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Assombrada por quatro perigos, a missão da nova Comissão Europeia pode ser mais difícil do que a anterior
Europa
Barroso, Junker, Cameron e Merkel: a missão da nova Comissão Europeia pode ser mais difícil que a anterior
Depois de dois mandatos conturbados, uma década praticamente perdida para a UE, o presidente da Comissão Europeia José Manuel Durão Barroso passa o cargo ao luxemburguês Jean-Claude Juncker em 1º de novembro. Criticado por falta de liderança e submissão ao Conselho Europeu de chefes de governo (leia-se Angela Merkel, que impôs Juncker para sucedê-lo), defendeu-se dizendo que são dos governos e não da Comissão os poderes para movimentar bilhões de euros e que “a Alemanha, gostemos ou não, tem um plano: o problema da UE é que outros não têm”.

Barroso terá razões para invejar o sucessor? Parece pensar que não. Entrevistado pelo jornal espanhol El País na última semana no cargo, advertiu: “Não posso dizer, ninguém pode dizer quando vai acabar a crise” e citou quatro ameaças para o próximo mandato: réplicas do terremoto financeiro, saída do Reino Unido, extremismos e separatismos.
Em julho, viu-se a inesperada falência do maior e mais moderno grupo empresarial e financeiro português, o Espírito Santo, que exigiu o resgate e a estatização do banco pelo governo ao custo de 4,9 bilhões de euros. Não há de ser o último caso do gênero. No domingo 26, o Banco Central Europeu anunciou que 25 dos 130 maiores bancos europeus, que passam à sua jurisdição fiscal em 4 de novembro, foram reprovados no teste de estresse aplicado no fim de 2013: nove italianos, três gregos, três cipriotas, dois belgas, dois eslovenos e um de cada um dos seguintes países: França, Alemanha, Áustria, Irlanda, Espanha  e Portugal. Os critérios estiveram longe de ser exageradamente severos. Foi testada a resistência dos bancos a dois anos de recessão, o que ante os indicadores dos últimos meses começa a parecer uma previsão realista.
Segundo o BCE, o déficit de capital total foi de 25 bilhões de euros. Doze desses bancos conseguiram levantar 15 bilhões e cobriram suas necessidades. Faltam 13, dos quais quatro são italianos e dois gregos. O italiano Monte dei Paschi di Siena, o mais antigo do mundo, e o grego Eurobank precisam de 2 bilhões e 1,8 bilhão de euros, respectivamente. Esses 13 têm duas semanas para apresentar um plano de recapitalização e nove meses para executá-lo. Pode ser tarde demais, mesmo se todas as instituições foram honestas quanto à sua situação. Como mostra a história recente, nem sempre é o caso de grupos financeiros em dificuldades. Em 2011, um exame semelhante conduzido pela Autoridade Bancária Europeia, embora reprovasse alguns bancos menores, não detectou os problemas dos bancos espanhóis Bankia, Novagalicia, CatalunyaCaixa e Banco de Valencia, falidos em maio do ano seguinte e resgatados e estatizados a um custo de 37 bilhões de euros.
A saída do Reino Unido é uma possibilidade desde 2012, quando a UE impôs novas regras financeiras que reduziram as vantagens da desregulamentação britânica e as ameaças de David Cameron de deixar a organização tiveram como resposta uma versão diplomática de “a porta da rua é serventia da casa”. Em 2013, o primeiro-ministro prometeu um referendo sobre a permanência na UE em 2017, caso os conservadores vençam as eleições de 2015 e continuem no governo. Pretendeu evitar a sangria de eleitores para o Ukip (sigla em inglês de “Partido da Independência do Reino Unido”), mas o partido xenófobo teve 27,5% dos votos nas eleições do Parlamento Europeu de 2014, assumiu a liderança do bloco eurocético em Estrasburgo e tornou-se o terceiro na preferência dos eleitores, desbancando o multissecular Partido Liberal. Em junho, ao se opor à eleição de Juncker para a Comissão Europeia, Londres isolou-se e sofreu uma derrota humilhante: 26 votos a 2. Apenas o governo de direita populista da Hungria o apoiou.
O mais recente enfrentamento resulta de uma revisão nas estatísticas econômicas dos países membros que passou a incluir no PIB o narcotráfico, o contrabando, a prostituição e outros setores da “economia informal” e contabilizar como “investimento” os gastos com armas e com pesquisa e desenvolvimento. A medida foi apoiada por vários países, inclusive o Reino Unido, para inflar o PIB e assim reduzir os índices de endividamento e déficit público, aumentar a margem para gastos e apresentar uma economia maquiada às agências de classificação de risco. O resultado, anunciado em 17 de outubro, foi uma elevação média de 3,7% no PIB europeu. A Holanda, como era de se esperar, foi agraciada com um aumento estatístico de 7,6% e o Reino Unido também ganhou um acréscimo acima da média, 4,9%.
Útil para engambelar analistas e melhorar a classificação das economias no contexto mundial, a manipulação estatística teve a consequência real de alterar a contribuição desses países para a UE, proporcional aos PIBs. Era previsível, mas na sexta-feira 24 o primeiro-ministro britânico se disse chocado e indignado ao receber a conta. O Reino Unido tem de pagar 2,1 bilhões de euros a mais até 1º de dezembro, a Alemanha faz jus a uma devolução de 1 bilhão e a França (aliás, contrária à revisão), a 800 milhões. Cameron prometeu não pagar, arriscando-se a uma multa de 2%, mais 0,25% ao mês. Recebeu uma discreta solidariedade da Holanda (chamada a pagar mais 600 milhões) e da Itália (mais 300 milhões), mas foi criticado em público pela primeira-ministra dinamarquesa, Helle Thorning-Schmidt.
Pressionados pelo populismo de direita a rejeitar cada vez mais regulamentos europeus e mesmo o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, os conservadores tendem a endurecer as críticas a Bruxelas e à imigração para tomar um caminho que pode se tornar irreversível se não for cortado por uma vitória trabalhista em 2015. As pesquisas mais recentes apontam um empate entre o “sim” e o “não” à permanência na Europa. Os “eurocéticos” têm a seu favor o fato de que o Reino Unido é hoje uma das economias menos estagnadas da UE. Mas é também uma das mais endividadas e aquela onde a desigualdade atinge níveis mais extremos, com uma taxa de pobreza superior à média europeia e inferior apenas às dos países menos desenvolvidos ou mais abalados pela crise do Sul e Leste do continente. Eleitores conservadores preferem culpar a imigração, inclusive de europeus, e ignorar que a ruptura com o continente significaria perda de movimento financeiro e comercial e até da utilidade do Reino Unido como aliado preferencial dos EUA e da Comunidade Britânica.
O Ukip, vale notar, pertence à vertente “moderada” da xenofobia. O bloco que lidera no Parlamento Europeu, “Europa da Liberdade e da Democracia Direta”, tem como principais aliados o “Movimento Cinco Estrelas” do italiano Beppe Grillo e os “Democratas Suecos” e pode ser descrito como um “extremismo de centro” em sua insistência ao culpar “os políticos”, “os imigrantes”, o euro e “os burocratas de Bruxelas”, não necessariamente nessa ordem, sem propor uma visão clara de política e sociedade. Os movimentos separatistas, fortes na Escócia, Flandres, Catalunha e País Basco e latentes em algumas outras regiões, preferem culpar em primeiro lugar seus respectivos governos centrais e em geral alinham-se a correntes tradicionais de centro-direita ou esquerda e não são hostis à UE, mas contribuem para o clima de incerteza e instabilidade ao amea-
çarem as fragilizadas instituições políticas e econômicas de países-chave como a Espanha e a Bélgica.
Bem mais à direita, embora tentem normalizar a imagem, estão a Frente Nacional francesa, a Liga Norte italiana, os “Partidos da Liberdade” holandês e austríaco, e mesmo o partido Fidesz hoje no governo da Hungria. Os que não disfarçam o caráter neofascista incluem o partido grego Aurora Dourada, o húngaro Jobbik e o Partido Nacional-Democrático alemão, todos com representação em Estrasburgo. Para que continuem a crescer, não é realmente preciso uma nova rodada de crises. Basta a continuação do atual clima de desemprego, estagnação e desesperança para completar a criação de uma geração de extremistas e desesperados.
Incapaz de desafiar a hegemonia conservadora, o centro-esquerda dilui propostas e perde bases tradicionais sem conquistar as elites. O Partido Socialista Francês lidera hoje um dos governos mais impopulares da Europa (ao lado do espanhol), enquanto o primeiro-ministro Manuel Valls quer abolir a expressão “socialismo” do nome e programa do partido. O governo do Partido Democrático italiano de Matteo Renzi começou em clima de otimismo após os fracassos de Silvio Berlusconi e Mario Monti, mas sua popularidade despencou nas últimas semanas com a proposta de flexibilização trabalhista, recebida com um dos maiores protestos sindicais dos últimos anos, embora tenha contribuído para a aprovação do Orçamento pela UE. Os partidos social-democratas dinamarquês e sueco tiveram vitórias recentes, mas o tradicional PSOE espanhol, abandonado pelos eleitores, caiu para terceiro lugar na preferência geral e o Pasok grego foi relegado ao segundo plano da política.
Nesses dois últimos países, vias mais à esquerda ganham popularidade. Na Grécia, o Syriza de Alexis Tsipras, antes da crise uma pequena aliança de organizações de esquerda comparável ao PSOL brasileiro, tornou-se a segunda força e o favorito para a próxima eleição, marcada para junho de 2016. Na Espanha, é ainda mais surpreendente a súbita ascensão do partido Podemos. Criado em janeiro a partir do movimento dos Indignados de 2011 e liderado pelo professor Pablo Iglesias, foi o quarto mais votado para o Parlamento Europeu em maio, com 8%, fez uma “assembleia cidadã” com 7 mil pessoas em 18 e 19 de outubro e hoje é o segundo na preferência dos eleitores espanhóis, com mais de 24%. Acusados de “bolivarianos” pelo centro-esquerda, esses partidos e similares menos bem-sucedidos (como a Frente de Esquerda francesa) querem auditoria da dívida pública, reversão das reformas neoliberais da previdência e das leis trabalhistas, e uma UE muito diferente da atual, com controle político do BCE. É tão difícil imaginar a coexistência de um país governado por um desses partidos com Merkel e Juncker quanto continuar a manter tais agendas à margem do debate.


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