O ciclo político mudou. E a esquerda, olímpica?


Saul Leblon
na Carta Maior

A história não bate à porta, nem reserva espaço na agenda das nações.
Independente da moderação progressista nos últimos 12 anos, as grandes
questões do poder de classe estão de volta à cena política brasileira.
Sempre estiveram presentes.
Mas a trégua propiciada pela fartura do ciclo recente de alta das commodities
tingia de pardo todos os gatos.

O governo progressista não errou em aproveitar a relação de trocas favorável dos
últimos anos para ativar políticas e investimentos que mudaram a fronteira da
produção e do consumo.
A narrativa conservadora sempre desdenhou da dinâmica vigorosa embutida nesse
degelo social. Mas o fato é que se criou uma gigantesca dissonância à receita de
um Brasil pensado para 30% da população.
Ela impôs a quarta, exasperante e sucessiva derrota presidencial ao
conservadorismo em 26 de outubro.
Não é pouco.
Reconhecer os novos aceleradores sociais do desenvolvimento não implica negar os
gargalos prevalecentes e outros adicionados pela longa crise capitalista que agora
desafia a resistência brasileira à restauração neoliberal no mundo.
Ambos são reais.
Mas a coexistência de um Brasil urgente, vital e encorajador com uma estrutura de
comunicação anacrônica, monopolista e golpista desequilibra e constrange as
vozes que precisam ser ouvidas nessa encruzilhada da história.
A travessia não se completará de forma emancipadora se a mídia persistir como
um poder ubíquo, dotado de meios hegemônicos e recursos leoninos para mediar a
conversa do Brasil com ele mesmo.
A distorção não ocorre por acaso.
O monocromatismo dos tempos de bonança iludiu alguns e desarmou outros.
O que era conjuntural foi adotado como perene e desdobrado em leniência
organizativa, política e midiática.
Corações e mentes foram atrofiados para o embate que um dia afrontaria
violentamente a mutação social em curso
O dia chegou.
Não porque as pupilas dilatadas de Aécio sejam mais carismáticas que a morbidez
facial de Serra. Não porque Alckmin tenha adicionado algo a sua empatia de
azulejo branco de banheiro.
Eles são o que sempre foram.
Estão onde sempre estiveram.
A diferença que enseja a crispação nas ruas, nas manchetes e no parlamento
reflete o esgotamento de um ciclo econômico, e a vitória progressista no primeiro
round de definição do próximo.
O que eles pretendem?
Não dar tempo ao Brasil para conversar sobre o seu presente e repactuar o seu
futuro.
Assim: transformando o segundo mandato de Dilma em um frango desossado da
Sadia, servido em pedaços inversamente proporcionais à métrica das urnas.
O peito farto, por favor, ali aos senhores rentistas.
Coxa e sobrecoxa suculentas a quem não aguenta mais pagar o ‘custo Brasil’;
inclua-se no intolerável o salário mínimo das domésticas.
Ao povaréu genericamente classificado de ‘nordestino-dependente’, que como tal
votou no provedor, cumpre lambiscar a carne de pescoço.
Em vão o TSE notifica o açougue de cortes finos com os números de um país
marmorizado por conflitos mais complexos do que o mapa ‘geográfico/cultural’
retalhado no cepo de Higienópolis.
Os números oficiais mostram uma votação em Dilma mais equilibrada
nacionalmente do que aquela atribuída ao rival conservador.
Fatos.
No Sul e no Sudeste ‘ricos’, o tucano Aécio Neves teve uma supremacia
contabilizada em 35,5 milhões de votos.
Mas, para a surpresa dos analistas de bico longo, Dilma somou nas duas regiões
26,6 milhões de eleitores. Gente ‘bem informada’ que dobrou a aposta na
democracia social que se tenta construir no país.
Receptividade equivalente não teve o candidato dos mercados no Nordeste: num
reduto onde Dilma enfileirou 20 milhões de votos, Aécio arregimentou oito milhões
de adesões; não venceu em nenhum estado.
Dilma, ao contrário, ganhou no Rio de Janeiro e Minas, que como se sabe
pertencem ao Brasil ‘fino e ilustrado’. No berço político do rival mineiro o fez com
certa ênfase pedagógica: abriu cinco pontos de vantagem, ganhou em 71% dos
municípios, em 8 das 12 regiões econômicas e impôs ao tucano a perda do governo
do estado para o PT. Sem requerer o esforço de um segundo turno.
Portanto, se a dinâmica macroeconômica esgotou a fase alegre dos consensos, a
verdade é que o aguçamento dos conflitos que se prenuncia obedece a uma lógica
cada vez mais transversal à geografia.
Ao jogral do Brasil aos cacos não apetece a contabilidade nua e crua de um conflito
entre privilegiados e aspirantes à cidadania pena.
Sua preferência é engessar o novo mandato de Dilma para que o próprio governo
cumpra a profecia da rejeição nacional desmentida pelas urnas.
Que fazer?
Transformar a Dilma ‘gerentona’ em um Obama cool, afogado em tibieza e
concessões até ser eviscerado nas urnas, como o democrata o foi nesta 4ª feira?
Ou aceitar o jogo de um confronto exclamativo –sem contrapartida crível na
melhoria da vida cotidiana-- que entregará de bandeja a classe média e o
empresariado ao palanque do desgoverno e da volta da ordem?
Não há receitas a seguir.
A história de cada povo não é um artigo exportável.
Uma nação é um futuro em aberto revestido das suas circunstancias.
Quem ergue as pontes entre uma margem e outra é o poder e o consentimento
adquiridos no xadrez da correlação de forças.
Conflitos latejantes como os vividos no país não constituem exceção. São eles que
movem a história.
É importante aprender com ela.
Mais que aconselhável: é imperativo não ignorar suas lições.
Na história recente latino-americana não há episódio mais dilacerante e
pedagógico de tentativa de construção de uma democracia social do que aquele
que culminou com o golpe de Estado contra Salvador Allende, no Chile de 1973.
Repita-se: a história do Brasil não é a do Chile; Dilma não é Allende; 2014 não é
1973; o PSDB não é a Democracia Cristã. O PT não é e não pensa como o Partido
Socialista chileno dos anos 70.
Mas referências que se imaginavam calcificadas para sempre ecoam de novo sua
pertinência como um pontão avançado do futuro que nos desafia.
Hesitar diante desse debate significa endossar uma interdição histórica que tornará
ornamental a bandeira da construção de uma verdadeira democracia social no país.
Se a escolha não for pela resignação é preciso dar consequência a ela.
A mais urgente passeia aos nossos olhos.
Ao transbordar de forma beligerante da derrota eleitoral para as ruas e a mídia, a
ofensiva conservadora evidenciou a inexistência de uma base popular minimamente
organizada para defender não apenas os avanços e conquistas dos últimos anos,
como o próprio resultado das urnas.
‘Não endossamos os que defendem a volta dos militares’, dizem pavões tucanos;
‘mas queremos recontagem de votos e sufocaremos mandato de Dilma entre o
denuncismo midiático, a especulação financeira e o impeachment político’.
Um golpe não começa na véspera.
Seu preâmbulo pode durar meses, anos.
Das refregas colhidas em diferentes tentativas de se transitar para uma sociedade
mais justa na América Latina, o massacre da experiência democrática chilena reúne
essa dupla chave para refletir sobre os dias que correm no Brasil: assimetria entre
organização política e transformações econômicas; e negligência diante dos sinais
emitidos pela crispação conservadora.
O custo é sabido.
Em 11 de setembro de 1973, o então comandante das Forças Armadas do Chile,
general Augusto Pinochet, calafetou as duas lacunas a ferro e fogo.
Desde então a construção da democracia social na América Latina passou a figurar
no discurso progressista como a margem distante de um rio desprovido de pontes
e embarcações de acesso.
A transição deixou de ser obra coletiva organizada para se tornar um apanágio da
correnteza do mercado.
Muitos, durante muito tempo, dentro e fora do PT, consideraram essa como uma
‘não-questão’; que tudo se resolveria no piloto automático do economicismo, com
avanços incrementais que se propagariam mecanicamente pela correlação de forças
da sociedade.
Pode ser parcialmente verdade em tempos de céu de brigadeiro na economia.
Mas não é mais assim e não será assim no segundo governo Dilma. A longa
convalescença da crise mundial não aponta para um alvorecer promissor a curto
prazo.
Qual é a disposição progressista para se unir, resistir à fritura e avançar?
Não se discute aqui a composição imediata do governo Dilma, que certamente fará
concessões graúdas na tentativa de obter algum chão firme que lhe devolva o
poder de iniciativa nos dias que correm.
O que se discute é a capacidade progressista de se reinventar na disputa pela


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