Miguel do Rosário: Meu texto final sobre o caso Charlie
Autor: Miguel do Rosário
Estou em Paris, onde permaneço até o dia 23.
Minha mulher veio a trabalho e aproveitei para ficar em seu quarto de hotel. Comprei uma passagem em duas vezes, no cartão, com pagamento da primeira parcela no próximo dia 5. Digo isso para afastar insinuações sobre minha “prosperidade”. Infelizmente continuo um blogueiro pobre, que vive da mão-para-boca, sem outra renda que as assinaturas e contribuições dos leitores, além dos anúncios randômicos do Adsense.
Pobre, sem filhos, morando num quarto e sala na Lapa.
Mas livre.
E em Paris.
Não quero pensar nos R$ 20 mil que o diretor de jornalismo da Globo, Ali Kamel, conseguiu arrancar de mim na Justiça, e que terei de pagar a qualquer momento.
Liberdade de expressão, para a Globo, vale só para blogueiros de Cuba e chargistas de Paris.
Para blogueiros do Brasil, é só porrada e processo na Justiça. De vez em quando morre um blogueiro assassinado, sem que haja qualquer repercussão em nossa mídia.
Eu sempre detestei essas ondas linchatórias das redes sociais, que não admitem o contraditório, e vão num crescendo que se transforma rapidamente numa grande fogueira inquisitória.
No caso do Charlie, com a sua redação dizimada, e seus desenhistas mortos, sem poderem se defender, fiquei particularmente indignado com as acusações apressadas contra seu trabalho.
E mais chocado ainda porque as acusações partiram principalmente da esquerda, absorvida por um rancor incrível contra os desenhistas. Mesmo depois de explicados os contextos das charges mais pesadas, e esclarecido que a linha do jornal era fortemente anti-racista, pró-socialista, pró-trabalhista, progressista, as pessoas agora torcem a boca para dizer que os desenhos “não são engraçados”, ou que são de “mau gosto”.
Como se isso tivesse alguma importância diante da conjuntura!
Humor é uma questão de gosto, evidentemente.
O francês tem um humor historicamente negro, talvez em vista de um passado com tantas tragédias. Enquanto pesquisava as edições do Charlie, numa mesa do centro George Pompidou, um senhor sentado a meu lado apontou-me uma notícia que ele lia no jornal.
O título era algo como: “Lucro da indústria de tranquilizantes dispara após atentados”.
Ele sorria maliciosamente. A notícia era um chiste puro de humor negro. Sempre haverá alguém faturando em cima da tragédia alheia.
O humor negro é um humor triste, como um palhaço olhando a si mesmo no espelho.
Aliás, pensando bem, nós, brasileiros, também temos humor negro. Só que ele não aparece nos jornais. Rimos de “memes” infames nas redes sociais, mas ficaríamos chocados de ver as mesmas imagens em nossos periódicos.
Mas voltemos para o caso Charlie Hebdo, cuja honra eu resolvi defender, sabe-se lá porque.
Através de uma pirueta cheia de incompreensão, alguns brasileiros passaram a comparar o humor libertário do Charlie ao humor reaça que eles tanto odeiam no Brasil.
É uma confusão fatal.
O humor reaça brasileiro é bancado pelos monopólios. Nem preciso ler a Globo para saber que a emissora tentou faturar politicamente com a tragédia, associando-se aos jornalistas mortos.
Não tem nada a ver.
Charlie tinha muito mais a ver com a blogosfera do que com a mídia corporativa.
A Globo é propriedade da família Marinho, os maiores bilionários do país.
Charlie era um jornal pobre, que em novembro publicava editorial pedindo aos leitores para o salvarem da bancarrota.
Lembrei-me imediatamente dos frequentes e desesperados pedidos de SOS deste Cafezinho.
Charlie era um jornal de esquerda.
Um jornal que combatia de frente a extrema-direita e suas políticas racistas e anti-imigrante. Os desenhistas não tergiversam. A extrema-direita é o inimigo.
A partir de 2012, com a ascensão de François Hollande, do Partido Socialista, ao poder, Charlie passou a fazer um contraponto à esquerda ao governo, sempre protestando contra as concessões do presidente ao conservadorismo econômico.
Mas o fazia com muita estratégia, mantendo a artilharia pesada contra a Frente Nacional, a famigerada extrema-direita francesa, que está em ascensão, e a centro-direita representada pelo UMP, de Nicolas Sarkosy.
Eu analisei uma coletânea de edições do Charlie, publicada há alguns anos, com resumo de seus trabalhos desde sua fundação, em 1969, quando sucede um jornal mensal de humor, intitulado Haraquiri, até 2004. E depois analisei, com muita atenção, umas trinta ou quarenta edições mais recentes, além desta última, publicada após a tragédia, e que vem se esgotando dia após dia nas bancas de jornais, num fenômeno de sucesso editorial jamais visto em lugar nenhum do mundo.
Não era, de maneira alguma, um jornal “islamofóbico”. Era um jornal ateu, com notória tendência anarquista, com uma volúpia maravilhosamente iconoclasta, o que é bem diferente.
Não há nenhuma charge ou desenho contra o Islã, mas somente contra os jihadistas que matam gente inocente, e mesmo assim, esse tema não é, nem de longe, dominante no jornal.
Pelas acusações nas redes, deu-se a impressão que o Charlie vivia para chocar e humilhar os muçulmanos na França. Outros o acusaram de sionismo.
Não é verdade. Não encontrei nenhum editorial em favor de Israel, mas vários textos em favor da Palestina.
O editorial de Charlie, de novembro do ano passado, critica o primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e os deputados da UMP (centro-direita francesa, partido de Sarkosy) por não reconhecerem o Estado palestino, lembrando que a OLP, a autoridade nacional palestina, reconhece o Estado de Israel.
Charlie também criticava o Hamas e as facções palestinas mais radicais, que advogam a destruição de Israel. Alguns desenhistas do Charlie eram judeus, como Wolinsky, um senhor de 80 anos cujo pai fugiu da Polônia durante a II Guerra, e que deve ter perdido inúmeros parentes e conhecidos nos campos da morte nazistas.
Não podemos esquecer que os judeus formam uma minoria na França. São 600 mil judeus, contra 6 ou 7 milhões de muçulmanos na França. E que desde priscas eras, as vítimas dos atentados terroristas na França são sempre os judeus, não os muçulmanos.
Na Palestina, no Iraque, as vítimas são muçulmanos. Na França, ainda são judeus.
Claro que há uma questão de classe, muito forte na França.
Apesar do país não possuir um percentual significativo de miseráveis, e do Estado francês ainda ser socialista (ao menos em comparação com Brasil e EUA), com um sistema público de educação e saúde universal, inúmeros programas sociais, amplo seguro desemprego, transporte público de massa de altíssima qualidade, a vida não é um mar de rosas para os mais pobres, que vivem nas periferias.
Os jovens de ascendência árabe, misturados a uma população crescente de imigrantes ilegais, criaram uma cultura própria, rica, contestadora. Há muitos rappers muçulmanos na França, cujas músicas trazem títulos como: “Não ao laicismo” e “Sou muçulmano, não entre em pânico”. Não vou fingir que conheço todas as músicas, mas suponho que há canções interessantes, com letras agressivas e políticas, que tocam a juventude. Todos foram solidários com as vítimas e seus parentes, contudo.
Esses jovens odiavam, é preciso admitir, o jornal Charlie Hebdo, por causa da decisão dele de publicar as charges de Maomé. Eles não conheciam quase nada do jornal. Nunca leram uma edição. Tinham apenas uma visão simplista, construída pelo maniqueísmo típico de redes sociais, cujo exemplo vimos também no Brasil, de que Charlie era “islamofóbico”.
Este foi o caldo cultural que levou os terroristas a fazerem o que fizeram.
Também entre esses jovens, há um gigantesco ceticismo em relação à mídia tradicional. Teorias de conspiração proliferam rapidamente entre eles. Não se acredita que o atentado tenha sido cometido realmente por islâmicos, mas sim orquestrado por Israel, ou pelos EUA, ou pela extrema-direita, para jogar a França contra os muçulmanos.
Essas informações eu tirei do Le Monde de ontem, que entrevista vários jovens muçulmanos do sul da França.
A última edição de Charlie, pós-atentado, traz uma análise destas teorias. Elas não se sustentam, de nenhuma forma, diz o jornal.
Agora já se conhece a história pessoal dos terroristas. Eles efetivamente se ligaram a elementos com histórico no jihadismo internacional, e aderiram ao islamismo radical. Não eram, contudo, experts. Eram muito jovens, e o seu crime foi, de longe, a ação mais ousada que jamais empreenderam. Talvez por isso os detalhes mais patéticos, como esquecer a carteira de identidade perto do local do crime.
Não vou dispensar totalmente nenhuma teoria de conspiração porque sou blogueiro e, como tal, altamente sensível a elas. Mas da mesma maneira que não posso dispensá-las, também não posso abraçá-las.
E esta teoria é mais difícil de acreditar porque os terroristas admitiram as suas intenções , a Al Qaeda o reinvindicou, e a reação dos islamismo radical foi de júbilo. O Estado Islâmico chamou os terroristas de “heróis”.
O jornal era crítico às políticas norte-americanas e europeias no Oriente Médio, e criticava frequentemente a política de ocupação de territórios de Israel.
Alguém falou que a França proibiu uma manifestação pró-Palestina no ano passado. Sim, e o Charlie foi contra essa proibição, prevendo, acertadamente, que aquilo apenas iria estimular os radicais e afugentar as pessoas de boa paz – maioria – que apoiam a Palestina. Acabou que houve a manifestação, mesmo sem autorização do governo, e foi liderada pelos grupos mais radicais e mais violentos.
Culpar Charlie por qualquer erro da política externa francesa, desde os mais antigos, na Indochina, passando pela guerra da Argélia, até os mais recentes, como o apoio à Otan na derrubada de Kadafi, e o apoio aos rebeldes sírios, seria como pretender culpar a Caros Amigos pela Guerra no Paraguai e pela privatização da Vale.
Charlie sempre foi contra as guerras.
O jornal trazia, frequentemente, desenhos contra o genocídio em Israel. Alguns são bem fortes, sempre na linha do humor negro que ele usava para tudo.
Na charge acima, vem escrito no chapéu: “Não nos deixemos comover!”
O texto que aponta para a barriga da mulher palestina diz: “Esconderijo de armas do Hamas”. E o soldado israelense no tanque fala ao rádio: “O colo do útero parece dilatado, um morteiro será lançado!”
São muitas charges assim! Não há nenhuma charge pró-Israel. Nenhuma!
Na charge acima, a legenda no alto diz: “fim do embargo ao Iraque”. E mostra a chuva de mísseis caindo sobre Bagdá.
Na charge acima, outra denúncia terrível em forma de humor. O título diz: “pensem no material escolar de hoje”. A menina pergunta ao pai: “papai, precisa me comprar outras pernas”. Ao que o pai responde: “de novo?”
Não podemos, evidentemente, criar uma imagem edulcorada e santa que o Charlie jamais quis para si. Ao contrário, sempre buscou, deliberadamente, a malícia. Seu humor sempre foi cruel e sarcástico. Mas seu objetivo não era humilhar, e sim promover uma crítica libertária, uma crítica que liberta.
Haverá um tempo, no futuro, em que os principais intelectuais islâmicos admitirão que o trabalho de Charlie ajudou a religião a purgar suas franjas medievais e sectárias. Essa luta nunca foi apenas do Charlie. Nos países islâmicos, também se tenta criar espaços de liberdade, humor e autocrítica.
O Charlie mesmo foi atrás de periódicos de países muçulmanos que tentavam brincar com os dogmas de sua religião.
O título da matéria diz: “Piadas heréticas em terras muçulmanas”, e traz vários exemplos de charges e desenhos publicados em jornais de países islâmicos. Alguns são incrivelmente ousados politicamente, com críticas pesadas a um jihadismo que as elites árabes incentivam juntos aos mais pobres, mas do qual preservam seus filhos.
É uma questão a se pensar. As elites árabes incentivam o jihadismo por razões bem distantes de uma guerra anti-imperialista, mas porque assim evitam que o povo produza uma consciência de classe que os levem a querer coisas como melhores salários e mais serviços públicos.
Se todos concordam que não há santos em geopolítica, então devemos admitir que nem a França é nenhuma santinha libertária, nem as elites árabes são movidas por puro idealismo anti-imperialista. Tanto que mandam seus filhos estudarem nas melhores universidades da Inglaterra, França e EUA, enquanto os pobres são incentivados a matarem outros árabes. As principais vítimas do terrorismo islâmico são os próprios muçulmanos.
Entre as charges que os acusadores do Charlie chamam de “islamofóbicas”, poderíamos incluir, por exemplo, as que mostram o “palhaço terrorista”?
O que querem os palhaços terroristas?, diz a legenda sobre o desenho. O palhaço responde: “quero arrancar um sorriso”.
Estou selecionando apenas as charges que tratam do tema Israel-Palestina ou de terrorismo. 90% das charges do Charlie tratavam de outros temas.
A mania de mostrar a bunda, ou enfiar objetos nos rabos de figuras públicas, que tanto horrorizaram o público quando o personagem atacado foi Maomé, é na verdade uma antiga marca do Charlie.
A capa do jornal mostra o presidente norte-americana, George Bush pai, e a legenda diz: “O primeiro presidente com uma palma de ouro enfiada no rabo”. Ainda na capa, um desenho simpático de Michael Moore, o cineasta americano que é o pesadelo da direita.
Claro, esse tipo de charge choca o público brasileiro. No post anterior, eu expliquei que as artes francesas têm uma antiga tradição em chocar, em escandalizar. Um século antes de Machado de Assis, com suas histórias pudicas da burguesia fluminense, a França tinha Marques de Sade, descrevendo cenas eróticas de personagens do submundo.
A igreja católica, maioria na França, era o alvo preferido do Charlie Hebdo, desde a sua fundação.
Muitos acusadores dizem que eles não desenharam profetas de outra religião com a mesma crueldade com que o fizeram com Maomé. Talvez.
Talvez eles devessem ser mais ousados e mostrar Jesus com a bunda de fora, com um sinal do crescente estampado em suas nádegas.
Mas quem disse que eles não o fariam?
Mortos, é que não farão mesmo.
De qualquer forma, é justo perguntar: por que eles fizeram charges tão agressivas contra Maomé?
Bem, já mostrei e provei que eles faziam charges em favor dos palestinos, e contra os EUA.
Mas, de fato, nos últimos meses, os editores de Charlie se mostravam preocupados com a expansão do Estado Islâmico. E acusavam o Ocidente de não ver que a fonte do islamismo radical estava na Arábia saudita, o verdadeiro estado islâmico.
Os editores do Charlie não estavam gostando nada da expansão do obscurantismo islâmico no oriente médio e na própria França. Como ficou provado pelo atentado, eles tinham absoluta razão.
Sabemos que o Ocidente tem culpa pelo surgimento do Estado Islâmico. Em posts anteriores, expliquei isso em detalhe. Mas isso não nos impede de criticar o Estado Islâmico por si e repetir que nem tudo é guerra social. A Arábia Saudita é um dos países mais ricos do mundo, e incentiva a proliferação de uma ideologia ultrarreacionária, contra a mulher, contra o homossexual, contra o laicismo.
A gente entende que há um fundo sócio-político no aumento do conservadorismo religioso em áreas pobres do Brasil, mas isso não pode nos fazer calar críticas contra as lideranças que florescem nesse meio, como o Pastor Malafaia.
Se houvesse um Charlie Hebdo no Brasil, teríamos uma profusão de charges contra as lideranças evangélicas e católicas, as quais, na minha opinião, seriam muito bem vindas!
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Muito se falou da presença de Benjamin Netanyahu na marcha de domingo, que reuniu quase 4 milhões de pessoas. Ora, não se pode culpar os mortos pela presença do primeiro ministro de Israel. O governo da França chegou a pedir que ele não viesse, mas ele, oportunista, fez questão de vir. Ao cabo, acho que teve um lado positivo, de ver o primeiro ministro de Israel e o presidente da Palestina, marchando juntos.
Se um punhado de jornalistas de uma revista de esquerda do Brasil fossem mortos por radicais religiosos, e houvesse uma grande marcha no Rio ou São Paulo, em prol da paz e da liberdade de expressão, seria um absurdo culpar os jornalistas mortos pela presença de Kassab e Ronaldo Caiado!
Um texto na edição pós-atentado, um dos sobreviventes aborda com duro sarcasmo esse apoio generalizado que vem de todos os lados. Ele torce para o tempo passar e tudo voltar ao normal, quando os idiotas da direita atacavam o Charlie por sua posição política, e ele poderá contra-atacar do jeito que sempre fez, chamando-os de idiotas (em francês, “con”).
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Lembram daquela polêmica sobre a charge da ministra da Justiça da França, uma senhora negra, retratada como macaca?
Explicamos mil vezes que a charge vinha no contexto de uma acusação a uma política da Frente Nacional, que havia xingado a ministra de macaca. O Charlie, antirracista, tomou a defesa da ministra.
Eis aqui os textos e uma outra charge, que contextualizam a situação:
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Acima, 4 charges de denúncia à violência israelense na Palestina, publicadas em edições recentes do Charlie: na primeira, o soldado israelense chama a senhora ferida, segurando uma perna: “Madame! Você esqueceu uma coisa”.
Na segunda, um israelense brinda com um palestino: “Em reconciliação, há Sion”, ao que o palestino, degolado, responde: “Há um idiota também”. Há um jogo de palavras e seus sons, intraduzível. Reconciliação em francês se pronuncia “reconciliacião”, ou seja, termina com o som de “sião”. Na mesma palavrão, também há o fonema “con”, que significa idiota.
Na terceira, um retrato de casamento entre dois intransigentes: Netanyahu, primeiro-ministro israelense, e Mechaal, dirigente do Hamas.
Na quarta, o soldado israelense enrola nos braços as tripas de uma velhinha palestina, e fala: “quem faz a bagunça é que tem de arrumá-la”. Uma crítica à inutilidade de medidas paliativas depois que o estrago da guerra está feito.
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Encerro o post com uma charge tipicamente charliana, de humor negro e pegada de dura crítica política e social. O desenho mostra um menino atrás das grades, com olhar triste. “Prisão aos 13 anos”. Diante dele, seus pais dirigem o carro com expressão eufórica. A legenda no alto explica a cena: “Enfim, férias tranquilas!”
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