados de processar o governo.
A engrenagem se move para exigir o pagamento da prótese e da cirurgia feita em regime privado.
Invariavelmente, a conta apresentada ao SUS é dezenas, às vezes milhares de vezes, superfaturada.
Tornar o assalto excepcionalmente lucrativo é um requisito de sobrevivência da cadeia alimentar.
Pra isso, médicos, advogados e indústria fazem gato e sapato no percurso entre o diagnóstico verdadeiro, a versão cobrada do SUS e aquilo que, de fato, é executado na sala de cirurgia.
Ainda não há números redondos do cambalacho.
Mas há evidências.
Um levantamento do governo constatou que em apenas seis anos, entre 2005 a 2011, os gastos do SUS com o cumprimento de sentenças judiciais cresceram 100 vezes no Brasil.
Passaram de R$ 2,5 milhões para R$ 266 milhões em 2011.
Só em 2013, mais de R$ 1,2 bilhão foram pagos em despesas com próteses em geral.
O valor é o dobro do gasto com o execrado ‘Mais Médicos’ no mesmo período.
E não fica tão abaixo do auge atingido pelo orçamento do programa, que no ano passado atingiu R$ 1,9 bilhão.
As diferenças de custo/benefício é que são expressivas.
O recurso investido predominantemente na contratação de médicos cubanos viabiliza hoje o atendimento de 50 milhões de brasileiros antes desassistidos.
Em contrapartida, mais de 80% dos gastos com implantes de próteses feitos em 2013, nos 60 maiores hospitais privados do país, destinaram-se ao circuito da fraude que vai da prescrição à venda, muitas vezes desnecessária, desses produtos.
Outra diferença não menos notável: a indignação ‘ética’ das entidades de classe contra a parceria com ‘cubanos’ não se repetiu no presente escândalo.
A negligencia, infelizmente, talvez encerre algo mais que o mero descuido.
E esse é o ponto a reter.
A recorrência dos escândalos médicos e o seu baixo impacto corporativo, comparado à animosidade engajada contra o ‘Mais Médicos’, evidencia a existência de profundas distorções no ambiente médico do país.
Desde a formação do estudante, passando pela cultura da profissão e a ênfase das representações de classe, o profissional brasileiro enxerga-se cada vez mais como um apêndice do mercado e dos interesses da indústria, e cada vez menos como um sujeito comprometido com a dignidade da saúde pública.
Decorre daí uma certa elasticidade ética.
Ela torna o juramento de Hipócrates por estas plagas cada vez mais complacente com o intercurso entre o consultório, a indústria da saúde, o receituário e o lucro a qualquer preço.
Em contrapartida, mostra-se cada vez menos permeável à natureza social de programas como o ‘Mais Médicos’ e sua contrapartida indissociável: a luta pelo financiamento adequado de um sistema público de saúde digno, único e eficiente (leia análise do ex-ministro Alexandre Padilha sobre as opções ao sub-financiamento do sistema público de saúde brasileiro; nesta pág).
A reportagem do Fantástico mostrou que o intercurso entre um médico e o esquema da máfia das próteses poderia render até R$ 100 mil ao profissional.
Não é um ponto fora da curva.
Cruzeiros, resorts e passeios ao exterior com os quais os médicos campeões em receitar determinados medicamentos são brindados pelos fabricantes não ficam muito atrás nessa gincana de cifrões que intoxica toda a área da saúde.
Nos EUA, as gigantes do setor farmacêutico gastam cerca de US$ 58 bilhões em marketing (o dado, subestimado, é de 2004).
Quase 90% desse total ruma diretamente para o bolso de quem tem o poder de prescrever medicamentos.
É uma espécie de captura da prerrogativa médica pelo mercado.
Mas esse sequestro ético parece mais palatável às entidades de classe brasileira, que o desembarque solidário de doutores cubanos no país.
A interatividade entre o jaleco e o lucro corporativo chegou a tal ponto que uma legislação mitigatória entrou em vigor nos EUA, no ano passado.
Ela obriga empresas farmacêuticas a relacionar em um site oficial os médicos que aceitaram pagamentos ou presentes de valor superior a US$ 10, bem como as quantidades exatas pagas a cada um e a sua alegada finalidade.
Eis uma boa ferramenta ética que a operosa Associação Médica Brasileira poderia abraçar.
Na verdade, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), já fizeram uma tentativa nesse sentido.
Brindes e presentes, por exemplo, deveriam estar relacionados à prática médica efetiva; seu valor não poderia exceder a um terço do salário mínimo em vigor no país.
Como explicar, então, a persistente e generosa lubrificação de dermatologistas, por exemplo, com cataratas de viagens, cruzeiros e outros mimos de custo dezenas de vezes mais elevado?
Existem outras normas supostamente em vigor, com efeitos prático idênticos.
Um artigo no novo Código de Ética Médica, uma resolução da Anvisa e um "código de condutas" da associação das indústrias buscam coibir a simbiose entre a saúde e a saúva.
Por que, então, a correição persiste?
Sem a transparência pública e a penalização determinada pelo Estado, a conveniência entre o lucro e o bolso parece dar força ao sauveiro.
Recentemente, a indústria farmacêutica norte-americana foi proibida de promover palestras em um dos maiores congressos médicos do mundo, o da American Heart Association.
A decisão partiu de um órgão do sistema nacional de saúde dos EUA (INH), que credencia cursos de educação continuada.
No Brasil, calcula-se que mais de 60% dos cursos livres e congressos médicos são bancados pela indústria farmacêutica e de equipamentos.
Sem isso, alegam entidades médicas, o evento seria inviável.
Uma pergunta: qual é, afinal, a grande diferença entre médicos e/ou entidades bancados por uma grande farmacêutica, e políticos e/ou partidos sustentados por uma empreiteira?
Há aí uma cultura que precisa ser quebrada.
E ela está arraigada no ambiente médico.
Pesquisa feita pelo Datafolha em 2010, em parceria com o Cremesp, ouviu 600 médicos em um universo de mais de 100 mil profissionais em atividade então no Estado de São Paulo.
Não há razões para supor que o quadro evoluiu para melhor.
Desse total, 80% admitiram receber, em média, oito visitas de propagandistas de medicamentos por mês.
Pior: 93% afirmaram ter recebido, nos últimos 12 meses, produtos, benefícios ou pequenos pagamentos da indústria.
Quase 40% admitiram ter recebido presentes de maior valor, desde cursos a viagens para ‘congressos internacionais’.
Quase metade, 48%, afirmou receitar o que o fabricante indica.
E o escárnio supremo: há indícios de que a fidelidade desse matrimônio é vigiada pelo dono do dinheiro.
Em 2005, uma reportagem da ‘Folha de São Paulo’ revelou que, em troca de brindes ou dinheiro, farmácias e drogarias brasileiras auxiliavam a indústria de remédios a vigiar as receitas prescritas por médicos.
Com acesso ao receituário, representantes dos laboratórios pressionavam os profissionais a indicar seus produtos e os recompensavam por isso.
A marcação corpo a corpo se inspira em valores elevados.
O Brasil é um dos maiores mercados farmacêuticos do mundo, crescendo a taxas chinesas de 10%, em média, nos últimos anos.
Com a elevação da renda e do salário mínimo, 54% da população consome medicamentos regularmente.
O faturamento do setor em 2013 foi de R$ 55 bilhões.
É muito dinheiro em uma área vital para que seja manejado sem a salvaguarda do interesse coletivo.
Não se trata de duvidar do caráter do médico brasileiro.
Entre a saúde e a saúva, a chance da virtude está nas instituições, não nas metas de lucro corporativo ou na fraqueza humana diante de cruzeiros gratuitos pela Europa e o Caribe.
Há que ser duro, sem perder a ternura, disse um precursor dos cubanos do Mais Médicos.
A verdade é que a medicina praticada hoje no Brasil repousa, predominantemente, nas mãos de uma classe média desprovida de discernimento sobre o país, sobre o mundo que a cerca e as urgências da sociedade que lhe custeou o estudo.
Daí a naturalidade com que se endossa – com dignas exceções - a sabotagem à assistência emergencial do Mais Médicos; e a cara de paisagem exibida diante de um escândalo como o da máfia da prótese.
Pior que isso.
Entre indignado e estupefato, o conservadorismo de jaleco branco recusa a possibilidade da existência de outra referência de exercício da medicina que não a dos valores argentários.
Solidariedade, internacionalismo e fraternidade formam uma constelação incompreensível a quem divide o mundo entre consumidores e escravos.
Felizmente, nem os médicos do Caribe nascem bonzinhos, nem a mentalidade da máfia da prótese se reproduz por geração espontânea.
Ambos são fruto de instituições. A ponto de um não achar estranho sair de seu país para ajudar uma outra nação.
E o outro não hesitar em sangrar recursos públicos escassos de sua própria nação, que podem fazer a diferença entre a vida e a morte na fila da saúde pública.
Esse talvez seja o aspecto mais chocante do escândalo médico da vez.
E, sobretudo, o mais instrutivo, para quem quiser enxergar a real abrangência dos desafios financeiros e educacionais que ele propõe.
A ver.
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