Portugal: O início de nada
O ano visto por António Barreto
Por SÃO JOSÉ ALMEIDA
publico.pt
"2014 Não é o início de nada, porque não mostrou sinais de mudança, não trouxe ideias novas e acentuou sinais de crise da política, da crise da justiça, do aumento de corrupção, de diminuição de recursos económicos, de transferência do capital para o estrangeiro. Mostrou a desagregação, o disfuncionamento, a disrupção de alguns serviços públicos, como seja a educação”, é com tranquilidade na voz, mas em tom categórico que, a pedido do PÚBLICO, o sociólogo António Barreto sintetiza as suas reflexões sobre ano em Portugal.
E frisa: "Este ano vai ficar na história, daqui a 15 anos os historiadores olharão para ele como um ano de charneira por causa dos casos judiciais. Estamos num processo mais longo, que se desenrolará ao longo de cinco ou sete anos, que tem muita importância e gravidade, no sentido de gravitas."
Este momento de "charneira" surge numa época em que o país está em sintonia com a Europa. Vive "um processo que começou há 10 ou 15 anos", interrompendo o ciclo iniciado "na Segunda Guerra e que durou até à viragem do século". Barreto precisa que "a segunda metade do século XX foi um período de aprofundamento da democracia, de progresso no universo das mulheres, dos jovens, etc., os últimos 40 ou mesmo 50 anos foram de progresso do nível de vida e da igualdade de direitos".
Ora, no actual século assistimos a "uma inversão desse processo", de que faz parte "o predomínio de governos de direita", assim como o facto de "o mundo do trabalho estar a perder poder e voz, os partidos de esquerda perderem voto e influência, a parte inferior da classe média perder poder", sustenta. A Europa vive um período em que "o movimento de alargamento da democracia parou", defende, frisando que, "mesmo antes de 2008, já há uma transferência de rendimentos de classes médias para os mais ricos, dos países mais pobres para os mais ricos, através dos juros das dívidas públicas e dos programas de austeridade, do trabalho para os detentores da produção, do mundo produtivo para o mundo financeiro". E afirma: "Algumas das causas democráticas estão a perder, como a da centralidade do trabalho para a economia. Até no mundo da cultura e das artes há perda e é um mundo que está sem capacidade."
Degenerescência do sistema
O sociólogo, que viveu ele também uma mudança de vida este ano, ao deixar a presidência da Fundação Francisco Manuel dos Santos, alerta que o ano de "2014 em Portugal tem de ser visto neste quadro". Um país a viver um momento de mudança que "é um processo duro e difícil", que este ano viu serem revelados "os grandes casos que são manifestações da degenerescência do sistema político". A saber: o caso dos submarinos, o caso José Sócrates, o caso Duarte Lima, o caso Face Oculta, o caso dos vistos gold, o caso Monte Branco e a derrocada do Grupo Espírito Santo. Como se a crise e a austeridade, o empobrecimento e a degradação política expusessem a corrupção.
É assim "uma época em que as pessoas não se reconhecem no sistema, as elites políticas não estão à altura de dar resposta", em que, "além da degenerescência do sistema político, também há degenerescência do Estado de Direito", defende Barreto. E em jeito de balanço, retrata: "Temos um ex-primeiro-ministro [José Sócrates] preso preventivamente com a opinião pública contra ele, um antigo ministro [Isaltino Morais] na segunda fase de prisão, um antigo secretário de Estado a cumprir pena [Oliveira e Costa], outro antigo ministro [Armando Vara] à espera de cumprir pena, um antigo secretário de Estado [José Penedos,] também à espera de cumprir pena, um antigo líder de um grupo parlamentar [Domingos Duarte Lima] à espera de cumprir pena, altos funcionários do Estado investigados e em prisão preventiva [no caso dos vistos gold]".
E, perante o seu próprio resumo, remata: "Não conheci, em tempos de paz, na história democrática, como isto. Há o caso italiano das Mãos Limpas, em que houve dois ou três ministros presos, mas em Itália os partidos ficaram de pantanas e o Partido Comunista e o Partido Democrata Cristão desapareceram." Advertindo que há "em Portugal uma dimensão de corrupção que põe em causa o sistema". Para mais quando "já tivemos antes os fenómenos do BPP, do BPN e o BCP, três histórias da elite financeira que agora acabam com o caso Espírito Santo - e nesta não é só a família que está em causa, há muito mais por trás disso, vamos ter novas prisões nas próximas semanas", afirma o sociólogo.
Com o mapa da corrupção sinalizado, conclui: "A crise é assim também do nosso capitalismo que não está à altura. Há dinheiro árabe, angolano e chinês. Não é por ser dinheiro estrangeiro a ocupar Portugal, o dinheiro não tem cheiro nem nacionalidade, mas são dinheiros frescos, que compram e não investem. Isto demonstra que o sistema económico português é frágil e que a elite económica é fragilíssima. Há uma crise política, há uma crise na justiça/ corrupção, há uma crise capitalista. Além de que 2014 é o ano da transferência de poderes e de inversão do peso dos direitos e do trabalho."
Sublinha ainda que 2014 foi "um ano crucial e de crise, que não teve sinais de solução, teve sinais de decadência e incapacidade", que mostram "a falta de resolução das questões políticas económicas e sociais, falta de capacidade das elites políticas, sociais e económicas". É o ano em que "houve antes disrupção na política e na justiça". Considerando ainda que "o ano educativo é terrível", sublinhando que "o sistema educativo põe em contacto directo o Estado e os cidadãos e foi onde houve mais disfunção e disrupção."
Sobre se "2015 será pior?", Barreto apenas diz: "Vamos ver. Até agora as elites políticas e económicas não deram sinais de mudança, só deram sinais de querer ganhar eleições." Sendo um ano eleitoral, Barreto considera que "pode ser um ano de marcar passo". Lembrando que em 2013 "toda a elite do país não conseguiu travar o processo e fazer um acordo", o sociólogo advoga que deviam ter decorrido eleições, pois "o que estamos a viver há um ano e o que vamos viver até Outubro será para acrescentar degradação".
Barreto antecipa que "a recuperação económica não vai acontecer, o desemprego diminuiu pouco, o investimento está baixo", será "um ano no melhor dos casos igual a 2014 e "com muita insuficiência de investimento". Mas admite que está "curioso sobre como os partidos se vão portar, se a direita faz coligação, se esquerda reforça a sua identidade e faz uma grande coligação". Até porque, garante, "estão em cima da mesa duas grandes alianças e há quem esteja à espreita, Marinho e Pinto é um fenómeno importante, já houve um intruso com o PRD, mas apesar de tudo Ramalho Eanes era Presidente".
Numa precisão que antecipa pessimismo, Barreto sustenta que "as elites políticas dão sinal de não saber responder". Por um lado, "a direita diz que o neoliberalismo vai resolver", do outro lado, "a esquerda diz que vai resolver, porque é esquerda" e o "bloco central é rejeitado". E antecipa: "Vamos ver se esta esquerda e esta direita reagem. É o que vamos assistir em 2015. Não creio que vamos ter boas notícias da TAP, da educação que está terrível, da saúde, há um grande contencioso não está em vias de encontrar solução". Para reafirmar a ideia de que "nos próximos quatro ou cinco anos a economia portuguesa vai perder força, mesmo as empresas ainda sediadas em Portugal vão desinteressar-se e os centros de investimento também".
Um novo poder
Barreto é peremptório ao defender que "só um novo poder político pode levar a cabo uma reforma". E explica que "se houvesse sinais de formação de um novo poder político, com bases ao centro, e esse poder político se propusesse reformar a Constituição, o sistema eleitoral e sistema judicial", o país encontraria um caminho. Mas, o sociólogo afirma que o actual sistema político "só pode pensar em reformar coisinhas na Constituição ou na lei eleitoral".
Quanto a 2014, foi tempo perdido. "A austeridade trouxe uma direita com poder político real, que podia mesmo reforçar-se com a legitimidade da troika", mas que levou a "um resultado em que mais importante que o aumento da desigualdade e da pobreza, o mais sério é a incapacidade da direita de formar um novo poder político". Uma capacidade que não sabe se a esquerda tem, isto porque "António Costa poderá tentar conversar com o BE, o PCP e o Livre, mas isso não resulta", pois "o PCP não faz parte do futuro do sistema político português, o PCP é um grande protagonista da resistência, não o é da democracia".
Barreto clarifica que fala em "novo poder e não novo regime, porque as pessoas perguntam logo se o novo regime é democrático ou não, monárquico ou republicano". Mas explica que a esse novo poder político "competiria recuperar o sistema político e o sistema constitucional, sem pôr em causa, antes preservando e protegendo a democracia, que é, na essência, a liberdade dos cidadãos".
E lembra que "a missão de um sistema constitucional é isso mesmo, preservar a liberdade dos cidadãos e a democracia". A esse novo poder, defende, caberia "um longuíssimo trabalho de organizar o poder do Estado, os poderes periféricos de Estado, o corpus da Justiça, já que, remata: "O sistema judicial vive em auto gestão, tem que se rever o actual modo em que as decisões estão apenas nas mãos dos senhores juízes e dos senhores magistrados."
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