Táticas ‘mafiosas’ que sustentaram o mito Lance Armstrong

Lance Armstrong e a inseparável pulseira da campanha 'Livestrong' (Foto: Divulgação)
Lance Armstrong e a inseparável pulseira da campanha ‘Livestrong’ (Foto: Divulgação)
Se você, como eu, é apaixonado por bicicletas, deveria ler este livro. Agora, se não é, mas se interessa por esporte, marketing e mundo corporativo, então é obrigado a lê-lo. “Circuito de Mentiras – Ascensão e Queda de Lance Armstrong” (Editora Intrínseca; 424 páginas), obra que retrata os altos e baixos da carreira de Lance Armstrong, tem mais a ver com CPIs e trapaças do que com passeios pela ciclovia ou programas de treinamento para speed.

Juliet Macur, repórter que acompanhou a trajetória de Lance pelo “New York Times” mostra que, por trás do superatleta capaz de superar um câncer nos testículos e na sequencia vencer a Volta da França por sete vezes consecutivas – um recorde absoluto – havia um sujeito obcecado pelo poder, capaz de jogar sujo sempre que fosse necessário.
As mentiras começaram cedo, quando o jovem texano de família desestruturada adotou o sobrenome do padrasto, Terry Armstrong. O pai, Eddie Gunderson, alcoólatra, se separara da mãe, Linda, quando Lance ainda era adolescente. Gunderson e o próprio Terry – de quem Linda também se separou – teriam o mesmo destino: seriam renegados por Lance quando este se tornou um superstar.
A escolha do sobrenome, aliás, embora não tenha sido proposital, se revelaria um golpe de sorte na estratégia de comunicação em torno de Lance. Qualquer marqueteiro adoraria ter como matéria-prima um esportista-popstar sobrevivente de uma doença mortal cujo sobrenome tivesse ‘strong’ (forte). Sua maior “dádiva” seria o câncer que o atingiu em 1997 e cuja eliminação foi decisiva para o surgimento da aura de vencedor, turbinada pelos patrocinadores e invocada à exaustão junto à sua legião de fãs cada vez que era acusado de se dopar – “Armstrong e Bill Stapleton (seu empresário) tinham razão: o câncer foi a melhor coisa que podia ter acontecido com ele em termos de marketing”.
O toque final na construção do herói veio quando, logo após derrotar a doença, Lance iniciou sua fantástica sequencia de vitórias na Volta da França ao mesmo tempo em que criou a Fundação Livestrong para ajudar pacientes com câncer. Não dava pra ser americano e não admirar um cara que havia dado a volta por cima de forma tão espetacular, humilhara os franceses em seu próprio território e, de quebra se envolvia na luta o câncer.
Lance atingiu seu auge. Voava em jatinho particular, era recebido na Casa Branca – George W. Bush e Bill Clinton pedalaram em sua popularidade – e vivia de namoro com beldades do calibre da cantora Sheryl Crow. Chegou a embolsar US$ 7 milhões em 2000, renda que o colocava no mesmo patamar dos astros da NFL. E foi comparado a Tiger Woods e Michael Jordan como principais ídolos do esporte da América.
Capa-LancePara os patrocinadores e empresários, Lance era um Midas: tudo que o amarelo ouro de suas pulseirinhas de silicone tocava virava dinheiro. Foi uma festa: a fabricante de bikes Trek viu suas vendas duplicarem após fechar o contrato com ele. A Nike destinava departamentos inteiros de suas lojas aos produtos da Livestrong. Até seu técnico, Chris Carmichael, lançou um programa de treinamento para ciclistas, “The Lance Armstrong performance program: 7 weeks to the perfect ride”, sucesso instantâneo. Lance estava em embalagens de remédios para quimioterapia e em cereais matinais. Os Estados Unidos amavam seu herói e estavam dispostos a defendê-lo toda vez que uma agência antidoping ou um jornalista bisbilhoteiro, especialmente se fosse francês, levantasse qualquer dúvida sobre sua idoneidade.
E Lance sabia como se defender. Seu arsenal incluía desqualificar os críticos destruindo suas reputações, processar quem fosse exigindo reparações em dinheiro (quase sempre ganhava) e convocar seus defensores apelando para o lado emocional de sobrevivente do câncer. A mensagem-chave, como se diz em Relações Públicas, era a de que as suspeitas não passavam de dor de cotovelo contra quem venceu trabalhando duro.
Nos bastidores do ciclismo, o astro e seu grupo agiam como uma bem estruturada organização criminosa, obrigando os outros atletas a se doparem (era preciso agir como equipe e cansar os adversários para facilitar o sprint final de Lance) e exigindo fidelidade para não denunciar o esquema. Não por acaso as regras eram conhecidas na boca pequena como a “omertà”, o código de silêncio da máfia italiana. Lance também distribuía generosas doações aos programas anti-doping da UCI (União Ciclística Internacional), o que ajudava sua reputação ao mesmo tempo em que garantia boa vontade sempre que a vítima de um desses exames fosse ele, Lance.
Essa estratégia permitiu ao ciclista desenvolver “o mais bem sofisticado programa de doping que o esporte já viu” – palavras do relatório que o incriminou. Em seu cardápio, substâncias como EPO (eritropoetina, que aumenta a resistência), hormônio de crescimento, cortisona, testosterona (para diminuir o cansaço ao final de cada etapa da Volta) e as também proibidas transfusões de sangue, capazes de melhorar a resistência por meio do aumento de glóbulos vermelhos.
Ironicamente, apesar dos ataques dos franceses, o golpe que o desmascarou seria dado em território americano, pela Usada, a agência antidoping dos Estados Unidos. Cientes de que o destino da recém-criada entidade estava em jogo, os tiras foram fundo na investigação e produziram um dossiê com 1.200 páginas e uma dezena de depoimentos, inclusive de ex-ciclistas que romperam com a “omertà”.
Lance perdeu patrocinadores que cinicamente se declararam traídos – se, de fato, isso ocorreu, essas empresas foram no mínimo negligentes ao não investigar a fundo um atleta no qual investiam milhões e que vivia sendo acusado de trapaça num esporte marcado pelo doping. A US Postal Service (estatal americana equivalente aos Correios), que o patrocinou, processou Lance em mais de US$ 100 milhões, prejuízo que reduziria substancialmente sua fortuna. Também foi banido dos esportes olímpicos.
Ferida, mas não morta, a moral torta do ciclista surgiu num depoimento no final da obra: “Se as pessoas acham que me dopei para vencer a Volta da França, elas são burras pra caralho. Todos os 200 caras que largaram burlaram as regras”. Não é verdade. Alguns jogaram limpo. Não tiveram oportunidade de se testar contra um Lance ‘EPO-free’, abandonando carreiras promissoras. Outros simplesmente não tinham acesso à sofisticação dos esquemas de Lance e sua equipe.
Não dá para subestimar a força de Lance Armstrong. Apesar da reputação erodida, ele segue com milhões de fãs que o apoiam incondicionalmente. Mas a história do herói construído a base de EPO, marketing e pulseirinhas amarelas mostra que o público está disposto a acreditar em seus ídolos, mesmo que todas as evidências demonstrem que seu sucesso se baseia num circuito de mentiras.
*Danilo Vivan é jornalista e relações públicas, com passagens pelo Estadão e pela Febraban. Pedala todos os dias pelas ruas de São Paulo.

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