A Cultura de joelhos

As instituições vinculadas ao Ministério da Cultura vivem uma crise de identidade com as emendas impositivas, que podem ser legais, mas são imorais.

Marcelo Gruman
EBC
Emendas feitas ao Orçamento Geral da União, denominado de Lei Orçamentária Anual (LOA) – enviada pelo Executivo ao Congresso anualmente –, são propostas por meio das quais os parlamentares podem opinar ou influir na alocação de recursos públicos em função de compromissos políticos que assumiram durante seu mandato, tanto junto aos estados e municípios quanto a instituições. Tais emendas podem acrescentar, suprimir ou modificar determinados itens (rubricas) do projeto de lei orçamentária enviado pelo Executivo. 
 

Até o ano passado, os deputados e senadores não podiam executar este orçamento sem o aval do Poder Executivo. No entanto, em novembro de 2013 o Senado aprovou a Proposta de Emenda à Constituição 358/13, que impõe a obrigatoriedade de execução de emendas parlamentares ao Orçamento da União. A votação foi de 62 votos a favor, nove contra e nenhuma abstenção. Em maio de 2014, o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, em primeiro turno, o texto base da PEC do “orçamento impositivo”, prevendo a execução de até 1,2% da receita corrente líquida realizada no ano anterior. A matéria foi aprovada com o voto de 384 deputados contra seis. Para o ano de 2014, cada deputado e senador dispuseram de cerca de R$ 14 milhões para apresentar em emendas individuais, num total de mais de R$ 8,7 bilhões.
 
Esta informação não deveria chamar a atenção do respeitável público, mero pagador de impostos e sustentáculo involuntário de um Estado patrimonialista esquartejado por inúmeros grupelhos locais que se alimentam da miséria alheia e da ignorância política daqueles que lhe legitimam através do dever do voto, do voto de cabresto. A apropriação do Estado brasileiro por interesses privados, muitas vezes escusos, é secular e já faz parte da paisagem política. O que não é secular, muito antes pelo contrário, é o envolvimento a fórceps da administração pública neste jogo do “toma lá, dá cá”. Explico.
 
Com o intuito de realizar um evento “cultural” em seu curral eleitoral, o ilustre parlamentar encaminha ao respectivo órgão da administração pública o projeto que prevê gastos os mais diversos. Cabe ao referido órgão emitir parecer favorável ou desfavorável, tendo-se em mente que, ainda que desfavorável, o projeto será modificado para, de uma forma ou de outra, ser aprovado. Afinal, a emenda parlamentar é impositiva, e a verba tem de ser “investida” naquela localidade. Uma emenda parlamentar que pretenda realizar festival de dança, por exemplo, deve ser encaminhada à coordenação de dança da Fundação Nacional de Artes – Funarte, instituição vinculada ao Ministério da Cultura responsável pelo fomento às atividades de dança no país. A mesma instituição recebe emendas referentes a ações voltadas à música, teatro, circo e artes visuais. 
 
Exemplos genéricos são inúmeros, desde a aquisição de equipamentos para bandas de música, passando pela realização de uma peça de teatro no município de origem do parlamentar e pelo financiamento da exposição de um artista local. Para todos estes casos, os beneficiados diretos pelos projetos deveriam, fazendo jus ao seu caráter público, transparente, isonômico e imparcial, participar dos editais promovidos, nestes casos genéricos, pela Funarte. Afinal de contas, não se justifica privilegiar esta peça de teatro, este artista ou esta banda de música em detrimento de milhares de outros que não têm acesso aos gabinetes dos parlamentares.  
 
Exemplo concreto? Pois não.
 
A Coordenação de Música Popular da Funarte recebeu emenda parlamentar com a proposta da “XIV Festa do Café-com-Biscoito” no município mineiro de São Tiago, cujo objetivo era “fomentar as atividades que buscam desenvolver a cultural imaterial da produção de biscoitos artesanais na cidade”. O proponente justifica a importância da Festa por ser patrimônio cultural imaterial e maior festividade do município, sendo necessário reafirmar, anualmente, “a cultura, as tradições e arte culinária (culminando) na preservação dessa técnica e (agregando) os valores dos costumes e tradição local da produção dos biscoitos artesanais”. Onde entra a Funarte? Ao longo dos três dias do evento, estavam previstos cinco “oficinas culturais” (sic) e treze apresentações musicais. Pronto. O parecer, obviamente, foi desfavorável, ressaltando o fato de a proposta não se configurar como difusora da música, mas, sim, como evento que contará com shows musicais durante a realização do evento anual da indústria local de biscoitos. Valor do convênio: R$ 125.000,00. 
 
Sem entrar no próprio mérito da existência de emendas parlamentares, resquício de um Brasil arcaico chefiado por coronéis e jagunços, de interesses paroquiais e pessoais, é fundamental atentarmos para algumas questões que o tal “orçamento impositivo” levanta no nosso quintal, o quintal da Cultura. 
 
Em primeiro lugar, as emendas parlamentares voltadas para a Cultura, num primeiro momento, parecem inchar o orçamento do Ministério, entretanto, por se tratar de ações pensadas num gabinete, impostas de cima para baixo, sem vinculação necessária com a política pública voltada para aquela área, o aumento no volume de recursos é enganoso. O maior beneficiário da ação não é a parcela da população brasileira que, de acordo com o planejamento estratégico elaborado por aqueles que realmente têm qualificação técnica para tal, merecem investimento no sentido da inclusão sociocultural, da cidadania cultural, mas a clientela política do parlamentar.
 
Em segundo lugar, a inclusão das emendas parlamentares voltadas para a Cultura esconde a realidade patética vivida pelo Ministério no quesito “orçamento”. O MinC não conseguiu alcançar sequer 0,2% do orçamento da União no ano de 2014, quando o recomendado pela UNESCO é de, no mínimo, 1%. A ex-ministra Marta Suplicy esteve mais preocupada em ingerir-se na CNIC em defesa da moda como expressão cultural do que tornar sua pasta relevante economicamente, para além do glamour das viagens internacionais de caráter oficial. Devemos lembrar que, durante a gestão do ex-presidente Lula, que se vangloria de nunca ter lido um livro na vida porque outros podem lê-lo e comentá-lo, poupando-o de tão árdua e inglória tarefa, o orçamento da pasta alcançou, se não me falha a memória, 0,8%. Contanto que o loteamento de cargos públicos continue com os famigerados “cargos de confiança” (confiança de quem?) e que o exercício da função pública funcione como trampolim para voos mais altos (prefeitura, governo do Estado, presidência da república), o orçamento vira um mero detalhe. E viva a Lei Rouanet!  
 
Em terceiro lugar, a utilização da administração pública para análise de emendas parlamentares deve ser vista como uma forma de o poder legislativo ser chancelado, legitimado pelo Estado brasileiro. O parecer favorável ao projeto funciona como um carimbo, um selo de qualidade. O poder legislativo envolve, à força, o gestor público que, por mais que se queira profissional e eficiente, orientado por planos de gestão de longo prazo e pelos princípios da imparcialidade e impessoalidade, é obrigado a participar da velha política de balcão. O gestor público é desviado de sua função para atender interesses que pouco ou nada tem a ver com o que dele se espera, e o contribuinte brasileiro está pagando por isso. Quem não gostaria de ter um funcionário público à sua disposição, não é mesmo?
 
Em quarto lugar, mais alarmante do que a aprovação do projeto por meio de emenda parlamentar é a sua baixa execução orçamentária, que muitas vezes não chega a 100% do previsto. Quando isto acontece, o dinheiro deixa de ser investido, o que, convenhamos, não deve ser surpresa para ninguém. Afinal, quem nos garante que aquele que elabora o projeto realmente “entende do riscado”? Por que não transferir a dotação orçamentária destes projetos para o orçamento da instituição responsável pela elaboração das políticas públicas da área cultural em questão, garantindo a aplicação integral dos recursos? Estariam os senhores parlamentares dispostos a abrir mão de seus feudos pós-modernos? 
 
Em quinto lugar, é importante não demonizar este ou aquele partido, responsabilizar os “fascistas” da direita ou os “comunistas” da esquerda. Como descrito no início deste texto, a PEC do orçamento “impositivo” foi aprovado por esmagadora maioria tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal. Daí ficar claro que a base do governo federal em ambas as casas legislativas é alugada, sim, indo contra os interesses do Palácio do Planalto. Ou não? 
 
De pires na mão e trabalhando pra “sinhozinho”, submetidas a interesses alheios às suas verdadeiras atribuições, usurpadas no seu papel de protagonistas na determinação das ações que realmente fazem diferença na construção de uma sociedade democrática e culturalmente inclusiva, as instituições vinculadas ao Ministério da Cultura vivem uma crise de identidade. De onde venho? Para onde vou? Qual a minha importância na elaboração e implantação de políticas públicas para a cultura? 
 
Emendas impositivas podem ser legais, mas são imorais. Afrontam a ética e colocam abaixo a separação entre espaço público e espaço privado, pilar que deveria sustentar nossa combalida democracia. São um tapa na cara dos gestores comprometidos com uma administração pública eficiente e democrática. 
 
Diante deste descalabro, resta uma constatação: ajoelhou, tem que rezar. 




Créditos da foto: EBC

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