Fascismo eleitoral: Syriza contra as sereias

O Syriza representa um programa sério de ruptura com a austeridade e o neoliberalismo poderia abrir um curso anticapitalista na Europa.

Antoni Aguiló* - Other News
thierry ehrmann / Flickr
As eleições europeias de 2014 deram sinais das mudanças políticas do que poderia acontecer neste ano na Europa: Syriza ganhou as eleições na Grécia, Podemos acertou o tabuleiro bipartidarista espanhol e, na Irlanda, o Sinn Féin conseguiu um vertiginoso avanço. Em contrapartida, a ascensão das direitas racistas e antieuropeias, como UKIP, na Inglaterra, ou a Frente Nacional, na França, mostraram que o esgotamento dos modelos de ação política dominantes e a falta de alternativas diante da gestão da crise durantes os últimos anos podem levar ao ódio e à obstinação.


Entretanto, a irrupção do FMI na atual campanha eleitoral grega suscita algumas questões sobre o futuro da democracia na Grécia e em outros países europeus com eleições já agendadas: que significado teria para a Grécia e para a Europa uma vitória contundente do Syriza? É possível falar em eleições livres com uma campanha em marcha de sabotagem e medo? Pode uma alternativa radical de esquerda manter sua coerência diante da casta neoliberal global que a chantageia e desacredita?

A Grécia sofre hoje uma das apostas mais virulentas do “fascismo financeiro” de que Boaventura de Sousa Santos fala ao se referir ao governo indireto das corporações transnacionais e dos mercados financeiros sob hegemonia do neoliberalismo. Em conivência com os governos nacionais, o fascismo financeiro viola as regras elementares da democracia e determina em boa medidas as ações do Estado e as decisões parlamentares para impor sua vontade nas políticas públicas através de instituições como União Europeia, FMI ou Banco Mundial. A recente suspensão do programa de resgate por parte do FMI diante da provável vitória eleitoral do Syriza situou a Grécia no grau zero da democracia, demonstrando uma vez mais que a oligarquia somente aceita o jogo democrático quando ela é a vencedora.  
 
O fascismo financeiro tem sua correspondência nas urnas. É o que em termos metafóricos se pode chamar de fascismo eleitoral: um sistema de tipo parlamentarista e representativo em que, como já dizia sem mistérios Adam Smith em 1762, “as leis e o governo […] podem ser considerados como uma coalização dos ricos para oprimir os pobres e preservar, em seu benefício, a desigualdade de bens”. Trata-se de um regime eleitoral liberal normalizado, apesar de controlado por elites particulares que o utilizam em seu benefício e contra o poder popular. Há partidos políticos, mas a maioria opera como cartéis eleitorais que representam os interesses do fascismo financeiro; há Parlamentos, mas funcionam como Conselhos de Administração; há eleições (quando não são suspensas pelo Goldman Sachs) que se tornam um simulacro do regime para dar ares de legitimidade.

As democracias do sul da Europa se transformaram de maneira perigosamente semelhante em fascismos eleitorais: democracias privatizadas, democracias especuladoras, democracias humilhadas pelo capitalismo e seus capachos. Na Itália, Renzi, que levantou a bandeira da mudança, apesar de não ter passado nas urnas, aumentou a precarização do trabalho com a Lei do Emprego. Na França, Hollande, levou menos de um ano para se ajoelhar diante das exigências de Merkel; na Espanha, os governos Zapatero e Rajoy impuseram cortes drásticos que levaram ao aumento alarmante da pobreza e da desigualdade. Em Portugal, o gabinete de Passos Coelho, visto como o bom aluno da Troika, empreendeu uma ofensiva sem precedentes contra os direitos trabalhistas, salários e serviços públicos. Na Grécia, com a restituição das eleições parlamentares em 2012, o governo da “salvação nacional” formado pela coalização entre  Nova Democracia e PASOK, que durante a campanha eleitoral prometeram parar as políticas de austeridade e renegociar o memorando da Troika, não somente não deixou de freá-las, como as acelerou.
 
Tudo isso supõe um ataque implacável ao povo, às Constituições e à democracia. Nos últimos anos, Grécia e o sul da Europa assistiram à liquidação das formas tradicionais de democracia liberal. Na Grécia, os partidos do fascismo financeiro cederam à soberania à Troika, que chantageia o país com ameaças de cortar os empréstimos se suas políticas não forem aplicadas. Entretanto, a Troika enche seus bolsos com os juros dos empréstimos. Além disso, o governo da coalizão impõe estas medidas a golpe de decretos executados imediatamente e votados pelo Parlamento meses depois de sua aplicação.

A chegada do governo de Syriza suporia um impulso importante não somente para a democracia grega, mas também para as lutas antineoliberais e anticapitalistas da Europa. Um governo do Syriza seria o primeiro fora do bipartidarismo grego tradicional e o único (até o momento) na zona do euro abertamente oposto ao regime internacional de austeridade e aos projetos de reestruturação neoliberal (privatização, desregulamentação, empréstimos etc) responsáveis pelo genocídio social perpetrado na periferia europeia. Um programa sério de ruptura com a austeridade e o neoliberalismo poderia abrir um curso anticapitalista na Europa.
 
A janela da oportunidade histórica abriu para que, nas palavras de Walter Benjamin, por ela possa entrar a “chama da esperança” capaz de interromper o presente e reinventar o futuro. Neste sentido, Syriza não somente representa a aspiração da sociedade grega a uma mudança de direção histórica e política, como uma esperança coletiva para o continente. E sobretudo, a esperança de uma parte importante da esquerda grega europeia sobre suas possibilidades e capacidades.
 
Se o Syriza conseguir governar, a pressão do fascismo financeiro para desestabilizá-lo e substitui-lo por um governo servil será enorme. Por isso, é preciso estar bem preparado, contar com apoio popular e estar disposto a lutar contra a corrente e até as últimas consequências. Syriza, como Ulisses, terá que ser forte para se manter firme no mastro da nave e não se deixar levar pelos cantos das sereias dos que não admitem sua agenda radical.
 
*Filósofo político e professor espanhol do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
 








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