Perfil: Mauro Vieira conhece Cristina Kirchner e o próximo presidente

Vieira já tratou com todos os ministros de Cristina Kirchner e não tem antecedentes que levem a pensar que será um diplomata vazio de política.

Martín Granovsky / Pagina12
Eric Haynes / Governor's Office - Flickr














Dilma Rousseff já tem dois argentinólogos em suas mãos. O assessor internacional Marco Aurélio García acaba de se somar ao novo chanceler, Mauro Vieira. Diplomata de carreira com 40 anos no Itamaraty, Viera foi embaixador na Argentina entre 2004 e 2010 e conhece pessoalmente não apenas todos os funcionários do atual governo, começando pela presidenta, como o próximo presidente, seja quem for.

 
Em 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou Viera diretamente de Buenos Aires a Washington. As duas cidades são os destinos mais importantes para um embaixador brasileiro. Vieira sequer passou um tempo intermediário no Palácio do Itamaraty, em Brasília. Lula confiava em seu profissionalismo e em sua paciência negociadora, e também apostavam nele Marco Aurélio e o chanceler Celso Amorim. Amorim o conhecia bem. Vieira havia sido seu chefe de Gabinete e sintonizava com a idéia de Brasil que Amorim costuma resumir na frase “uma diplomacia ativa e altiva”. O primeiro adjetivo se aplicava a todos os países. O segundo, para a relação com os Estados Unidos.
 
Em seu discurso de posse, Dilma disse estar preocupada com a crise internacional, mas situou o Brasil em seu lugar atual. “É a sétima economia do mundo, segundo maior produtor e exportador agrícola e terceiro maior exportador de minerais, o quinto país na atração de investimentos estrangeiros, o sétimo em acumulação de reservas cambiárias e o terceiro maior usuário de Internet”, disse. Depois, afirmou que o “Brasil deve voltar a crescer” e sintetizou deste modo a agenda de política externa:
 
- “Nossa inserção soberana na política internacional continuará sendo marcada pela defesa da democracia, pelo princípio de não-intervenção e respeito à soberania das nações, pela solução negociada dos conflitos, pela defesa dos Direitos Humanos, e pelo combate à pobreza e às desigualdades, pela preservação do meio ambiente e pelo multilateralismo”
 
- “Insistiremos na luta pela reforma dos principais organismos multilaterais, cuja governança hoje não reflete a atual correlação de forças”.
 
- “Manteremos a prioridade à América do Sul, América Latina e Caribe, que se traduzirá no empenho em fortalecer o Mercosul, a Unasul e a Comunidade dos Países da América Latina e do Caribe (Celac), sem discriminação de ordem ideológica”.
 
- Agradeceu especialmente a presença dos chefes e chefas de Estado da região.
 
- “Da mesma forma será dada ênfase a nossas relações com a África, com os países asiáticos e com o mundo árabe.”
 
- “Com os Brics, nossos parceiros estratégicos globais - China, Índia, Rússia e África do Sul –, avançaremos no comércio, na parceria científica e tecnológica, nas ações diplomáticas e na implementação do Banco de Desenvolvimento dos Brics e na implementação também do acordo contingente de reservas.”
 
- Estados Unidos mereceram uma menção especial. “É de grande relevância aprimorarmos nosso relacionamento com os Estados Unidos, por sua importância econômica, política, científica e tecnológica, sem falar no volume de nosso comércio bilateral”, disse Dilma. Acrescentou que o mesmo vale para as relações com a União Européia e Japão, com os quais “temos laços fecundos”.
 
A Argentina não figurou explicitamente no discurso de Dilma diante dos parlamentares. Pode ser uma indicação de que, para o Brasil, a Argentina exerce seu papel dentro do MERCOSUL, que por sua vez é o primeiro laço entre os dois países e se origina no processo de integração bilateral liderado por Raúl Alfonsín e José Sarney. Ou pode ser uma forma de não ser redundante, seguindo o que Amorim explicava assim: “Se vivêssemos na Europa, a Europa nos interessaria primeiro, mas vivemos aqui e a América do Sul nos interessa primeiro”.
 
Um dia depois do discurso presidencial, Vieira prometeu que terá sempre em mente que “não basta estar presente no mundo, mas é necessário ser ativo”. Acrescentou que “o valioso simbolismo da presença não pode substituir uma diplomacia de resultados, resultados que se medem com números, são obtidos com consciência da missão, com ação, com compromisso, com meios”. Insistiu que Dilma valorizou em sua mensagem a agenda internacional do Brasil “com sentido de pragmatismo e projeto nacional”. E disse que uma linha mestra será “redobrar os esforços na área de comércio internacional, buscando desenvolver ou melhorar as relações com todos os mercados externos”. O Itamaraty contribuirá com essa meta colaborando “intensamente para abrir, ampliar e consolidar o acesso o mais abertamente possível do Brasil a todos os mercados, promovendo e defendendo o setor produtivo brasileiro, coadjuvando com suas iniciativas e ajudando, onde for possível, a captar investimentos”.
 
Há uma interpretação possível de ambos discursos, o de Dilma e o de seu chanceler. Seria dizer que o Brasil abandona a política e se dedicará ao comércio. Uma interpretação possível, mas simplista. Em um interessante texto publicado na Carta Maior, o pesquisador José Luis Fiori critica os que encaram a integração continental sobre a base de medir a “lucratividade” comercial ou financeira. “Estes analistas não entendem ou não querem aceitar que se trata de um objetivo e de um processo que não pode ser avaliado apenas pelos seus resultados econômicos, porque envolve um jogo geopolítico e geoeconômico muito mais complexo e global”. Segundo Fiori, o Brasil deveria acentuar com urgência a abertura de vias de comunicação e transporte com o Caribe e o Círculo do Pacífico “a qualquer preço e por mais criticada que seja a rentabilidade econômica do projeto”.
 
Como seu mentor Amorim, que costuma destacar o valor do comércio, mas busca fazer com que o Brasil construa poder coletivo para jogar forte em um mundo multipolar, Vieira não tem antecedentes que levem a pensar que ele seria um diplomata comerciante e vazio de política.
 
Seria tolice deduzir que Vieira foi designado chanceler porque antes foi embaixador na Argentina. Amorim, duas vezes chanceler com Lula e ministro de Defesa com Dilma, não teria tido futuro em Buenos Aires, e acompanhou os primeiros doze anos de governo do Partido dos Trabalhadores e sua coalizão com o foco ajustado para América do Sul. A trajetória de Vieira, em todo caso, representa uma raridade histórica. Em quase 30 anos de democracia brasileira, é o primeiro embaixador na Argentina a chegar a chanceler. Outra raridade é o tempo que passou em Buenos Aires. Permanecer mais de três ou quatro anos não é usual. Mais de seis, como Vieira, passa a lista de recordes. Foi superado apenas por Pedro Manuel de Toledo, embaixador nos governos de Hipólito Yrigoyen e Marcelo Torcuato de Alvear entre 1919 e 1926.
 
Uma parte dos conhecimentos de um embaixador consiste em entender como funciona um país, quais foram seus ciclos históricos, em que ciclo vive e como é cada uma de suas referencias políticas, econômicas, sociais e culturais. Vieira já tratou com todos os ministros de Néstor e de Cristina Kirchner e inclusive se especializou nas relações com Guillermo Moreno com o objetivo de que o ruído das diferenças comerciais não se transformasse em um estrondo. Essa linha foi seguida depois por seu sucessor, Enio Cordeiro, que de Buenos Aires passou a trabalhar na estratégica Subsecretaria de Assuntos Econômicos e Financeiros do Itamaraty. Vieira dialogou com todos os dirigentes políticos da Argentina. Com todos, governistas e oposicionistas, desenvolveu seu estilo de serenidade hiperativa e seu tom prático de diplomata que odeia dramatizar as situações e prefere resolve-las.
 
Vieira teve a tarefa de reconstruir a relação entre Argentina e Brasil, ou melhor, entre Kirchner e Lula, que fora prejudicada em 2004 depois de o ministro da Fazenda Antonio Palocci se desentender dos problemas da dívida argentina. Vieira em Buenos Aires, Lula, Amorim e Marco Aurélio em Brasília trabalharam o desgosto até acabar com ele em setembro de 2004. Contaram com a colaboração do então vice-chanceler Jorge Taiana. Desde então em diante, o vínculo entre Lula e o presidente argentino foi indestrutível até a morte de Kirchner, 27 de outubro de 2010. O ponto mais alto foi o acordo para colocar um ponto final na formação de uma área de livre comércio com os Estados Unidos, a ALCA, e liquidar o projeto impulsionado por Washington na cúpula de Mar del Plata de novembro de 2005.
 
Nos Estados Unidos, onde chegou em janeiro de 2010, um ano depois da posse de Barack Obama, acabou sendo o encarregado de administrar a maior crise das últimas décadas entre Washington e Brasília. Foi justamente em 2014, quando o Brasil alegou ter provas de espionagem da NSA (National Security Agency) sobre a presidenta, vários de seus assessores e diretores da Petrobras. Dilma cancelou a visita de Estado para a qual fora convidada. A Viera coube o triplo papel de protestar pela espionagem, explicar o cancelamento e suturar as feridas que não foram estritamente necessárias.
 
Se, em seu primeiro mandato, Dilma for mais ativa, talvez tenha, com a ajuda de Vieira, uma etapa de diplomacia presidencial que no mundo de hoje parece insubstituível. Ficar analisando se gosta mais ou menos é como falar do hobby íntimo de uma política. Os presidentes têm gostos, mas os países possuem necessidades.




Créditos da foto: Eric Haynes / Governor's Office - Flickr

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