Ligação direta entre Hisbolá e PCC é improvável, dizem especialistas
Facção brasileira receberia armas em troca de proteção de detentos libaneses na Tríplice Fronteira. Suposta parceria investigada pela PF não teria fins terroristas, mas busca de favores na cena criminal local.
Exército brasileiro faz o controle de passagem de veículos na Tríplice Fronteira, em Foz do Iguaçu, no Paraná
DW Brasil
A suposta ligação existente entre o grupo radical xiita libanês Hisbolá e a facção criminosa brasileira PCC (Primeiro Comando da Capital) é pouco provável, mas deve ser motivo de alerta, segundo especialistas ouvidos pela DW Brasil.
Uma reportagem do jornal O Globo, baseada em investigações da Polícia Federal (PF), mostra que libaneses que operavam o narcotráfico na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai facilitavam o contrabando de armas do exterior, enquanto o PCC dava proteção a muçulmanos presos em cadeias brasileiras.
Apesar de não haver uma comprovação sobre as informações, a possível parceria pode incrementar a infraestrutura do crime organizado no Brasil, projetam os analistas. A Polícia Federal não quis se pronunciar sobre o assunto.
"Não é inteligente manter esses dois tipos de criminosos em contato. Eles são muito diferentes e pode haver uma contaminação. Não se trata de uma parceria estratégica com um alvo em comum, mas de uma colaboração tática de sobrevivência", avalia o professor Alberto Pfeifer, membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP.
Segundo O Globo, a investigação da PF identificou a participação de libaneses na negociação de um explosivo plástico C4, que tinha sido roubado no Paraguai. "Os libaneses em atividade criminosa, apesar de terem no tráfico de cocaína seu principal foco de atividades, também atuariam no tráfico de armas para grupos criminosos de São Paulo", diz o documento.
Para o advogado criminalista Antonio Baptista Gonçalves,uma possível ligação entre PCC e Hisbolá não está relacionada ao terrorismo, mas à troca de interesses e conhecimentos. O grupo libanês, que possui uma ala política e uma paramilitar, é considerado uma organização terrorista por países como Estados Unidos e Reino Unido.
"O Hisbolá tem um acesso maior a armamentos. O PCC poderia oferecer uma estrutura para um ataque terrorista, mas o Brasil não é um alvo do Hisbolá", explica.
EUA e a tríplice fronteira
O Brasil começou a investigar uma possível ligação entre quadrilhas libanesas e facções criminosas do país em 2006. Os Estados Unidos apontaram a participação de libaneses que vivem na Tríplice Fronteira no comércio ilegal de drogas e no financiamento de ações terroristas.
O último relatório sobre terrorismo no mundo, elaborado pelo governo americano em 2013, aponta que a região da Tríplice Fronteira é um ponto de ligação entre o tráfico de armas e pessoas, narcotráfico, contrabando de mercadorias, falsificação e lavagem de dinheiro. "Todos esses elementos são fontes de recursos em potencial para organizações terroristas", diz o estudo.
Em 2006, o Departamento do Tesouro dos EUA acusou nove integrantes da comunidade muçulmana na fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai de participar de uma rede de financiamento para o Hisbolá. O esquema teria sido montado pelo libanês Assad Ahmad Barakat, preso em 2002 em Foz do Iguaçu, no Paraná.
"Não há uma documentação que comprove a conexão estabelecida pelos Estados Unidos. As informações se baseiam em especulação", diz Luis Fernando Ayerbe, membro do Programa San Tiago Dantas de Relações Internacionais da Unesp, Unicamp e PUC/SP. "É temerário vincular assuntos de polícia a ações terroristas e, também, a uma agenda política."
A preocupação dos EUA com a Tríplice Fronteira começou em 1992, quando um atentado terrorista atribuído ao Hisbolá matou 29 pessoas na Embaixada de Israel em Buenos Aires. Dois anos depois, mais de 80 pessoas foram mortas em um ataque contra uma associação judaica na capital argentina.
Mesmo pressionado, o governo brasileiro sempre negou a existência de provas sobre a atuação de grupos terroristas na Tríplice Fronteira. "O governo brasileiro entende que o Hisbolá é um partido político que integra a coalizão governamental libanesa", afirmou em nota o Itamaraty, reiterando que condena o terrorismo, "quaisquer que sejam as filiações dos perpetradores do ato."
Para Marcos Alan Ferreira, professor de Relações Internacionais da UFPB, a grande questão que preocupa a Casa Branca é a remessa de dinheiro de pessoas ligadas ao Hisbolá para o Líbano. "Para o governo americano, significa um financiamento do terrorismo, mas para o Brasil, não. Acaba havendo um dilema político", explica.
Ferreira, que estudou a política de segurança dos EUA e a Tríplice Fronteira no pós 11 de Setembro, entrevistou autoridades americanas sobre o posicionamento do Planalto. "Eles diziam que o governo brasileiro é um grande entrave para o combate ao terrorismo na região, por causa dessa visão diferente em relação ao Hisbolá", conta.
Segundo o especialista, é difícil concluir se a relação de libaneses com o narcotráfico é uma política de todo o Hisbolá ou de apenas alguns indivíduos relacionados ao partido. Nos anos 2000, apesar de a PF descobrir o envolvimento de pessoas de origem sírio-libanesa em operações de apreensão de drogas, não foi possível estabelecer uma conexão entre elas e o Hisbolá.
"Além disso, os cidadãos de origem libanesa que vivem na região são muito diversos. Muitos são ligados ao Hisbolá e não têm qualquer tipo de relação com a criminalidade", explica.
Imigração
O Hisbolá surgiu em 1982 como uma milícia para resistir à ocupação israelense durante a guerra civil. Depois, tornou-se um partido político. A maioria dos imigrantes libaneses que estão em Foz do Iguaçu, na Tríplice Fronteira, é de muçulmanos xiitas do sul do Líbano, que deixaram o país nessa época.
Para Ferreira, o interesse do Hisbolá na América Latina se restringe à comunidade libanesa que vive em peso nessa região.
"A preocupação maior é o financiamento, tendo em vista que, com a guerra civil na Síria, é mais difícil obter dinheiro a partir do ramo sírio do Hisbolá. É preciso buscar outras possibilidades", afirma. "Não há interesse no sentido de realizar um ataque terrorista."
Um professor de uma universidade renomada no Líbano, que não quis ser identificado, afirma que existe uma visão generalista quanto ao financiamento do Hisbolá.
"A maior parte dos que estão no sul e mandam dinheiro para o Líbano enviam para familiares. Um libanês envolvido com o terrorismo ou com o narcotráfico não integra necessariamente o Hisbolá. Não é da ideologia do partido fazer essa relação. A maioria dos xiitas que estão no Brasil não é vinculada a partidos políticos", explica, reiterando que o grupo islâmico não tem um interesse político na América Latina.
O professor pontua que, além de ter o lado da milícia, o Hisbolá tem uma atuação social importante: "É claro que há adeptos da ala militar, mas a maior parte simpatiza com a área social do partido, que mantém escolas, orfanatos e hospitais, por exemplo, com dinheiro de imigrantes."
O comerciante libanês Abbas Nagib Termos, naturalizado no Paraguai, viveu em Foz do Iguaçu entre o final da década de 80 e a metade dos anos 90. Assim como a maioria dos libaneses que vivem em Foz do Iguaçu, Termos viajava todos os dias para Ciudad del Este, no Paraguai, para vender produtos eletrônicos.
Em meio à guerra civil, ele deixou o Líbano em busca de melhores condições de vida. "Era jovem e vi que muitos libaneses estavam ganhando dinheiro no Brasil. Decidi ir trabalhar", lembra.
De volta ao Líbano, ele continua a ajudar o Hisbolá, assim como muitas famílias xiitas da Tríplice Fronteira. "Atuo na parte social. Eu gosto, ajudo e sou próximo de chefes do partido, mas não sou político."
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