O que pode — e deve — vir depois da capa da Veja
Quando soube da capa da Veja, me ocorreu uma passagem que, algum tempo atrás, testemunhei em Londres.
Os tabloides foram avançando cada vez mais em métodos indignos, desonestos e criminosos na busca de furos – e com eles leitores e anunciantes.
Até que se soube que um tabloide de Murdoch, o News of the World, invadira a caixa postal de uma garota de treze anos sequestrada e morta.
Acabou ali a festa.
Em menos de uma semana, em meio a uma torrencial comoção espalhada entre os britânicos, o centenário News of the World estava fechado.
Logo, repórteres, editores e altos executivos de empresas jornalísticas delinquentes começaram a ser investigados, processados e, em muitos casos, presos.
Não demorou muito e se estabeleceu um consenso na sociedade britânica: a imprensa tinha que ser submetida a novas regras. O regime de auto-regulação, como mostrou espetacularmente o caso do News of the World, fracassara.
Agora, os arranjos finais das novas regras estão em debate. Os tabloides nunca mais voltaram a fazer o que faziam impunemente.
Enxergo no jornal de Murdoch na cobertura do sequestro e morte da garota inglesa a Veja nesta capa às vésperas das eleições.
Certas passagens trágicas, e este é o lado positivo delas, têm o poder de transformar coisas ruins que de algum modo vão se acumulando.
Uma hora um limite é rompido – e a opinião pública berra um basta do qual não existe retorno.
A Veja não vai deixar de circular imediatamente como o News of the World.
Mas, como ficou claro na reação de Dilma, uma história de muitos anos acabou com a capa desta sexta e outra história só não vai se iniciar caso Aécio vença.
O que chegará ao fim, se Dilma ganhar, é um pacto não escrito entre a imprensa e sucessivos governos.
Este pacto estabelece, basicamente, o seguinte. A mídia dá uma cobertura amiga. Não investiga corrupção, por exemplo. Projeta uma imagem de bem-aventurança generalizada. Protege o poder.
Em troca, as grandes empresas recebem dinheiro público em doses avassaladoras. É publicidade, é compra de livros didáticos, é aquisição de lotes de revistas, é financiamento facilitado em bancos públicos.
É, enfim, uma coleção interminável de mamatas que levaram os donos das empresas a terem algumas das maiores fortunas do país.
Com FHC, o pacto funcionou esplendidamente. Tanto que a compra de votos para a emenda da reeleição jamais foi investigada com seriedade.
Os problemas começaram com Lula.
É curioso notar que a ruptura do pacto foi unilateral: partiu da imprensa. Talvez em dose não tão grande, mas ainda assim absurdamente elevada, a bilionária publicidade governamental continuou a fluir para as maiores companhias jornalísticas.
A Globo, como passamos a saber depois que a Secom decidiu divulgar seus gastos, recebe anualmente 600 milhões de reais em verbas publicitárias federais.
Quando você acrescenta a aquilo tudo recursos de governos estaduais e municipais, não é exagero dizer que as grandes empresas de mídia são virtualmente financiadas com dinheiro público.
A novidade que surgiu na era PT é que a mídia descobriu que poderia continuar a mamar sem dar as contrapartidas que sempre ofereceu aos governos amigos.
Foi então que começaram a brotar colunistas dedicados exclusivamente a atacar Lula em todas as mídias: jornais, revistas, rádios, televisão, internet.
Para a mídia, era o melhor dos mundos. O que era uma guerra fria no começo se tornou logo um batalha aberta. Não raro, denúncias sem nenhum fundamento passaram a ser publicadas como se fossem verdades indiscutíveis.
Colaborou para isso a Justiça brasileira, complacente com os crimes da imprensa, ao contrário do que ocorre em sociedades avançadas.
E o melhor, para as grandes empresas: ao mesmo tempo em que atacavam ferozmente o governo, sempre recolheram, no final de cada mês, o Mensalão das verbas publicitárias desse mesmo governo.
Para a sociedade, esse esquema é uma calamidade. É como se ela mesma pagasse para ser enganada e manipulada por jornais e revistas.
O objetivo é perpetuar um situação em que uns poucos – a começar pelos donos da mídia – tenham privilégios assombrosos. Você não consegue entender a desigualdade brasileira se não entender este pacto entre mídia e governos.
Por que o PT não rompeu um contrato tão sinistro para o país?
Esta é uma grande pergunta.
Numa visão benévola, defendida por alguns petistas, por “republicanismo” – expresso numa expressão de consequências funestas para os brasileiros: “mídia técnica”. É como se a mensagem fosse a seguinte: “Sou tão correto que encho a Globo de dinheiro mesmo sabendo que esse dinheiro vai dar em Mervais, Jabores, Sardenbergs etc.”
Numa visão menos benévola, por medo. Por insegurança. Por temer que a retaliação dos barões da imprensa.
Deu no que deu: nesta capa da Veja.
Se essa capa representar o fim de um pacto tenebroso para os brasileiros, teremos, paradoxalmente, que ser gratos a ela.
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