Grécia: devolver o sentido de sua democracia

Pela primeira vez em décadas, a alternativa possível ao neoliberalismo é popular sem ser populista e assume características progressistas.

Adolfo Sánchez Rebolledo - La Jornada - na Carta Maior
DIE LINKE / Flickr
É difícil recordar um momento tão esperançoso como o da recente vitória da Coligação da Esquerda Radical na Grécia (Syriza), um partido emergido das águas profundas da crise que sacudiu o capitalismo e colocou em xeque a fortaleza europeia. O castigo recebido pelo país helênico, incompativelmente maior do que o de outras economias afetadas pelo capitalismo financeiro, como as da Espanha, Irlanda ou Portugal, o colocou em um beco sem saída, à mercê dos ditados da potência alemã, artífice maior das políticas de austeridade selvagem impostas na Europa desde 2008.
Entretanto, o fracasso dos grupos de poder e a resistência favorável à sobrevivência mais elementar para afrontar a crise alentaram a criação de uma opção política que, admitindo as regras democráticas, pode se transformar em uma alternativa crível diante dos discursos convencionais da tecnocracia, das esquerdas conhecidas e da extrema direita emergida segundo sua vertente mais hostil e das massas. A liderança de Alexis Tsipras, um personagem de esquerda formado no rio da indignação popular europeia, passou a representar um símbolo para todos aqueles que considerem outras políticas possíveis no mundo global.
 
Tsipras manteve a serenidade sem afrouxar seus compromissos e soube suprimir as provocações e a política do medo com a qual queriam atribuir a ele uma aventura irracional contra o euro e as instituições comunitárias, sem dar a ele a oportunidade de aplicar novas idéias para mudar o rumo. Graças a isso, sobreviveu e conseguiu tecer uma rede solidária capaz de ganhar a maioria que atualmente venceu nas urnas.
 
Não é surpreendente, portanto, que a esquerda cosmopolita e, em particular, correntes como o Podemos, na Espanha (coincidentes, mas não idênticas quanto ao repertório de temas), sintam esta vitória como sua, apesar de o próprio Tsipras ter afirmado, sem falsos otimismos, que o caminho que virá será ainda mais duro e difícil. Entretanto, a mudança de rumo já é formidável.
 
Cabe, portanto, lembrar algumas reações que nos ajudam a compreender o que aconteceu e o que está por vir, começando pelo apontamento do jornalista grego Yiannis Mantas, ao escrever: “As pessoas na Grécia têm muitas expectativas. Mas é preciso esclarecer algo: os gregos não esperam que a partir de agora os problemas sejam resolvidos de forma mágica. Não é o que pedem, ou pelo menos não é esta a prioridade. A prioridade é que a justiça e a dignidade sejam recuperadas, valores que durante os últimos anos perderam por completo seu significado”. Junto a estes matizes indispensáveis, lemos nos últimos dias comentário que merecem ser interpretados.
 
O economista superstar T. Pikkety, no contexto eleitoral grego, disse que a Europa necessita de uma revolução democrática, desatando a irritação dos grandes partidos dominantes. O célebre pesquisador da desigualdade afirmou que cabe ao Syriza ''… como primeiríssima atitude uma renegociação da dívida pública, uma ampliação dos prazos e, eventualmente, zerar algumas partes. Isto é possível, assegurou.
 
Perguntam-se por que a América do Norte vai de vento em popa, como a Europa que está fora do euro, como a Grã Bretanha? Mas por que a Itália deve destinar 6% de seus PIB para pagar os juros e somente 1% para a melhora de suas escolas e universidades? Uma política somente centrada na redução da dívida se torna destrutiva para a zona do euro. Segundo ponto: (se requer) uma centralização nas instituições europeias de políticas de base para o desenvolvimento comum a partir da fiscal, reorientar esta última, taxando mais as maiores rendas pessoais e industriais”. 
 
Entre outros analistas, o ex-ministro de Economia do governo de Letta, na Itália, Stefano Fassino se pergunta pelas mudanças que estão implícitas na vitória de Syriza e não questiona em formulários como a ruptura de um modelo até agora intocado. Citarei diretamente: “O que está em jogo – escreveu no SinPermiso – é, em primeiro lugar, a reanimação da democracia substantiva após uma longa fase de hibernação devido a causas culturais e políticas antes de econômicas.
 
No plano cultural, surge um desafio em termos competitivos, esperemos que vitoriosos, o pensamento único de matriz neoliberal. Pela primeira vez em décadas na Europa, o partido liderando as pesquisas de intenção de voto manifestava um paradigma que é autônomo do neoliberalismo, versão hard (direitas) ou soft (esquerdas da ‘terceira via’), e propõe uma receita alternativa e realista à depreciação das condições de trabalho: diminuição da dívida, alta da demanda agregada, Estado de bem-estar social universal, investimentos, regras de demissão menos desequilibradas, redistribuição de renda começando por um nível digno no salário mínimo. Pela primeira vez em décadas, na Europa, o partido vencedor... revela, para além do conflito econômico entre estados, a natureza de classe do conflito entre credores e devedores, em que a aristocracia das finanças e da economia internacional e interna, ajudada por uma tecnocracia supostamente acima das partes, afirma seus interesses, de modo míope e feroz, contra as classes médias e os trabalhadores subordinados, dependentes, precários ou autônomos.
 
Pela primeira vez em décadas, a alternativa possível ao neoliberalismo é popular sem ser populista e assume características progressistas e não marcas nacionalistas ou xenófobas”.
 
Nada disso será simples, mas a moeda está no ar. É o momento da disputa política na Grécia, na Europa, e é tempo de o mundo provar que tudo é possível, sem esquemas preconcebidos tirados de manuais importados. Enquanto, como afirma Stefano, a Grécia pode começar o árduo caminho de devolver o sentido de sua democracia.
 
Tradução de Daniella Cambaúva




Créditos da foto: DIE LINKE / Flickr

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