Marcelo Gruman: Advogado do diabo

Um juiz parado numa blitz e outro impedido de embarcar em um avião após o horário devido expuseram o viés autoritário de algumas instituições brasileiras.

Marcelo Gruman*
Scott* / Flickr
Dois casos recentes envolvendo representantes do poder judiciário expõem o viés autoritário do Estado brasileiro e a fragilidade de conceitos e instituições que devem garantir o exercício de liberdades e direitos fundamentais. Revelam, ainda, como há um longo percurso a ser trilhado, para além do mero estabelecimento de premissas teóricas inscritas na letra fria da lei, de relações igualitárias tanto entre Estado e sociedade como entre os próprios membros da sociedade, contaminados pela herança ibérica do “você sabe com quem está falando”.

 
O primeiro caso aconteceu em fevereiro de 2011 quando, durante uma blitz da Operação Lei Seca na cidade do Rio de Janeiro, um juiz foi parado por dirigir sem carteira de habilitação e com carro sem placa. A fiscal informou que o carro teria de ser apreendido e levado a um pátio público, mas o juiz insistiu que o veículo fosse levado a uma delegacia de polícia. Para que sua vontade fosse feita, o motorista infrator apresentou-se, então, como juiz, ouvindo como resposta da agente de trânsito que era juiz “mas não Deus”. Inicialmente vítima da famosa “carteirada”, a agente de trânsito foi transformada em ré e processada pelo juiz, sendo condenada a pagar uma indenização de R$ 5.000,00 por danos morais. O desembargador responsável pelo caso afirmou, na sentença, que o juiz foi vítima de deboche pelo cargo por ele ocupado “bem como do que a função representa na sociedade”. Note-se que a sentença levou nada menos do que quase quatro anos para ser proferida.
 
O segundo caso aconteceu no último dia seis de dezembro, na cidade de Imperatriz, no Maranhão. Após perder o horário de embarque de um voo com destino à cidade de Rio Preto, em São Paulo, um juiz deu voz de prisão a dois atendentes da companhia aérea em que viajaria. Segundo informações colhidas na imprensa, o magistrado chegou atrasado ao aeroporto, mas insistiu em embarcar. Após ser impedido pelos atendentes da companhia aérea, acionou a polícia militar, que levou os funcionários à delegacia. O juiz, no entanto, não apareceu para registrar a ocorrência e os funcionários detidos foram liberados. A companhia aérea informou, em nota, que seguiu todos os procedimentos regidos pela legislação do setor, cujo guia do passageiro, produzido pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), é explícito ao informar que o passageiro deve se apresentar para o check-in no horário estipulado pela companhia obedecendo, na maioria das vezes, o prazo de pelo menos uma hora de antecedência.
 
Nos dois casos, os representantes do poder judiciário, aquele poder responsável pela garantia do exercício da lei a todos os indivíduos sem distinção social de qualquer natureza, subvertem-na em proveito próprio. A lei iguala os desiguais, e isto é impensável numa sociedade ainda contaminada por valores antidemocráticos, autoritários em que a “carteirada” e o “você sabe com quem está falando” fazem parte do jogo das relações sociais mais do que o “quem você pensa que é”, expressão que rebaixa à posição de igualdade aquele que, inicialmente, se acha superior e acima da lei. Na sociedade da malandragem, do jeitinho e da “carteirada”, motorista infrator vira juiz e agente da lei vira entrave burocrático, “ponha-se no seu devido lugar e não me encha o saco”.
 
A mensagem dos doutores é clara. Eles são a lei e não seus simples representantes, a quem deveriam respeitar e zelar para que os outros também a respeitassem. Portam-se como os antigos “guardiães da verdade” da Idade Média, vistos pela comunidade como portadores últimos do saber transferível por livre e espontânea vontade apenas aos escolhidos. A verdade podia ser levada ao túmulo, caso assim os “guardiães” desejassem, e o caos passaria a imperar. Para a versão moderna desta autoridade de poder atemporal, o espaço público é extensão do espaço privado e o conceito de cidadania é mero detalhe aplicável apenas aos meros mortais.
 
Mas nem tudo está perdido. No caso da agente da Operação Lei Seca, foi criada na Internet uma “vaquinha” para juntar o valor da indenização. Surpreendentemente (ou não), arrecadou-se a bagatela de R$ 27.000,00. A mensagem da população também é clara. O poder judiciário está desmoralizado simplesmente por não defender o Estado democrático de direito, por agir corporativamente em favor dos seus pares em detrimento do cidadão, conceito ainda vilipendiado e estigmatizado. É engraçado, ou melhor, tragicômico, porque ao tentar enquadrar o motorista infrator em seu papel de cidadão consciente de seus deveres, não cumpridos, a agente da lei foi, ela sim, rebaixada a esta condição. Rebaixada porque o entendimento do conceito para um e outro é completamente distinto, e o poder judiciário aparentemente não se deu conta (ou exatamente porque se deu conta) que, ao condenar a agente de trânsito, contribui para a perpetuação da desigualdade de tratamento entre o amigo do amigo e o Zé ninguém, o Zé povinho.
 
A “vaquinha” é uma reação da sociedade contra o Estado, sendo ela tão responsável quanto ele e seus representantes pela subversão de valores que devem reger as relações sociais no espaço público, base para o efetivo exercício da cidadania, englobando direitos e deveres. Alguns poucos exemplos? Jogar o lixo na lixeira, não cuspir no chão, não emporcalhar a cidade com pichações, não fingir que está dormindo para não ceder o lugar aos velhinhos que entram em ônibus ou metrô, não furar a fila do supermercado, não estacionar em local proibido, não fazer ligação clandestina da TV a cabo (o famoso “gato”), não parar na faixa de pedestre com o sinal vermelho, não fechar o cruzamento causando engarrafamentos infernais, não corromper e não ser corrompido por agentes públicos, não falar ao celular em altos brados em locais públicos.
 
 
Ufa! Exercer a cidadania e exigir que os outros a exerçam dá trabalho, mas vale a pena. A alternativa é ter o desgosto de ouvir sentenças como a proferida pelo desembargador no caso da Operação Lei Seca. Talvez o motorista infrator tenha se sentido ofendido por ter se dado conta que não é Deus, ainda que mais pareça um advogado do diabo.
 
*Antropólogo. marcelogruman@gmail.com 




Créditos da foto: Scott* / Flickr

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