Valparaíso, a joia do Pacífico, se reconstrói

Valparaíso resistiu a piratas, terremotos e incêndios, tornou-se Patrimônio Cultural e coleciona desafios. Entre eles, construir um futuro que espelhe seu passado glorioso

por Cida de Oliveira na RBA

Ascensor
Os ascensores, como o Artillería, são opção de transporte para a população dos morros; apenas sete estão funcionando


Winnipeg
Depois de 30 dias a bordo do velho cargueiro militar francês Winnipeg, 2.365 refugiados da Guerra Civil Espanhola avistaram pontos luminosos, como estrelas penduradas no céu. Era o sinal de que finalmente se aproximavam da tão esperada Valparaíso, no Chile, país do diplomata Pablo Neruda, que chefiou a missão de resgate.
Ali teriam asilo, morada, trabalho e a chance de uma nova vida longe da perseguição de Francisco Franco, que instauraria na Espanha uma ditadura de 36 anos. Com o raiar do dia 4 de setembro de 1939, descortinou-se o emaranhado de sobrados em meio a ruas estreitas, praças, jardins e escadarias a colorir a encosta que parecia pender sobre o porto e a parte baixa da cidade.

Uma localidade ainda rica, diga-se, e estratégica para o comércio marítimo internacional. Com a independência do Chile, em 1810, Valpo, como é chamada, passou a receber investimentos e se tornou a mais importante na costa do Pacífico, sediando transações comerciais com a Europa e os Estados Unidos. Era uma época em que a ligação entre Pacífico e Atlântico era feita pelo Estreito de Magalhães, no extremo sul do continente.
A herança desse período de pujança inclui os edifícios que abrigam a maior parte dos serviços públicos, escritórios de empresas, todo o setor portuário e hotéis em que marinheiros de todo o mundo se hospedavam. Ergueram-se museus como o Municipal de Belas Artes, o de História Natural, o do Mar Lord Thomas Cochrane e a Galeria Municipal de Arte do Valparaíso.
A cidade também conta com universidades de prestígio, como a Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso, a Universidade de Valparaíso e a Universidade Técnica Federico Santa María, um edifício característico de estilo gótico e renascentista situado na parte frontal do Cerro Prazeres. E com antigas escolas europeias, como o Colégio Alemão, a Aliança Francesa e o Colégio dos Sagrados Corações. Em atividade desde 1837, é a mais antiga escola particular na América do Sul. A maioria da população, estimada em 300 mil pessoas, das quais 280 mil moradoras nos cerros, tem escolaridade superior à média nacional. E o analfabetismo é de menos de 2%.
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No traçado dos morros

Valpo está a 120 quilômetros ao norte da capital Santiago. É uma das três cidades mais importantes do país, sede do Congresso Nacional, do Comando das Forças Armadas, do Serviço Nacional de Aduanas e do Conselho Nacional de Cultura e das Artes. É ainda a capital de uma província formada por seis comunas, entre elas a vizinha Viña Del Mar, o mais procurado dos balneários de todo o litoral.
Símbolos da resistência de um povo que foi reconstruindo suas vidas após terremotos que destruíram o plano baixo da cidade, como o de 1730, os cerros concentram diversos bairros, como o Cordillera, onde está o Museu do Mar, no antigo Castelo San José, uma fortaleza construída contra ataques de corsários e piratas, que entre 1559 e 1615 roubaram o ouro enviado do Peru.
O único planejado é o Concepción, com praças, passeios, corredores, mirantes, escadas e estações de alguns dos ascensores. Ali concentra-se boa parte da vida cultural e boêmia, em cafés, restaurantes, museus, antiquários e centros de arte que movimentam a cidade e atraem turistas de todo o mundo. O bairro foi desenvolvido por imigrantes alemães atraídos pela importância da cidade. Único no mundo, esse traçado urbano que venceu as adversidades de encostas tão íngremes foi reconhecido em 2003 pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade.
No entanto, a Valparaíso de hoje não é sombra daquela vista pelos espanhóis trazidos salvos por Neruda há 75 anos. Muito menos a “Joia do Pacífico”, como foi tratada até 1914, quando a abertura do Canal do Panamá reduziu sua atividade portuária e a riscou da mapa das grandes rotas comerciais, o que levou, entre outras coisas, a perder para Santiago sua posição de centro político e econômico do Chile.
Cartão postal da cidade, os ascensores – elevadores sobre trilhos – são também símbolo do empobrecimento. Dos 31 construídos no final do século 18 como alternativa de mobilidade para os moradores chegarem a suas casas, apenas sete funcionam. Entre eles está o Concepción, o primeiro a ser construído, inaugurado em 1883. Parte da Rua Prat, próximo ao Relógio Turri, e sobe 69 metros até o morro mais badalado, no Paseo Gervasoni, de onde se tem uma bela vista da cidade com o Pacífico ao fundo.
PEKKA PARHI/WIKIMEDIA COMMONSLa Sebastiana
Casa Museu La Sebastiana. Dela, Neruda contemplava os fogos no Réveillon
Há outros oito ascensores inativos, entre eles o Florida, inaugurado em 1906, que partia da Rua Carrera subindo 138 metros até chegar à Rua Maroni. O Florida servia a quem subia ao cerro de mesmo nome, onde se encontra a Casa Museu La Sebastiana, um dos principais pontos culturais da cidade. A construção, que conserva coleções de mapas antigos, fotos e pinturas, é uma das três casas de Pablo Neruda. As outras estão na capital Santiago e em Isla Negra, também transformadas em museu.
Adquirido de um espanhol morto em 1949, o imóvel reformado e inaugurado com festa em 1961 foi o espaço escolhido pelo Nobel da Literatura para passar suas festas de réveillon, de onde podia ver os fogos de artifício lançados do porto. Em 1972, o poeta passou ali sua última virada. No ano seguinte, o do golpe de Estado que derrubou o presidente Salvador Allende e de sua morte, La Sebastiana foi saqueada.
Durante a ditadura chilena, Valpo enfrentou um regime de toque de recolher que afetou empresas e prejudicou hotéis e pousadas. A crise econômica no começo do final dos anos 1970 fechou indústrias e transferiu outras para Santiago, em especial as de refino de açúcar e de doces. A casa museu foi restaurada em 1991, com apoio de empresários espanhóis, e aberta como centro cultural em 1997.

Reconstrução

Entre os inúmeros desafios que Valparaíso tem pela frente estão justamente a sua preservação e planejamento. De acordo com a prefeitura, está sendo elaborado um plano de recuperação, fortalecimento e conservação de infraestrutura relativa às funções históricas do porto e do patrimônio subaquático, que inclui a pesca, e o enfrentamento às vulnerabilidades a desastres naturais, como terremotos, inundações e incêndios, além de garantir a sustentabilidade dos sistemas tradicionais de transporte, como os degradados ascensores e bondes.
Entre as medidas, pretende-se investir na preservação das estruturas e fachadas das construções e traçar diretrizes estratégicas para o monitoramento. A administração espera, a partir de parcerias com o governo de Michelle Bachelet, obter novas fontes de recursos para financiar seu plano de recuperação e fortalecer seu potencial como cidade patrimonial, turística e cultural. Valpo é vista também como um polo de desenvolvimento tecnológico.
Depois de enfrentar grandes incêndios em 2007 e 2010, ano que foi assolada também por um forte terremoto, em abril deste ano Valparaíso voltou a sofrer com o fogo iniciado em uma reserva florestal em La Polvora, que matou 15 pessoas, destruiu 2.837 casas e deixou mais de 8 mil desalojados nos cerros El Litre, La Cruz, Las Cañas, Mariposas, Mercedes, Ramaditas e Rocuant.

A reconstrução, no entanto, não segue a mesma velocidade das chamas. O Ministério da Habitação lançou um plano com obras de infraestrutura que não devem ficar prontas antes de 2021 e de ajuda para a recuperação das casas até 2017. Até outubro passado, segundo o próprio governo, apenas 27% das famílias tinham reerguido suas moradias nos cerros de Valparaíso.

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