Saul Leblon: A peça decisiva do quebra-cabeça brasileiro
Articulações em marcha, entre centrais e autoridades econômicas, para evitar um ciclo de demissões no setor automobilístico, sinalizam uma avenida a percorrer.
O quebra-cabeça brasileiro inclui uma peça-chave cuja movimento no tabuleiro pode mudar o desfecho do jogo.
O nome dessa peça é repactuação política do desenvolvimento.
Seus atores são os movimentos sociais organizados, as centrais sindicais, as entidades empresariais --sobretudo as da indústria, e o governo.
Articulações em marcha, ainda restritas a sondagens entre centrais e autoridades econômicas, para evitar um ciclo de demissões no setor automobilístico, sinalizam uma avenida a percorrer.
O nome dessa peça é repactuação política do desenvolvimento.
Seus atores são os movimentos sociais organizados, as centrais sindicais, as entidades empresariais --sobretudo as da indústria, e o governo.
Articulações em marcha, ainda restritas a sondagens entre centrais e autoridades econômicas, para evitar um ciclo de demissões no setor automobilístico, sinalizam uma avenida a percorrer.
Se é possível negociar metas, concessões, salvaguardas para barrar o desemprego, por que não o seria também, em um fórum ampliado, para reordenar a velocidade, a destinação, as condicionalidades e garantias de um novo ciclo de desenvolvimento?
Estamos falando de uma lógica alternativa a dos centuriões do mercado que se avocam o apanágio ‘técnico’ para agendar quem pagará a conta do ajuste necessário à retomada do crescimento.
Insista-se: macroeconomia não tem ideologia.
Responsabilidade fiscal, controle da inflação e câmbio competitivo não distinguem a coloração de um projeto histórico.
São obrigações de qualquer governante; interessam a toda a sociedade.
Mas desenvolvimento é outra coisa.
Desenvolvimento é transformação.
É romper estruturas anacrônicas e construir outras novas, ao mesmo tempo e com igual intensidade. Quase como atravessar um rio de dupla correnteza, uma puxando para cada lado.
Quem acha que pode haver ‘solução técnica’ para essa travessia, açoitada por ventos e tempestades em litígio, acredita em ‘mãos invisíveis’ a costurar a sociedade humana.
A mão dos mercados autorreguláveis, por exemplo, cujos porta-vozes alardeiam as virtudes do desenvolvimento a salvo de um protagonismo social que o conduza.
Mais que nunca o Brasil necessita de um protagonista social capaz de pavimentar o passo seguinte do seu desenvolvimento.
Não é apenas a mudança no calendário a registrar um novo governo Dilma.
É mais que isso.
Vive-se, grosso modo, um interregno entre dois ciclos.
Um, que parece ter se completado com a consolidação de políticas sociais e salariais, que remodelaram a dinâmica da cidadania e do consumo em largas fronteiras da América Latina.
Em graus distintos, esse estirão foi favorecido pelo afrouxamento do gargalo externo, marcado por uma década de forte alta nos preços das commodities.
Atenção porém: não há automatismos na história.
O Brasil já cresceu antes, mais até do que no período recente, sem distribuir renda; ao contrário, concentrando-a à base de arrocho salarial e repressão política.
A história latino-americana registra outros ciclos de valorização de produtos primários sem uma contrapartida social equivalente a atual.
O que se fez no Brasil e na AL nos últimos anos, portanto, foi uma ação política deliberada.
Subtraiu-se espaço da ‘mão invisível’ para destinar um pedaço da riqueza corrente ao resgate mínimo da exclusão secular, aprofundada pela hegemonia livre mercadista dos anos 90.
O fôlego dessa indução enfrenta agora o ar rarefeito da estagnação planetária escavada pela desordem neoliberal.
Um descompasso entre aspirações histórias e fluxos de receitas está em curso.
O Brasil depende de investimentos pesados que liguem o impulso original do consumo a uma inadiável adequação da oferta e da logística à escala ampliada da demanda e das expectativas sociais.
É imperativo regenerar a musculatura de sua base industrial.
Não por qualquer fetiche ‘desenvolvimentista’; reside aí a principal usina de irradiação de produtividade de que a economia necessita para lastrear novos saltos em direitos, cidadania, empregos qualidade e soberania externa.
O desafio histórico consiste em erguer os pilares dessa transição num ambiente internacional que deixou de favorecê-lo.
Sem a participação ativa da sociedade nessa travessia, a lógica neoliberal ocupará o vácuo para empurrar sua ‘agenda técnica’ goela abaixo da nação.
Em que direção?
A do afável México, talvez.
Já tivemos paradigmas em melhor situação: cerca de 2/3 dos 2.500 municípios mexicanos estão dominados por gangues sanguinárias do circuito drogas/crimes.
O México foi o único país da América Latina, ao lado da pequena Honduras, que registrou aumento da pobreza e da miséria na década passada.
É verdade: o ‘ajuste técnico’ de sua economia conseguiu a elevar a produtividade mexicana num ritmo duas vezes superior à correção dos salários, a partir de 2005.
O país é hoje o segundo maior fornecedor de carros para os EUA (à frente do Japão, abaixo do Canadá).
É o maior exportador de TVs de tela plana do mundo, informa a agencia Bloomberg nesta 5ª feira (27/11).
A que preço?
Ao preço de alguns ‘colaterais’, diz um estudo do insuspeito Bank of América citado pela mesma Bloomberg.
A saber:
a) o salário mínimo mexicano perdeu 70% do poder de compra real nas últimas décadas (o do Brasil cresceu 70% acima da inflação desde 2003);
b) as exportações mexicanas cresceram uma média de 7% por ano desde 2001; mas as vendas no mercado interno aumentaram apenas 2% em média no período ( contra 5% da média brasileira);
c) O ganho médio do assalariado mexicano cresceu 0,6% em termos reais na década terminada em 2012 (no Brasil foi duas vezes maior, diz a OIT).
Esse, o farol do ajuste ‘técnico’ que muitos apregoam para a economia brasileira no segundo governo Dilma.
Se hesitar ou se acanhar, se renunciar, enfim, ao papel indutor do desenvolvimento, o movimento social brasileiro deixará aberto o espaço para ser conduzido por essa coleira, ao invés de conduzir o timão da sociedade.
Dilma é a fiadora inconteste das urnas. Mas o que as urnas disseram em 26 de outubro não pode silenciar.
A repactuação política do desenvolvimento não se confunde com a ingerência burocrática no dia a dia da gestão do Estado.
Sua agenda deriva de princípios que distinguem a construção de uma sociedade convergente, da receita conservadora através da qual a riqueza talvez cresça até mais depressa. Mas em estruturas circulares de desigualdade e marginalização crescentes.
Três diretrizes são indissociáveis da luta por uma repactuação do desenvolvimento que preserve a construção de uma democracia social, ainda que tardia, no Brasil:
a) buscar o pleno emprego e rechaçar qualquer ‘ajuste técnico’ que se proponha a ‘pavimentar’ um novo ciclo com base em demissões e descarte de trabalhadores;
b) buscar políticas de renda (reforma tributária), de salários (ganho real) e de serviços públicos –educação de qualidade, mas também saúde e mobilidade-- que fixem metas e prazos para a redução da desigualdade brutal vigente no país; não se trata apenas de definir um piso à pobreza, mas de galgar novos degraus para longe dela;
c) maior democracia participativa para ampliar os canais de decisão econômica e de expressão política dos interesses majoritários da sociedade.
Qualquer repactuação histórica implica concessões e modulações de metas e prazos, desde que não violentem as balizas do objetivo mais geral.
O objetivo estratégico do movimento social brasileiro é construir uma resposta política para a crise, a contrapelo da receita ortodoxa.
A desordem financeira mundial não cederá tão cedo, nem tão facilmente.
A consciência dessa contingencia histórica é um dado fundamental para a ação política nos dias que correm.
Recuos e derrotas acumulados pela esquerda mundial desde os anos 70, sobretudo a colonização de seu arcabouço programático pelos valores e interditos neoliberais, alargaram os vertedouros para o espraiamento de uma dominância financeira, cuja presença tornou-se ubíqua em todas as esferas da economia e do imaginário social.
O arcabouço institucional que cedeu a soberania das urnas ao suposto poder autorregulador dos mercados perdeu a capacidade de gerar antídotos às degenerações intrínsecas a essa renúncia.
A democracia terá que reinventar-se para que essa possibilidade se recoloque no horizonte da ação política do nosso tempo.
A luta pela repactuação do desenvolvimento brasileiro é um pequeno passo nessa direção.
Mas pode definir uma grande mudança de rumo na construção do Brasil.
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