Saul Leblon: 2015, o ano que pode surpreender
Frente de esquerda formada por movimentos sociais brasileiros, tendo à frente, entre outros, o dirigente do MTST, Guilherme Boulos, está em formação.
por: Saul Leblon
A palavra incerteza comanda a passagem de 2014 para o Brasil de 2015, mas o chão mole do calendário político registra agora uma auspiciosa pavimentação de terra firme que pode surpreender.
Uma frente de esquerda formada pelos principais movimentos sociais brasileiros, tendo à frente, entre outros, o dirigente do MTST, Guilherme Boulos, está em formação no país.
Não é ainda a alavanca capaz de reverter a ofensiva conservadora em marcha batida na sociedade. Mas tem potência para isso.
Tem, sobretudo, capacidade para sacudir uma correlação de forças na qual as elites mastigam a margem de manobra do segundo governo Dilma entre os dentes da fatalidade econômica e do engessamento político.
A iniciativa dos movimento sociais, apoiada por partidos de esquerda, conta com um incentivo sintomático da gravidade dos dias que correm: o do ex-presidente Lula e, portanto, de uma parte significativa do PT.
Tem, ademais, um precedente revelador.
Ela vem se somar a uma mobilização equivalente, iniciada há cerca de um mês, para reaproximar intelectuais de esquerda e construir um contraponto de ideias progressistas ao agendamento conservador da sociedade, martelado diuturnamente pelo jogral midiático.
Trata-se de uma usina de respostas à espiral regressiva; uma caixa de ressonância de intelectuais cidadãos.
Esse polo de debate e combate foi oficializado no dia 15 de dezembro, em evento em São Paulo, com o nome de Fórum 21.
A primeira assembleia, no Sindicato dos Engenheiros, elegeu como uma de suas vértebras a luta pela democratização dos meios de comunicação.
Presente no lançamento, o secretário de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Juca Ferreira, afirmou que os meios de comunicação são o principal obstáculo ao debate crítico dos reais desafios brasileiros.
‘Precisamos iniciar uma reconstrução programática que supere nosso próprio desgaste, mas essa tarefa requer um ambiente midiático oposto ao atual, concentrado e carente de regras democráticas’, disse Ferreira. (leia ‘Para Juca Ferreira, falta de democracia da mídia substituiu censura do regime militar’, nesta pág).
A importância descomunal da imprensa na luta política não é assunto estranho à reflexão intelectual desde que Gramsci (1891-1936) o incorporou a sua obra.
Na Itália, a fragilidade das estruturas partidárias, ao lado das dificuldades impostas por uma unificação feita de instituições ralas e abismos sociais e regionais profundos, fez com que os jornais assumissem funções de verdadeiros partidos, ensinou o pensador comunista.
As semelhanças meridionais com o subdesenvolvimento tropical não são negligenciáveis.
Nos anos 90, Celso Furtado costumava explicar pacientemente aos jovens jornalistas – os poucos que ainda procuravam o grande economista brasileiro taxado de jurássico pela emergente agenda tucana— que o ‘populismo’, ao contrário da demonização que lhe atribuíam as elites, refletia o vácuo histórico de uma sociedade pouco sedimentada institucionalmente, capturada pelas mandíbulas de um capitalismo de fronteiras indivisas.
O Estado e os líderes carismáticos compensavam o oco político falando direto às massas. E intervindo na economia para organizar a luta contra o subdesenvolvimento.
A colisão entre esse improviso de poder popular e o diretório midiático gerou entre nós alguns capítulos pedagógicos.
O suicídio de Vargas foi um deles.
O criador da igualmente por isso maldita Petrobras apertou o gatilho para não ceder à pressão insuportável do denuncismo lacerdista, que exigia sua renúncia em emissões sistemáticas através da rádio Globo, dirigida então pelo jovem udenista Roberto Marinho.
O Brasil era descrito como um mar de lama.
É dispensável enfatizar as semelhanças com a pauta e os métodos abraçados agora pelos grandes veículos de mídia em sintonia com a oposição conservadora ao governo Dilma, ao PT e ao ‘lulopopulismo’ econômico.
O Fórum dos intelectuais e a frente de movimentos sociais emergem como o contraponto mais importante a isso, desde a vitória de Dilma em 26 de outubro.
O conservadorismo atordoa o discernimento da sociedade desde então com uma escalada vertiginosa de iniciativas.
Habilidosamente, equipara-se combate à corrupção à demonização do polo progressista, no qual se espeta o selo da degeneração política, associada a práticas econômicas ‘intervencionistas’.
A ideia de uma salubridade externa à história, tomada como referência limpa e boa na construção da sociedade, é um daqueles mantras aos quais se agarram os interesses dominantes de todos os tempos.
A depender da conveniência, essa salubridade poderá vestir a toga da judicialização da ‘má política’. Ou a gravata técnica dos centuriões que falam em nome da proficiência dos mercados para dar o rumo ‘correto’ à economia.
Ou ainda encarnar no monopólio de um dispositivo midiático que se avoca a prerrogativa de um Bonaparte, a emitir interditos e sanções em defesa dos interesses particulares apresentados como os de toda a nação.
Hoje, o objetivo desse aluvião é o impeachment de Dilma ou o sangramento irreversível de seu governo, e das forças que o apoiam, bem como das ideias que as expressam. Até o seu sepultamento histórico em 2018.
Semanas após a vitória progressista nas urnas, quando o governo parecia hipnotizado pelo serpentário golpista que havia subestimado, e por isso não se preparado para defender o escrutínio popular, Carta Maior indagava:
‘O que se pergunta ansiosamente é se Lula já conversou sobre isso com Boulos, do MTST; se Boulos já conversou com Luciana Genro; se Luciana Genro já conversou com a CUT ; se a CUT já conversou com Stédile; se todos já se deram conta de que passa da hora de uma conversa limada de sectarismos e protelações, mas encharcada das providencias que a urgência revela quando se pensa grande. Se ainda não se aperceberam da contagem regressiva que ameaça o nascimento de um Brasil emancipado e progressista poderão ser avisados de forma desastrosa quando o tique taque se esgotar’.
A boa nova na praça é que a conversa começou.
O desafio de vida ou morte consiste agora em restaurar a transparência dos dois campos em confronto na sociedade.
Na aparente neutralidade de certas iniciativas pulsa, na verdade, a rigidez feroz dos interesses estruturais por elas favorecidos.
O melhor solvente para essa tintura é a ampla participação popular no debate e nas decisões que vão definir a rota do futuro brasileiro.
O país, desde 2003, e com todas as limitações e contradições intrínsecas a um governo de base heterogênea-- tem figurado aos olhos do mundo como uma das estacas da resistência latino-americana à retroescavadeira ortodoxa, que demole e soterra direitos sociais e soberania econômica urbi et orbi.
Essa resistência criou um dos maiores mercados de massa do planeta em uma demografia de 202 milhões de habitantes.
O assoalho macroeconômico range e ruge sob o peso da inadequação entre a emergência dessa nova força motriz e as estruturas rigidamente pensadas para exclui-la do mercado e da cidadania.
A solução da 'agenda técnica’ é higienizar a sujeira do intervencionismo público em todas as frentes, devolvendo o mando do jogo à faxina autorreguladora dos mercados.
Sobrepor o interesse privado aos da sociedade implica capturar o sistema democrático integralmente para esse fim.
Era esse o objetivo dos candidatos conservadores derrotados em outubro.
Não era apenas uma disputa presidencial. Mas um capítulo do embate inconcluso pelo comando do desenvolvimento brasileiro.
Daí a ilusão de se supor que concessões pontuais vão saciar o agendamento derrotado nas urnas.
Não será a adoção homeopática de sua farmacopeia que o fará recuar.
O discernimento daquilo pelo que se luta, e contra quem se travará a batalha dos próximos dias e noites, é crucial para os interesses populares afrontarem a avalanche em curso.
Essa é uma batalha entre a democracia social e as forças regressivas que se insurgiram contra a sua construção em 32, 54, 64, 2005, 2006, 2010 e 2014.
Tornar esse divisor visível aos olhos da população requer um símbolo de magnetismo equivalente à dimensão das tarefas que essa agenda encerra em termos de organização e repactuação do país com o seu desenvolvimento.
Requer o nascimento de uma frente de esquerda que, à semelhança do ‘Podemos’, na Espanha, guarde incontrastável vinculação com as urgências populares. Mas também encerre um denso discernimento das contingencias globais, que não podem ser abduzidas pelo imediatismo corporativista.
Embora o martelete midiático tenha disseminado a bandeira do antipetismo bélico, a ponto de hoje contagiar setores amplos da classe média, o fato é que esse trunfo conservador ainda não reúne a energia necessária para inaugurar uma nova ordem.
O pântano, por enquanto, o satisfaz.
Ele desarma a sociedade e exaspera a cidadania.
Dissemina um sentimento de impotência diante das urgências de uma transição de ciclo econômico marcada por uma correlação de forças instável, desprovida de aderência institucional , ademais de submetida à determinação de um capitalismo global avesso a qualquer outro ordenamento que não o vale tudo dos mercados.
A força e o consentimento necessários para conduzir esse ciclo em uma chave que não seja a do arrocho requisitam o salto de articulação social que agora se ensaia.
Portanto, não se trata apenas de sobreviver ao assalto da restauração neoliberal.
Cada um por si, e os mercados por cima de todos, ou a árdua construção de um democracia social negociada no Brasil do século XXI?
É em torno dessa disjuntiva que se abre a janela mais panorâmica da encruzilhada política nos dias que correm.
Da ampliação da democracia participativa depende o futuro dos direitos trabalhistas, a sorte das famílias assalariadas, a repartição da renda e a cota de sacrifícios entre as classes sociais na definição de um novo ciclo de crescimento.
O caminho oposto é o da treva.
A regressividade conservadora predominante na Itália após o ‘Mãos Limpas’, nos anos 90, não é uma miragem; é um risco real em sociedades desprovidas de representação política forte e organização social mobilizada (leia ‘Mãos Limpas; e depois, Berlusconi?’; nesta pág).
Lá como aqui o lubrificante do retrocesso foi a prostração progressista e a incapacidade da esquerda e dos democratas de construir um repto histórico de esperança para engajar a sociedade no comando do seu destino.
A gravidade dos desafios embutidos no calendário de 2015 são de ordem equivalente.
Saber onde estão as respostas e reunir a energia política capaz de validá-las é trunfo valioso.
É esse o significado encorajador da nascente frente de esquerda dos movimentos sociais e da usina de intelectuais cidadãos reunidos no Fórum 21.
São sinais de um aggiornamento em curso na vida política nacional.
Mas que já extrapolam a mera formalidade da travessia gregoriana, para emprestar a 2015 a dimensão e o desassombro de uma verdadeira renovação histórica.
Que assim seja um bom ano novo, são os votos que Carta Maior tem a certeza de compartilhar com seus leitores e com a imensa maioria do povo brasileiro.
Comentários