Presidente da Mendes Jr, Murilo Mendes recorreu ao ex-Ministro Miguel Reali Jr para calar os alertas sobre as jogadas jurídicas
Em novembro de 2002, a juíza Érika Soares de Azevedo Mascarenhas me condenou a três meses de prisão. O motivo foi uma nota no pé de uma coluna, de poucas linhas, em que dizia que chegara ao fim “uma das mais atrevidas aventuras contra os cofres públicos”.
Tratava-se de uma indenização pleiteada pela Mendes Junior contra a Chesf (Centrais Elétricas do São Francisco) por atrasos no pagamento de obras nos anos 80.
A juíza considerou que o termo “atrevida aventura” era injurioso.
Sua sentença gerou manifestações de críticas de dois Ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) – Gilmar Mendes e Marco Aurélio de Mello.
O caso foi para Segunda Instância. A 12a Câmara do Tribunal de Alçada Criminal a reformou, mas não por maioria. Um dos juízes endossou a posição da colega. Os que absolveram alegaram que houve “simples descuido do jornalista e não a intenção de ofender a honra alheia”. Ou seja, mesmo os que absolveram endossaram a tese de que as palavras foram mal escolhidas.
Esta semana o STJ (Superior Tribunal de Justiça) finalmente encerrou a ação, dando ganho de causa para a Chesf.
A indenização pleiteada era de R$ 20 trilhões (não é engano: são trilhões mesmo) (
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O motivo eram atrasos alegados na contratação da Usina Hidrelétrica de Itaparica, em Pernambuco.
“Aventura jurídica” foi um eufemismo: era um escândalo graúdo, conforme relatei em coluna de 3 de dezembro de 2002 (
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No início dos anos 1980 a Mendes Junior conseguiu a obra sem licitação. Pelo contrato, os atrasados seriam corrigidos pela ORTN (Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional) mais 1% ao mês.
Houve atrasos e a Chesf se propôs a corrigir os atrasados, de acordo com o estipulado em contrato – que estipulava carência de 15 dias para o cálculo da incidência da correção monetária sobre os atrasos e de 30 dias para o vencimento de faturas com correção monetária.
Houve a disputa política e em 19 de maio de 1987 a Chesf abriu mão das exigências e quitou os atrasados sem as carências estipuladas em contrato. Estava-se, então, em pleno governo José Sarney, de quem Murilo Mendes – o presidente da empreiteira – era amigo íntimo.
A grande aventura
A valores de 31 de agosto de 1994 – segundo estudos da Chesf – a Mendes Junior tinha recebido R$ 5 milhões a mais do que teria em caixa, caso tivesse aplicado no mercado financeiro.
Àquela altura, sem obras públicas, algumas grandes empreiteiras tinham se transformado em máquinas das ações mais improváveis contra a União. Era o caso da Mendes Junior e da CR Almeida.
Foi quando Murilo Mendes articulou a mais atrevida aventura contra os cofres públicos. Os atrasos já haviam sido quitados, em situação melhor ainda do que previsto em contrato. Mas ele passou a defender a tese de que o índice de correção deveria ser as taxas do “hot money” – os empréstimos de curtíssimo prazo do mercado financeiro, a taxas escorchantes.
Mais que isso: o prazo de correção não tinha fim, prosseguia indefinidamente, não se esgotando no momento em que os atrasados foram quitados
Procurou alguns advogados em São Paulo que se dispusessem a endossar aquela maluquice. Pelo menos um – com quem conversei – recusou, taxando a operação de “aventura”.
Era um golpe, sim, porque – conforme anotei na matéria – nenhum empresário aceitaria pegar dinheiro no hot money para financiar obras públicas. No máximo, usaria dinheiro do seu próprio caixa. E se fosse do próprio caixa, o indexador deveria ser a ORTN ou taxas de aplicação do mercado.
Mesmo assim, a Mendes Júnior entrou com a ação. Em fins dos anos 90, o valor pleiteado batia os R$ 160 bilhões. A empresa conseguiu vitórias sucessivas em tribunais pernambucanos e caminhava para concretizar o golpe quando a Chesf contratou o advogado José Paulo Cavalcanti.
Na coluna, alertei: “Se não quiser comprovar que pegou dinheiro no mercado para aplicar na obra, será um ato de temeridade da Justiça dar ganho de causa à Mendes Júnior, assim como será da Chesf se aceitar propor um acordo para a companhia. Significaria abrir as portas do Tesouro para uma fila interminável de credores do governo, que se considerarão no direito de esquecer os contratos firmados e escolher o indexador que quiser para as dívidas em atraso, sem a necessidade de comprovar nada”.
A ação já estava no STJ quando Cavalcanti levantou a tese óbvia: se a Mendes Junior quer correção pelo hot money, que prove que tomou crédito emprestado na época, pelo hot money.
Foi nesse momento que anunciei, no pé de uma coluna, o fim da “mais atrevida aventura jurídica”.
Reali Junior entra na parada
Foi quando Murilo Mendes decidiu entrar com a ação. Contratou um parecer do criminalista e ex-Ministro da Justiça Miguel Reali Júnior e entrou com a ação por crime contra a honra.
Creio que a intenção não fosse obter a condenação. O que Murilo Mendes pretendia era me calar, para poder aplicar a parte final da estratégia, que consistia em oferecer os direitos futuros à indenização para dívidas que tinha em bancos públicos – especialmente o BRB de Brasília.
A ação caiu com a juíza Érika Soares, culminando com a pena de prisão.
Tentei entender as razões da juíza. Liguei para um desembargador conhecido e ele se mostrou surpreso com a sentença. Disse que a juíza era uma boa moça, filha de um dono de cartório de Sorocaba.
Por coincidência, por aqueles dias encontrei duas fontes – um empresário ligado ao Secovi e o então deputado federal José Genoíno – que me lembraram uma batalha que me empenhei alguns anos antes, para impedir que fosse aprovada uma lei concedendo vitaliciedade aos donos de cartório.
Assim que a condenação foi anunciado, telefonei para Miguel Reali Jr dando-lhes os parabéns pelo fato de ter obtido minha primeira condenação. Lembrei que ele fora Ministro da Justiça, que tinha o sobrenome de um dos construtores do país e, mesmo assim, não se envergonhava de calar um jornalista que pretendia apenas impedir um assalto contra os cofres públicos.
De qualquer modo, a ação me impediu de prosseguir com as matérias. A pedido do Otávio Frias Filho encaminhei todo o material para o repórter Frederico Vasconcellos, com informações sobre o uso dos improváveis direitos futuros da ação em financiamentos do BRB e do BNDES. Mas o tema não interessou o Fred.
No caso do BNDES, era uma garantia suplementar, portanto não haveria danos; no caso do BRB, parece que era a única garantia.
Com a imprensa calada, nem sei o fim dessas garantias.
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