AUSÊNCIAS NOTÁVEIS NUMA FESTA BEM SUCEDIDA
por Paulo Moreira Leite
Dilma tomou posse sob aplauso de 40 000 pessoas mas principais lideranças sindicais do país não apareceram. "A vaca tossiu", disse uma delas por SMS
Com 40 000 pessoas, a festa pela posse de Dilma Rousseff foi uma vitória política relevante depois das semanas da pós-campanha, quando a oposição tentou desqualificar o resultado das urnas com uma sucessão de manobras e golpes baixos.
Mas as principais lideranças de sindicatos, base original do Partido dos Trabalhadores e de todos os seus governos, esteve ausente dos festejos — e isso pode sinalizar um problema preocupante para um segundo mandato que se inicia com a perspectiva de esfriamento da economia. Nas palavras de um executivo financeiro presente a cerimonia, o ajuste “será curto, de oito meses, mas bem doloroso.”
Quem andasse pela Esplanada dos Ministérios e pela Praça dos 3 Poderes, ontem, poderia encontrar vários cartazes e faixas que saudavam a presidente — mas, ao menos entre as mais visíveis, nenhuma era assinada pelas principais centrais sindicais do país.
No segundo andar do Planalto, onde Dilma falou para ministros, parlamentares, empresários e jornalistas depois de ser empossada no Congresso, a área ficou lotada, produzindo até uma inesperada disputa de cadeiras entre presentes. A áreas reservada para “entidades sindicais”, no entanto, era a única com várias cadeiras vazias. Havia lideranças, sim. Mas a ausência dos principais nomes do sindicalismo chamava a atenção.
Wagner Freitas, presidente da CUT, a central nascida no berço do PT, não compareceu. João Carlos Gonçalves, o Juruna, dirigente de uma fatia importante da Força Sindical que apoia os candidatos do PT desde o segundo da campanha de 2002 — no primeiro, Juruna votou no tucano Mário Covas — também não. São ausências marcantes, até porque em seu primeiro mandato Dilma deixou uma boa folha des serviços prestados junto aos trabalhadores. Em quatro anos de mandato seu governo foi capaz de aprovar 14 normas jurídicas em benefício dos assalariados, um desempenho que superou até mesmo o de Lula. Entre essas mudanças, ocorreram avanços na legislação sobre o trabalho doméstico e até a regulamentação do serviço de moto-boy.
Escrevi para um dos dirigentes que, em agosto, no início da campanha presidencial, ajudou a organizar um ato político de apoio a Dilma ainda no primeiro turno, no ginásio de Esportes do Canindé, em São Paulo, num evento que contou com a presença Lula da Silva.
A resposta veio rápida, por mensagem eletrônica:
— A vaca tossiu, me disse, referindo-se a uma resposta de Dilma na reta final do primeiro turno, momento dramático da campanha presidencial, quando lhe perguntaram se admitia mudanças na legilsação trabalhista. A candidata respondeu: “Nem que a vaca tussa,” frase que se tornou um dos mais divertidos bordões da campanha, ajudando a sublinhar uma diferença importante entre os compromissos políticos de Dilma e seus adversários.
Nenhuma das mudanças anunciadas dois dias antes da posse, na forma de medida provisória a ser debatida e votada pelo Congresso, pode ser definida como alteração na legislação trabalhista, aquele conjunto de leis amarradas pela CLT que se tornaram garantia constitucional. É possível argumentar que determinadas modificações em debate podem ser úteis para preservar o bem-estar da maioria dos brasileiros e que outras são inteiramente injustas. O debate não é apenas técnico, porém.
Numa conjuntura de receio das mudanças, as novidades irritaram os sindicalistas que apoiaram Dilma. O debate sobre o fator previdenciário, que eles haviam conseguido colocar na agenda da campanha, depois que, num lance de perspicácia, o tucano Aécio Neves anunciou que aceitaria promover sua abolição caso fosse eleito, segue sem uma perspectiva real de avanço.
Para além da substância, há um incômodo importante, também. Mantidos fora da mesa de negociações, os sindicalistas sequer tiveram a chance de participar de um debate mais amplo, para argumentar e oferecer contra-propostas — a começar por um aperto mais eficaz em esquemas de sonegação, por exemplo.
Como acontece com tantas instituições ligadas a luta dos trabalhadores e ao progresso no bem-estar, no mundo inteiro os sindicatos sofrem de um problema conhecido de auto-imagem — e este ponto está em questão no Brasil também.
O jornalista norte-americano James Fallows, um dos mais argutos estudiosos de mídia, observa no livro “Detonando a Notícia” que um dos traços marcantes da cobertura dos jornais e revistas de nosso tempo consiste em reduzir e distorcer a atuação dos sindicatos e seus dirigentes. Avaliando o processo de reformas economicas estruturais ocorridas a partir da década de 1980, Fallows mostra uma situação bem definida. Na mesma medida em que assumiram propostas austeridade e passaram a questionar valores ligados ao Estado de Bem-Estar social, os jornais e revistas passaram a desprezar e criticar a atuação dos sindicatos. Antes apresentados em tom positivo e até heróico, os lideres sindicais passaram a ser vistos como aproveitadores, parasitas e mesmo corruptos, num tratamento escandaloso e injusto, cujo maior efeito prático foi esvaziar entidades de classe — e estimular o individualismo e mesmo o carreirismo entre os trabalhadores.
Nesta conjuntura, os sindicalistas brasileiros consideram que têm direito um tratamento correto e respeitoso, que permita reconstruir uma sua função social de forma adequada. Querem o direito político de aparecer na foto.
Com linhas finais elaboradas horas antes da posse, Dilma fez um discurso no qual procurou responder a essas preocupações. A presidente afirmou que “a valorização do salário minimo irá prosseguir.” Também deixou registradas as seguintes palavras, num encerramento dramático: “nenhum direito a menos, nenhum passo atrás. Este é o juramento que faço.”
Imaginada num momento em que a fé de Oscar Niemeyer na realização das mobilizações políticas de caráter cinematográfico deveria encontrar-se no nível do fanatismo mais absoluto, a arquitetura da Praça dos Três Podres, em Brasília, é um desses espaços urbanos tão amplos que é possível que nunca venham a fica lotados.
Isso pode produzir em muitas pessoas a sensação enganosa de que todos eventos que ali ocorrem são esvaziados, sem apoio popular real. Nem sempre isso é verdade.
Apesar da ausência dos sindicatos, a festa da posse foi um evento popular de verdade. Não foi um encontro burocrático de funcionários públicos arrebanhados pelas respectivas chefias nem um aglomerado coreográfico de cabos eleitorais e eleitores pagos.
A festa reuniu milhares de cidadãos comuns, uma parte trazida de ônibus, em excursões organizadas no país inteiro. Outra parte era formada por moradores das cidades satélites e de bairros distantes de Brasília que passaram a se concentrar na Esplanada dos Ministérios. Elas caminhavam devagar, portando garrafas d’água e bandeiras vermelhas. Voltaram para casa após horas ao sol, bandeiras enroladas, num trajeto distante do primeiro ponto de ônibus.
Essas pessoas fizeram uma festa de gente vitoriosa e feliz, que se divertia contando anedotas sobre os adversários derrotados. Observadores com experiência de eventos políticos semelhantes lembram que, pelo olho, é possível concluir que havia uma presença marcante de mulheres.
Ao longo das horas, muitas se dedicavam a falar de assuntos típicos do universo cultural feminino — como debater a cor do vestido de Dilma, assunto que também mobilizou senhoras de vestido longo e maquiagem pesada no segundo andar do Planalto. Num ambiente solidário, as mulheres da Esplanada chegaram a oferecer água para policiais que padeciam sob um calor intenso — favor que as regras da comporação impedem de aceitar, o que deixou muitas senhoras desoladas.
Vestido de branco, um grupo de manifestantes desfilou pelo lugar com cartazes contra a legalização do aborto. Ouviu vaias estrondosas.
Se a posse deixou uma pergunta sobre as relações futuras entre Dilma e os sindicatos, mostrou que a presidente entra em 2015 com um prestígio inegável junto ao eleitorado feminino. Quando ela passava a bordo do Rolls Royce de Getulio pela Esplanada, uma antiga estudante de Filosofia da USP dos anos 1970 puxou uma palavra de ordem que logo seria assumida por um coro de vozes presentes: “Neste país, eu tenho fé, porque ele é comando por mulher.” Depois de fazer das questões de gênero um ponto importante do mandato, a presidente levantou a cabeça, acenou e sorriu.
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