O despertar para as inquietações poéticas
JONNE RORIZ/ESTADÃO CONTEÚDO
Manoel de Barros |
As visões do poeta, aparentemente oníricas, logo se revelam reais
Por Ana Elvira Luciano Gebara
Na Carta Capital Educação
Por ter nascido em 1916, Manoel de Barros pertence à geração de 45. No entanto, para além da cronologia, ele é também “mutilador da realidade e pesquisador de expressões e significados verbais”. Presente no site da Fundação Manoel de Barros, essa característica explica boa parte da obra do poeta que, em seus versos, busca ampliar os instantes e os espaços da vida. O tema principal de sua obra parece materializar o conselho de Tolstoi: “Se queres ser universal, começa por pintar a sua aldeia”. Nequinho, como era chamado na infância, trata de gente, de bicho, de árvores, de pedra e de palavras.
Diante desse quadro de experimentação do eu-lírico, seria possível pensar que há uma divisão significativa entre a obra de Barros para adultos e para crianças. Uma teria um caráter mais complexo e a outra, menor mobilização dos recursos linguísticos e temáticos. Essa, porém, não é a realidade. Como José Paulo Paes, cuja concepção de poesia para crianças era “igual poesia para adultos, só que mais difícil”, Barros não faz concessões e propõe inquietações.
A indagação como reflexão
O que se se distingue por vezes nos livros
infantis é apresentar o poema com perguntas, como se mimetizasse da infância os porquês, como em Exercício de Ser Criança, do livro de mesmo título (1999):
No aeroporto o menino perguntou:
– E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
– E se o avião tropicar num passarinho triste?
Essas perguntas, típicas da idade, são um recurso do poeta para abalar o caráter mecânico do olhar que aplicamos no mundo. As interrogações “e se” deslocam posicionamentos e certezas, introduzindo a dúvida razoável e a necessidade de respostas – indício de que os adultos compreendem a pergunta como pertinente. Já os leitores-mirins as veem como uma fala deles espelhada nos versos – ponto de identificação e de entrada para a compreensão do poema. Que outras perguntas fariam esses leitores?
Para os alunos da Educação Infantil, fazer uma lista de perguntas sobre os eventos mais comuns do cotidiano seria uma forma de conhecer suas inquietações sobre o mundo. No mesmo poema, a situação se desenvolve em reflexões que a mãe do menino propõe para si e, talvez, para o pai:
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.
De forma diversa, o poema apresenta duas faces de um mesmo processo: as interrogações como possibilidade de agir e pensar o mundo. O menino pergunta sobre possibilidades (e se) e a mãe indaga com uma forma verbal (será) que aponta para o futuro, para a desconstrução de uma perspectiva para a construção de outra. Desses dois modos de ver o mundo, o da possibilidade e o do deslocamento, nasce a certeza do pai: a criança tem poder para ensinar. A criança, fonte de saberes, é uma das representações que o poeta traz para sua poesia. Como será que os alunos veem isso? Quais imagens fazem desse menino?
O tema do fazer poético
Em O Menino Que Carregava Água na Peneira, o menino sintetiza o que é ser poeta e como se dá o fazer poético, uma imagem do que é poesia.
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando ponto no final da frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino cria e recria a realidade, expandindo seus limites pela palavra. Com os alunos do Ensino Fundamental I, é possível criar lugares e situações a que a palavra pode levá-los. Perguntar do que seriam capazes de escrever seria um começo para desenvolver imagens como as dos versos.
Recursos poéticos
Nos poemas de Barros, os recursos mais frequentemente associados ao poético estão ausentes, pois seus poemas não têm rimas e apresentam poucas aliterações e assonâncias (repetições de sons vocálicos e consonantais respectivamente). O que traz a poeticidade aos versos são as criações lexicais, como é possível observar em O Fazedor de Amanhecer, do livro de mesmo título (2001):
Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
“Tratagens” e “desapetite” são palavras pouco utilizadas, pois existem outras para a mesma função, como “sou leso ao lidar com máquinas” ou “não tenho disposição ou vontade de inventar coisas prestáveis”. A primeira sugere o cruzamento vocabular entre tratamento e engrenagem, indicando que o eu-lírico não domina a linguagem das máquinas. Já “desapetite” apresenta a vontade de fazer algo como um apetite que se tem e que torna os atos uma necessidade tão vital quanto o alimento para o corpo. Cada criança tem experiência em criação neológica pela experimentação da língua no processo de aquisição. Nesse caso, seria tornar esse processo um jogo em que as escolhas dos alunos seriam explícitas e não fruto do acaso.
Quando o poeta não faz eclodir um neologismo no poema, desloca as palavras, criando novos sentidos, como ocorre em Cantigas por Um Passarinho À Toa (2003):
Do alto de uma figueira
Onde pouso para dormir
Posso ver os vaga-lumes:
São milhares de pingos de luz
Que tentam cobrir o escuro.
Na primeira estrofe, os vaga-lumes passam de insetos a pingos de luz. A metáfora envolve a pintura: os pingos de luz estão pintando o céu em uma ação sempre precária pela inconstância (acende – apaga).
Tudo o que os livros me ensinassem
Os espinheiros já me ensinaram.
Tudo que nos livros
Eu aprendesse
Nas fontes eu aprendera.
O saber não vem das fontes?
Na quinta estrofe, utiliza-se o processo neológico semântico. Trata-se do deslocamento relacionado à palavra “fontes”, cujo significado foi do concreto (nascente de água) para o abstrato (origem), e recebe uma sobreposição de sentidos. Na pergunta do verso final, o eu-lírico entrelaça esses dois significados, projetando um novo sentido para a origem do conhecimento.
As metáforas são formas de apropriação do mundo. Os alunos do Fundamental I podem elaborar um baú ou varal de metáforas, explicando o mundo à moda deles.
Além da imagem criadora dos meninos-poetas, surge, nos versos, a imagem múltipla das línguas.
Não sinto o mesmo gosto nas palavras:
Oiseaux e pássaro.
Embora elas tenham o mesmo sentido.
Será pelo gosto que vem da mãe? de língua mãe?
(....)
Penso que a palavra pássaro carrega até hoje
Nela o menino que ia de tarde pra
Debaixo das árvores a ouvir os pássaros.
Nas folhas daquelas árvores não tinha oiseaux
Só tinha pássaros.
É o que me ocorre sobre língua mãe.
No poema A Língua Mãe, de O Fazedor de Amanhecer, assim como ocorreu com a palavra “fontes”, o eu-lírico alia sentidos enquanto a mãe que nutre promove, no eu, sensações (o gustativo – ter gosto) e propensões (o valorativo – apreciação) da língua. Essa reflexão de como os significados são construídos pelos eventos que vivenciamos torna-se um modo de construirmos o mundo.
Além da língua mãe, nos versos do poeta há também língua de ave e de criança. São línguas afloradas naquelas pessoas capazes de ensinar que os limites ainda não foram definitivamente colocados, como nos versos de Poeminha em língua de brincar (2007):
Ele tinha no rosto um de ave extraviada
Falava em língua de ave e de criança.
A língua desse menino dispensava pensamento, o que contraria as concepções epistemológicas, em que pensamento e linguagem têm uma relação constitutiva. Mas isso era possível:
Sentia mais prazer de brincar com as palavras
Do que pensar com elas.
Dispensava pensar.
Essa língua vista de fora pela “Dona de nome Lógica da Razão” que fala:
Isso é língua de brincar e é idiotice de criança
(....)
Isso é língua de raiz – continuou
É língua de faz de conta
É língua de brincar!
São muitas línguas e caminhos abertos na poesia de Barros para se trabalhar com o fazer poético e a descoberta do poder desse fazer.
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Ana Elvira Luciano Gebara é professora da área de Língua Portuguesa na Universidade Cruzeiro do Sul e Direito GV.
Publicado na edição 58, de maio de 2014
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