Lula, Mujica e a nova América Latina

Lula defendeu que os desafios imediatos devem ser superados pela integração e Mujica declarou que a política ''não pode ser conduzida pelo mercado.''

Niko Schvarz - Bitácora/ Uruguai
Sec. de Comunicación - Presidencia Uruguay / Flickr
A VIII Cúpula da União de Nações Sul-americanas (Unasul) realizada em Guayaquil e em Quito, Equador, é de importância extraordinária. Nela, inaugurou-se a sede do organismo continental no complexo A Metade do Mundo da capital equatoriana. A reunião foi também precedida na quarta-feira (3) por uma conferência magistral em Guayaquil feita pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva "A unidade e a integração latino-americana e caribenha: passado, presente e futuro".


 
No início da Cúpula, quinta-feira (4), o presidente do Uruguai, José Mujica, recebeu a presidência pro tempore da instituição das mãos do presidente de Suriname, Désiré Bouterse, e foi alvo de uma cálida homenagem por parte do presidente anfitrião, Rafael Correa, respondendo com um discurso de enorme repercussão. No encontro, destacou-se que a Unasul é o reflexo do ideal bolivariano da integração latino-americana e caribenha e ficou claro o destacado papel da nova América Latina no mundo atual.
 
Lula avaliou o atual panorama do continente e os desafios imediatos que devem ser superados através dos mecanismos de integração. A ideia central de sua fala é que a “América do Sul e o Caribe têm possibilidades reais de contribuir para uma nova ordem política e econômica global mais justa, equitativa e equilibrada” e que nesse caminho o principal desafio é “construir um pensamento estratégico da América Latina e do Caribe, um projeto integrador que aproveite sua formidável riqueza histórica, cultural e natural”. Destacou a necessidade de inovar nos processos inclusivos para alcançar um verdadeiro projeto de integração na região, um continente potência com uma população de 600 milhões de habitantes e um PIB superior aos 5 bilhões de dólares.
 
Em sua avaliação, é preciso apostar não apenas em uma integração política e econômica, mas na dos povos da região. E destacou que a maior integração do continente será possível quando os povos estiverem envolvidos e superarem as travas burocráticas.
 
Neste último aspecto, sua exposição foi de extrema vivacidade. Dirigindo-se a Ernesto Samper, o ex-presidente da Colômbia, que está na secretaria-geral da Unasul, enumerou uma série de exemplos concretos de travas burocráticas de todo tipo que impediram, em múltiplos casos que detalhou, a execução prática das decisões adotadas pelos presidentes do bloco. Os exemplos que expôs foram conclusivos e trouxeram o assunto para a realidade.
 
O comentário geral é que as palavras do líder do Partido dos Trabalhadores fortaleceram as bases estabelecidas pelos que originalmente impulsionaram o órgão regional, os presidentes Néstor Kircher, da Argentina, e Hugo Chávez, da Venezuela, aos quais Lula fez menção especial. Ressaltou, neste sentido, que a integração não é o problema, mas parte da solução; que os avanços alcançados nessa matéria nos últimos anos foram muitos, mas que ainda há muito por fazer nesse terreno.
 
Uma das principais conquistas do processo integracionista é que, em apenas 10 anos, o comércio dentro do Mercado Comum do Sul (Mercosul) passou de 15 bilhões de dólares para 66 bilhões de dólares. Nesse mesmo período, o intercâmbio comercial entre todos os países latino-americanos e caribenhos passou de 50 bilhões de dólares para 189 bilhões. Acrescentou que esses avanços na integração foram além das relações comerciais, porque agora os empresários de nossos países aprenderam a investir em países vizinhos, e não apenas vender e comprar.
 
Outra conquista muito significativa do bloco, integrado por Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela consiste na criação do Conselho Sul-americano de Defesa. “Com tais medidas, impensáveis para muitos, marcamos um território de soberania, de diálogo e de paz em nosso continente”, disse Lula. Também indicou o imediato funcionamento da Escola de Defesa Sul-americana.
 
No âmbito da política integracionista, ressaltou a criação da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) como um espaço de cooperação democrática e sem a presença dos Estados Unidos e do Canadá. “Agora somos 33 países com mesma vontade de construir nossos sonhos e possibilidades”, disse, relembrando que nada disso seria possível sem a chegada de governos progressistas ao poder na Venezuela, na Bolívia, no Equador, no Brasil, Uruguai, Argentina, El Salvador, Nicarágua, entre outros países.
 
Considerou também que os avanços integracionistas não estão à altura do potencial da região. Defendeu também aproveitar de forma conjunta sua enorme riqueza hídrica, por integrar a rede de gasodutos e oleodutos e as cadeias produtivas por aumentar a conectividade via banda larga e por colocar em funcionamento o Banco do Sul. Neste último aspecto, insistiu também o chanceler equatoriano Ricardo Patiño, que expressou que é urgente abrir e colocar o Banco do Sul para funcionar.
 
A jornada de painéis e conferências em Guayaquil, que incluiu a fala de Lula, fez parte da inauguração oficial da nova sede da Unasul, no dia seguinte, em Quito. A esse respeito, Lula manifestou que “a inauguração da nova e permanente sede da Unasul representa um passo extraordinário para concretizar o sonho de integração de nossos povos e países” e parabenizou o presidente equatoriano Rafael Correa por ser um dos principais apoiadores deste projeto, de modo que “Quito se transforme na capital da integração”. Lembrou como Kirchner e Chávez contribuíram de forma ativa para o processo de integração. “Líderes de origem de países diferentes mostraram espírito de fraternidade e compromisso com o desenvolvimento e emancipação dos povos da América Latina e do Caribe. Foram personagens fundamentais no processo de criação da Unasul, o fortalecimento do Mercosul e a constituição da Celac”.
 
Defendeu que atualmente os países da América Latina estão construindo um projeto alternativo ao neoliberalismo baseado na democracia, no diálogo e na busca por formas mais justas de desenvolvimento. Em sua opinião, “a crise econômica mundial tem um efeito inibidor sobre as iniciativas de integração. Como se tivéssemos que esperar para voltar a tratar da integração. Estou convencido de que é exatamente o contrário. Quanto mais nos integrarmos, melhores serão as condições de enfrentar e superar a crise. Separados somos mais fracos e juntos somos uma potência”.
 
Fez referência especial à paz a partir do diálogo pela paz entre o governo a Colômbia e as Farc realizado há dois anos em Havana, que esteve interrompido e que felizmente já foi retomado após a libertação do general Alzate e de seus acompanhantes. Lula afirmou: “Estou convencido de que os inimigos da paz na Colômbia serão derrotados. A paz será alcançada!”. E depois de ressaltar os êxitos dos governos das forças de esquerda em vários países da América do Sul, fez um chamado à consolidação da região como “continente de paz”.
 
Em suas palavras: “Este continente, desprezado por tanto tempo, será o continente onde a paz prevalecerá”.
 
O “fogo de dentro” de Pepe Mujica
 
Ao receber a presidência pro tempore da Unasul em nome do Uruguai, Pepe Mujica fez um discurso fora de série, que deu a volta ao mundo nos últimos dias. Não apenas por seu conteúdo, mas por seu tom, caracterizado por sua marca pessoal, seu estilo direto e reto, sua honestidade, seu profundo humanismo, seu amor às pessoas. Ele se emocionou diante da homenagem prestada pelo presidente Correa e foi ovacionado por todo o auditório lotado. Mas também emocionou os que o ouviram em todo o mundo. É uma figura da oratória que ficará para a história. A Telesur contribuiu de maneira significativa para que adquirisse ampla repercussão internacional. Eu pude escutá-lo integralmente por essa emissora, assim como o mencionado discurso de Lula.
 
O presidente Correa elogiou Mujica nestes termos: “Quando caminha entre as pessoas quase sem escolta ou segurança, quando a fome aperta e você procura um pão na primeira porta que encontrar aberta, quando renega as circunstância que não se pode mudar, quando ajuda na madrugada a arrumar o teto do seu vizinho, quando ri dos protocolos, quando leva Manuela nos braços, seu cachorro de estimação que não tem uma patinha e se esgueira entre os tapetes vermelhos, teu povo te reconhece e se identifica contigo. Tem razão ao dizer que viver melhor não é ter mais, mas ser mais feliz. Obrigado por teu exemplo”. E em outro momento: “Quando as gerações vindouras olharem o passado buscando explicações para seu presente, indubitavelmente vão encontrar seu nome. Você disse que o hoje nasceu das sementes férteis de ontem, e nós te dizemos que amanhã crescerá a semente fértil que você está semeando neste presente”. Correa também o chamou de “ícone da pátria grande” e como um “presidente filósofo”, acrescentando que “queria ter sua juventude, porque para além das idades, a juventude é um estado da alma”. Concluiu: “Em nome dos 15 milhões de equatorianos e em nome das centenas de milhares de latino-americanos, queremos te agradecer e te reconhecer”.
 
A resposta de Mujica foi um exemplo de humildade e coerência: “Sou um camponês meio atravessado e o único mérito que tenho é ser um pouco teimoso, duro, basco, persistente e constante. Não sou um fenômeno e na verdade, os anos que passei na cadeia foram porque me faltou velocidade. Não tenho vocação para herói”. E introduziu sua autodefinição: “Tenho sim um fogo dentro de mim diante da injustiça social. Aquele fogo que tive em minha juventude é o que nos permitiu chegar até hoje”. Disse também que “há uma só juventude, e é aquela com que somos capazes de nos comprometer”.
 
Dirigindo-se aos jovens, recomendou “lutar para dar significado à vida”. Nestes termos: “Não desperdicem porque não podem comprar a vida no supermercado. O importante é caminho” porque no final da vida “não há um gol, nem um arco do triunfo, nem odaliscas, nem paraíso. O que há é a beleza de viver no auge e de querer a vida. Lutem para vivê-la, para dar significado à vida”.
 
Ao receber a presidência pro tempore da Unasul, Mujica sinalizou a favor da unidade latino-americana. Pediu que os governos da região “se preocupassem com as pessoas” por ter sintonia com eles porque “a política não pode ser conduzida pelo mercado”. Falou de governos “críveis e comprometidos” que possam concretizar “a tão esperada união latino-americana”. Mas advertiu que “haverá integração somente se houver vontade política, o que depende do compromisso de todos, porque os obstáculos do mundo são enorme e o passado continua nos apertando”. Insistiu que “se não entendermos a necessidade de nos unir, ganharão o jogo e perderemos uma nova oportunidade irrecuperável”. A integração precisa ser “construída e é preciso se sobrepor às dificuldades que cada Estado tem em particular. Devemos aprender com o passado, das derrotas, das prisões, da dívida social que a América Latina tem”. Pediu “resgate no mundo duas coisas: a paz e a dignidade da política. É preciso gritar forte: não à corrupção!”.
 
A sede da Unasul terá o nome do presidente argentino Néstor Kirchner, que exerceu a presidência do órgão criado em 2008 até seu falecimento, em 27 de outubro de 2010.
 
Depois destes acontecimentos, o presidente Mujica viajou para o México, visitou Cancún (que ratificou uma irmanação com Punta del Este) e Guadalajara, e participou da Cúpula Ibero-americana em Veracruz, Simultaneamente, revelou a “Carta Aberta ao povo uruguaio e a Barack Obama”. Este documento foi motivado pelo fato de que se anunciou a chegada iminente no Uruguai de seis pessoas que passaram vários anos detidas na prisão de Guantánamo, território cubano usurpado pelos Estados Unidos desde o início do século passado. Trata-se de um cidadão palestino, quatro sírios e um tunisiano.
 
A carta aberta de Mujica começa com uma frase do poeta chileno Pablo Neruda: “La solidaridad es la ternura de los pueblos'” (A solidariedade é a ternura dos povos), escrita quando se empreendia a imensa tarefa de evacuar, socorrer e abrigar dezenas de milhares de republicanos espanhóis após a tragédia da guerra civil em 1939. O presidente lembrou a tradição do Uruguai pacífico e pacificador e seu papel na criação de instrumentos internacionais para a paz. Agora, recorrendo a essa vocação, e por razões humanitárias inevitáveis, o Uruguai oferece hospitalidade a seres humanos que sofriam uma clausura atroz em Guantánamo. A carta destaca o apoio dado aos refugiados de outros países, valorizando sua solidariedade e a mão estendida de outros povos aos uruguaios na época da ditadura.
 
Mujica projeta estes fatos na realidade atual internacional, e formula um pedido duplo ao presidente Barack Obama: o fim do bloqueio ao país irmão Cuba, imposto há mais de meio século, e a libertação dos três lutadores antiterroristas cubanos Antonio Guerrero, Ramón Labañino e Gerardo Hernández, que continuam presos nos Estados Unidos há 16 anos. Solicitou a libertação do lutador independentista porto-riquenho Oscar López Rivera, preso político nos Estados Unidos há mais de trinta anos. “'Estamos seguros – conclui – de que estas demandas insatisfeitas abrirão amplas avenidas para o processo de paz, entendimento, progresso e bem-estar para todos os povos que habitam aquela região crucial da Nossa América”.
 
Os 10 anos da Alba
 
Nesta resenha de fatos e órgãos que cimentam o processo de unidade da América Latina, convém mencionar a celebração dos 10 anos da criação da Alba (Alternativa Bolivariana dos Povos de Nossa América) que aconteceu na sexta-feira passada (5) na Sala Maggiolo da Universidade da República. Participaram os representantes diplomáticos da Bolívia, Benjamín Blanco; de Cuba, Igor Azcuy; de Equador, Emilio Izquierdo; de Nicarágua (leitura de uma mensagem do embaixador Mauricio Gelli) e da Venezuela, Julio Chirino. Como se sabe, integram o órgão também uma série de ilhas caribenhas: Antígua e Barbuda, Dominica, Santa Lucía, São Vicente e Granadinas. Os embaixadores dos cinco países mencionados ressaltaram o grande trabalho realizado pela Alba a favor da unidade e da integração da América e da solidariedade e cooperação entre seus povos ao longo desta década transcorrida.
Créditos da foto: Sec. de Comunicación - Presidencia Uruguay / Flickr

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