Dilma pode escolher: ser Francisco ou Bergóglio?
Editorial da Carta Maior
Saul Leblon
A incerteza que antecede as definições do segundo governo
Dilma mantem o
Brasil em suspenso à direita e à esquerda.
Mercados financeiros giram feito barata tonta ao sabor dos
mais desencontrados
boatos.
Vendidos suplicam por um boato baixista; comprados dão a
vida por uma puxada
nas cotações. Ganha-se na diferença diária entre um zunzum e
outro.
Especulações sobre o comando da economia oscilam entre o
tudo e o nada, muito
pelo contrário.
Há lastro.
É evidente a dúvida e a divergência nos círculos da própria
Presidenta e do PT:
como negociar sem regredir e, sobretudo, com preservar
margem para avançar?
A hipótese de se reeditar o modelo ‘Lula 1.0’, ortodoxo na
condução da economia,
heterodoxo no fortalecimento ancorado em expansão de
salários, emprego e
políticas sociais tromba na história.
O quadro de bonança externa que permitiu a relação
acomodatícia entre interesses
conflitantes não existe mais.
O ciclo acabou na crise de 2008, que levou ao ‘Lula 2.0’ e ao
primeiro Dilma, de
recortes mais heterodoxos (Leia a análise de Tarso Genro;
nesta pág).
Não apenas isso.
O estreitamento da margem de manobra na economia não
encontra qualquer
compensação no ambiente político.
Dilma sai inequivocamente vitoriosa de uma disputa
histórica, marcada pelo
confronto feroz entre projetos distintos de país, em meio a
uma transição de ciclo
econômico global.
A derrota da restauração neoliberal nas urnas brasileiras
não encerra o confronto
que permanece em aberto em todo o mundo.
Por isso é ilusório imaginar que o terceiro turno desta vez
cederá tão cedo ou em
troca de pouco.
Não cederá.
A percepção dessa rigidez adiciona tensões imagináveis na
atormentada busca de
uma ordenação do próximo governo.
Como honrar a vitória nas urnas e exercer a iniciativa na
esfera econômica e
social, sem ser emparedado pela roleta do mercado financeiro
aqui e lá fora?
O ‘salvacionismo da rendição’ ganha força à medida em que as
escolhas giram em
falso no relógio do tempo político.
Aqui e ali ouvem-se apelos extremados para Dilma ‘resolver
logo’.
O que?
Tudo.
‘Tudo o que o mercado quer’.
Em vão imagina-se que assim haverá a trégua que o comunicado
oficial da vitória
na noite de 26 de outubro não ensejou.
Setores do PT antigamente identificados com aquilo que se
convencionou chamar
de ‘paloccismo, que vem a ser o neoliberalismo de estrela na
lapela, vendem a
ilusão de um apaziguamento.
Em 2006 venderam a Lula a fraude de que se dissesse ‘fui
traído’, as capas de
‘Veja’ sobre o dito ‘mensalão’ refluiriam.
O que se deu é sabido.
Dilma sabe que não dá para atender ao apetite pantagruélico
e ao mesmo tempo
cumprir as obrigações da urna.
Que fazer?
É aconselhável, em primeiro lugar, olhar em volta.
Quem recomenda é o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, em
entrevista desta
semana a Carta Maior (assista nesta pág.).
A desordem no capitalismo internacional é tão grave que o
seu principal bunker
financeiro, o FMI, converge rapidamente para se transformar
em defensor de
incentivos fiscais e do investimento público, aqui
demonizados pelos bravos
rapazes e moças do jornalismo isento.
Até autoridades da zona do euro, arrasada pelo fracasso
desse oximoro, a
‘contração expansiva’, ensaiam mudança de tom.
A busca do impossível –crescer e arrochar— faz água por
todas as latitudes.
Ou não será essa impossibilidade metafísica que ordena o ziguezagueante
discurso do G-20, reunido na distante Austrália?
Oxímoros -- contradições em seus próprios termos-- refletem
o esgotamento de
uma agenda.
Aquela que levou o mundo a transitar da longa convalescença
de 2008 direto para
uma era de estagnação.
O ‘novo normal’, a perder de vista, sob os timoneiros do
arrocho, compõe um
cotidiano em que nada se move.
Exceto as curvas da desigualdade, o empoçamento do capital
fictício, o fastígio
dos paraísos fiscais e a fuga da juventude desempregada para
lugar nenhum.
Os dados estão carimbados no rosto de pedra dos
participantes do G 20: 75
milhões de jovens nunca encontrarão trabalho em sua vida; o
estoque do
desemprego mundial requer a criação de 200 milhões de vagas.
Mas a Europa
continua a despejar gente na rua, enquanto nos EUA cresce o
emprego precário e o
rendimento da classe média hiberna há 15 anos.
Que arranjo ministerial é o mais indicado para enfrentar o
terceiro turno do
conservadorismo no Brasil, enquanto se espera um alvorecer
da longa noite
neoliberal?
Trazer o conflito para dentro do governo é uma forma de rachar
a frente derrotada
em 26 de outubro.
A que custo, porém, sob o chicote do juro alto e do emprego
declinante?
Outra hipótese é reformar a bicicleta da correlação de
forças pedalando o mais
depressa possível para longe da macroeconomia da recessão:
baixar juro, usar o
dinheiro economizado para obras, coordenar o câmbio,
exportar, investir e
contratar.
O jogral conservador diz que é o caminho para a morte súbita
do governo Dilma.
É melhor morrer em fogo lento? Degrau por degrau na ladeira
do desemprego, da
erosão salarial e do desacorçoo, até o enterro solene em
2018?
Não há escolha fácil num mundo difícil, assoalhado de chão
mole por todos os
lados.
Mas a história não é uma ciência exata; por mais que o
mercado lhe sonegue esse
predicado ela muda sob a ação dos homens e de suas
circunstâncias.
Mudanças no exercício do poder podem alterar as
circunstancias e tornar possível o
impossível.
Um exemplo meramente ilustrativo?
O Papa.
Nos últimos dias, o Papa Francisco foi elogiado por duas
estrelas incontestáveis da
constelação progressista latino-americana: sua conterrânea
argentina, Estela
Carloto, líder do movimento das Abuelas de Mayo, que ele
recebeu no Vaticano e
a seu neto recém localizado; e o brasileiro Pedro Stedile, o
indobrável dirigente do
MST, um dos convidados do Encontro Mundial de Movimentos
Populares,
patrocinado pelo Papa, no final do outubro.
A receptividade do anfitrião impressionou o marxista
Stédile.
‘O Papa deu uma grande contribuição (ao encontro), com um
documento
irrepreensível, mais à esquerda do que muitos de nós; em
2.000 anos, nenhum
Papa jamais organizou uma reunião desse tipo com movimentos
sociais’, atestou
Stédile.
Antes de afrontar dois mil anos de história, o sucessor de
Bento XVI --o
doutrinário conservador Ratzinger, que renunciou em
fevereiro de 2013--, já havia
impressionado uns e surpreendido outros ao deflagrar uma
devassa nos círculos de
poder santo.
Sem cerimonia, Francisco afastou chefões acusados de abusos
sexuais; criou
comissões investigativas para devassar as sacristias do
poder; abateu corruptos
abrigados em batinas purpuras; degredou veneráveis
incrustrados na burocracia do
Banco do Vaticano, de laços conhecidos com o crime
organizado italiano.
Nesta 4ª feira, outras vozes da esquerda regional rasgaram
elogios ao Papa por
uma nova decisão corajosa.
Francisco determinou que o Vaticano abra seus arquivos
secretos quando isso for
do interesse das investigações sobre desaparecidos políticos
durante a ditadura
militar argentina.
Uma reforma jurídica do Estado do Vaticano foi determinada
pelo Papa para
legalizar essa ruptura.
Sua orientação atinge a ultraconservadora hierarquia do
catolicismo argentino.
Ela já começou a colaborar com as Abuelas de Mayo, na
localização de filhos de
desaparecidos políticos, vítimas da ditadura que entre 1976
a 1983 matou cerca
de 30 mil argentinos.
A decisão de abrir os arquivos da Igreja tem um significado
político especial para o
Papa Francisco.
Quando o nome do Cardeal Arcebispo de Buenos Aires, Jorge
Mario Bergoglio, 76
anos, foi consagrado em março de 2013 pelo Concílio romano,
a reação
predominante na esquerda latino-americana – inclua-se nisso
Carta Maior—foi de
desalento e apreensão.
O 265° Papa de Roma, o primeiro latino-americano a ocupar o
trono de Pedro,
não oferecia motivos para comemorações.
A própria Estela Carloto desabafou na época que o sucessor
do Papa Bento XVI
fazia parte da “Igreja que escureceu o país” durante a
ditadura.
‘É verdade, não sentimos muita alegria com a sua eleição;
nunca tínhamos ouvido
Bergoglio fazer menção aos desaparecidos, nem dar qualquer
apoio à busca pelas
nossas crianças’, admitiu ela após o encontro efusivo no
Vaticano, onde fez uma
autocrítica cercada de elogio ao renascido conterrâneo.
Não apenas omissão. A principal acusação contra o bispo
Bergoglio era de
cumplicidade.
Ele poderia, mas nunca facilitou, por exemplo, a reunião das
abuelas desesperadas
com o Papa.
O primeiro encontro delas com o Sumo Pontífice, em 1980,
deu-se no Brasil e só
aconteceu por interferência de religiosos brasileiros.
No livro “El Silencio”, o premiado jornalista argentino,
Horacio Verbitsky, recolheu
depoimentos e reconstituições que lançam sombras ainda mais
densas sobre o
passado do cardeal Bergoglio.
Sabe-se, por exemplo, que no dia em que a ‘fumata bianca’ do
Vaticano anunciou o
‘habemus papam’ e em seguida emergiu a figura do cardeal
argentino no balcão ,
Graciela Yorio esmurrou as paredes de seu apartamento, a
11.200 quilômetros de
distância, em Buenos Aires.
O relato foi estampado nos jornais argentinos e também na
Folha de S. Paulo.
A revolta deve-se a uma certeza guardada há 36 anos na
memória dessa
sexagenária.
Em maio de 1976, seu irmão, padre Orlando Yorio, foi
delatado à ditadura sedenta
e recém-instalada, juntamente com o sacerdote Francisco
Jalics, que hoje mora na
Alemanha.
Os dois religiosos ficaram cinco meses nas mãos dos
militares. Incomunicáveis, na
temível Escola Mecânica da Marinha, adaptada para ser a
máquina de moer ossos
do regime.
Por omissão ou conivência ativa, atribui-se ao então cardeal
Bergoglio — então
com cerca de 40 anos, líder conservador dos jesuítas
argentinos—um pedaço da
responsabilidade por essas prisões.
Essa é a convicção de Graciela, baseada no que ouviu do
irmão, falecido em 2000,
militante da Teologia da Libertação como Jalics, que se diz
reconciliado com
Francisco.
Não faltaram vozes progressistas a rejeitar esse enredo
macabro, dando
testemunho da retidão discreta do conservador Bergóglio sob
o terror militar.
A corajosa abertura dos arquivos do Vaticano agora poderá
dar-lhe o salvo conduto
definitivo afastando sua biografia da sombra desse período.
Mas o fato é que Bergóglio já se reinventou sob o manto de
Francisco. Hoje, figura
como uma referência sintomática do vento novo que sopra na
contracorrente da
decadência neoliberal no mundo.
O que teria sido do Papa se mantivesse em Roma a ambiguidade
discreta do seu
cardinalato na Argentina?
Seria maculado pela reprovação silenciosa de muitos; seria
uma figura irrelevante
na desordem mundial; seria um pequeno conservador na cena
extremada de um
mundo em busca de nova identidade e de um ciclo renovador
para o
desenvolvimento, a vida e a espiritualidade.
Seriam, enfim, tudo o que Francisco decidiu não ser e não é.
O que sobra disso para a pasmaceira de um Brasil que oscila
entre um Meirelles ou
um Tombini na Fazenda?
Sobra a lição da inexcedível capacidade humana para se
reinventar nas amarras
das circunstâncias, alterando-as no processo, mesmo sem
ignorá-las.
Sobra a hipótese de Dilma vestir o manto da Presidência e
poder escolher entre ser
Bergóglio ou Francisco.
Sobra o espaço das escolhas na história.
Não fosse assim ela não seria história, mas fatalidade.
Leia, abaixo, trechos do ilustrativo discurso do Papa
Francisco, em 27 de outubro,
na recepção aos participantes do Encontro Mundial de
Movimentos Populares, no
Vaticano:
‘Obrigado por terem aceitado este convite para debater
tantos graves problemas
sociais que afligem o mundo hoje (...). Os pobres não só
padecem a injustiça, mas
também lutam contra ela! Não se contentam com promessas
ilusórias, desculpas
ou pretextos. Também não estão esperando de braços cruzados
a ajuda de ONGs,
planos assistenciais ou soluções que nunca chegam ou, se
chegam, chegam de
maneira que vão em uma direção ou de anestesiar ou de
domesticar’
‘( solidariedade) é pensar e agir em termos de comunidade,
de prioridade de vida
de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É
enfrentar os
destrutivos efeitos do Império do dinheiro: os deslocamentos
forçados, as
migrações dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a
guerra, a violência e todas
essas realidades que muitos de vocês sofrem e que todos
somos chamados a
transformar. A solidariedade, entendida em seu sentido mais
profundo, é um modo
de fazer história, e é isso que os movimentos populares
fazem’.
‘Queremos que se ouça a sua voz, que, em geral, se escuta
pouco. Talvez porque
incomoda, talvez porque o seu grito incomoda, talvez porque
se tem medo da
mudança que vocês reivindicam, mas, sem a sua presença, sem
ir realmente às
periferias, as boas propostas e projetos que frequentemente
ouvimos nas
conferências internacionais ficam no reino da ideia’
‘Não é possível abordar o escândalo da pobreza promovendo
estratégias de
contenção que unicamente tranquilizem e convertam os pobres
em seres
domesticados e inofensivos.
‘Este encontro nosso responde a um anseio muito concreto,
algo que qualquer pai,
qualquer mãe quer para os seus filhos; um anseio que deveria
estar ao alcance de
todos, mas que hoje vemos com tristeza cada vez mais longe
da maioria: terra,
teto e trabalho. É estranho, mas, se eu falo disso para
alguns, significa que o papa
é comunista’.
‘Terra, teto e trabalho – isso pelo qual vocês lutam – são
direitos sagrados.
Reivindicar isso não é nada raro, é a doutrina social da
Igreja. Vou me deter um
pouco sobre cada um deles, porque vocês os escolheram como
tema para este
encontro.
‘‘Quando a especulação financeira condiciona o preço dos
alimentos, tratando-os
como qualquer mercadoria, milhões de pessoas sofrem e morrem
de fome. Por
outro lado, descartam-se toneladas de alimentos. Isso é um
verdadeiro escândalo
(...) deixem-me dizer-lhes que, em certos países, e aqui
cito o Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, "a reforma agrária é, além
de uma necessidade política,
uma obrigação moral’
‘Eu disse e repito: uma casa para cada família. Mas, além
disso, um teto, para que
seja um lar, tem uma dimensão comunitária: e é o bairro... e
é precisamente no
bairro onde se começa a construir essa grande família da
humanidade, a partir do
mais imediato, a partir da convivência com os vizinhos (...)
ali, o espaço público
não é um mero lugar de trânsito, mas uma extensão do próprio
lar, um lugar para
gerar vínculos com os vizinhos’.
‘O desemprego juvenil, a informalidade e a falta de direitos
trabalhistas não são
inevitáveis, são o resultado de uma prévia opção social, de
um sistema econômico
que coloca os lucros acima do homem, que considera o ser
humano em si mesmo
como um bem de consumo, que pode ser usado e depois jogado
fora. Isso
acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o
deus dinheiro e não
o homem, a pessoa humana’
‘Descartam-se os idosos, porque, bom, não servem, não
produzem. Nem crianças
nem idosos produzem. Estamos assistindo a um terceiro
descarte muito doloroso,
o descarte dos jovens. Milhões de jovens (...) aqui na
Itália, passou um pouquinho
dos 40% de jovens desempregados. Sabem o que significa 40%
de jovens? Toda
uma geração, anular toda uma geração para manter o
equilíbrio. Em outro país da
Europa, está passando os 50% ...São dados claros do
descarte. Descarte, descarte
(...) para poder manter e reequilibrar um sistema em cujo
centro está o deus
dinheiro, e não a pessoa humana’
‘Um sistema econômico centrado no deus dinheiro também
precisa saquear a
natureza, saquear a natureza, para sustentar o ritmo
frenético de consumo que lhe
é inerente’.
‘Alguns de vocês expressaram: esse sistema não se aguenta
mais. Temos que
mudá-lo, temos que voltar a levar a dignidade humana para o
centro, e que, sobre
esse pilar, se construam as estruturas sociais alternativas
de que precisamos. É
preciso fazer isso com coragem, mas também com inteligência.
Com tenacidade,
mas sem fanatismo (...) Os cristãos têm algo muito lindo, um
guia de ação, um
programa, poderíamos dizer, revolucionário. Recomendo-lhes
vivamente que o
leiam, que leiam as Bem-aventuranças que estão no capítulo 5
de São Mateus e 6
de São Lucas (cfr. Mt 5, 3; e Lc 6, 20) e que leiam a
passagem de Mateus 25’
‘A perspectiva de um mundo da paz e da justiça duradouras
nos exige superar o
assistencialismo paternalista, nos exige criar novas formas
de participação que
inclua os movimentos populares e anime as estruturas de
governo locais, nacionais
e internacionais com essa torrente de energia moral que
surge da incorporação dos
excluídos na construção do destino comum. Digamos juntos com
o coração:
nenhuma família sem moradia, nenhum agricultor sem terra,
nenhum trabalhador
sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho
dá’.
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