A Guerra (Portugal)

Nesta guerra, como em todas as guerras, a vida não é fundamento nem fonte de legitimidade. É uma variável dependente da “vontade dos mercados”.



Hugo Ferreira - no ESQUERDA-NET

Nesta guerra o exército não ocupou as ruas. As bombas não chegaram a explodir. As munições não receberam ordens de nenhum gatilho. Os prédios e as casas estavam em ruínas não pela impetuosidade dos tanques, mas pelo abandono forçado dos seus habitantes. O chefe de estado não falou na TV em horário nobre declarando guerra ao inimigo nem explicou as razões da resistência coletiva para mobilizar a sua gente. Não temeu ser capturado pelas forças invasoras e, por isso, não fugiu do país numa tentativa desesperada de manter a soberania nacional. Recebeu, pelo contrário, com vénia e honras de estado os invasores. Vestiu o melhor fato, requisitou o melhor vinho nacional e serviu caninamente a hierarquia militar do inimigo. Entregou os destinos da sua gente à vontade dos ocupantes e não pestanejou quando lhe disseram que alguns dos seus melhores concidadãos teriam o cadafalso como morada final. Fê-lo, diria mais tarde, “pelo supremo interesse nacional” e com o mais “genuíno sentido de responsabilidade”.

Nesta guerra não se fez a contabilização dos mortos. “A morte pode ser uma oportunidade”, disse um dia o primeiro-ministro do país ocupado. Os que tiveram de abandonar o seu país para fugir da pobreza, da penúria, da vida cinzenta sem horizonte, enfim, os que tiverem de deixar a sua terra em consequência desta guerra, não obtiveram o estatuto de refugiados e exilados. Chamou-se-lhes eufemisticamente emigrantes e da emigração também se disse que, “sendo uma oportunidade”, “serviria o supremo interesse nacional”.
Nesta guerra, como em todas as guerras na história dos povos, os soldados do inimigo, enquanto esventravam a minha gente, faziam a apologia da “vida” e da sua “dignidade”. A morte além da oportunidade que representava para quem já nada tinha a perder, era também, naquele contexto, uma “inevitabilidade” para que o “supremo interesse nacional” se efetivasse. Os mercenários, como é da sua natureza, eram constantemente elogiados pelas forças invasoras e ocupavam os Ministérios. Os carcereiros não estavam em nenhum estabelecimento penitenciário a trabalhar e a liberdade dos prisioneiros que privavam não era física. Comentavam o dia-a-dia da guerra em horário nobre nas TVs e sempre que alguém se insurgisse contra a guerra, os ocupantes e os mercenários colaboradores desqualificavam-no publicamente e, se necessário, detinham preventivamente os seus pensamentos.
Nesta guerra, como em todas as guerras, a vida não é fundamento nem fonte de legitimidade. É uma variável dependente da “vontade dos mercados”. Quem quer a paz, ainda que apenas uma paz de cemitério, não reza o terço, não lê o Alcorão, não vai ao Vaticano ver o Papa nem a Meca: vai a Wall Street beijar a mão aos discípulos da escola de Chicago.
Nesta guerra, como em todas a guerras, o inimigo tenta dividir as forças adversárias. Apesar de se sentir capaz de aniquilá-las definitivamente, prefere enfraquecê-las até que as vítimas, de braços caídos, aceitem irreversivelmente a sua dominação. Separa-as e cria artificialmente rivalidades entre elas, alimenta preconceitos e invejas. Joga-as umas contra as outras. E enquanto o povo dominado se degladia numa autêntica guerra civil, gastando entre si energias tão úteis para tentar derrotar as forças ocupantes, estas colocam-se num pedestal, assumem nada ter a ver com o conflito entretanto iniciado, e justificam todos os seus atos criminosos de guerra com a “incapacidade crónica do povo ocupado se governar”.
Nesta guerra, como em todas as guerras, quem luta pela sua gente fá-lo sem medo do arsenal bélico inimigo. Não teme a apatia que a crueldade do inimigo gera no seu povo. Não luta pela glória, mas pela história. A sua história. Uma história de “paz, pão, saúde educação, habitação”, onde o soberano, o que “mais ordena”, se agiganta diante do mais cruel dos ocupantes e defende o que é seu, o que a sua luta de décadas lhe garantiu como direito inviolável. Chora as suas vítimas, cuida dos seus feridos, faz regressar todos os seus exilados e refugidos e, aconteça o que acontecer, não se rende. Nunca se rende.

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Jurista

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